segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O Morro dos Ventos Uivantes, XXVll

Sete dias se passaram, cada qual marcando o seu curso pela rápida alteração do estado de saúde de Edgar Linton. O estrago que os meses até ali tinham feito era agora superado pela ação dos dias e das horas. Ainda nos esforçávamos por iludir Catherine; mas a sua inteligência viva recusava-se a aceitar essa ilusão: adivinhava em se­gredo a terrível possibilidade que aos poucos se ia trans­formando em certeza, e afligia-se com isso. Quando a quin­ta-feira chegou, ela não teve coragem de falar no passeio; eu o fiz por ela e obtive permissão para levá-la a passear, pois a biblioteca, onde o meu amo passava uma pequena parte do dia — o breve período em que tinha forças para estar sentado —, e o quarto dele haviam-se tornado todo o seu mundo. Ela chorava todos os momentos em que não estava cuidando do pai ou sentada a seu lado. Seu rosto estava abatido de preocupação e vigília e o meu amo de bom grado lhe deu licença para um passeio que — achava ele — seria uma feliz mudança de ambiente e companhia, confortando-se com a esperança de que a filha não ficaria inteiramente só, depois que ele morresse.
Tinha ele a idéia fixa, ao que deduzi através de vários comentários, de que, da mesma forma que o sobrinho se assemelhava a ele fisicamente, também se pareceria a ele em espírito, pois as cartas de Linton deixavam transparecer pouca ou nenhuma indicação dos seus defeitos de caráter. E eu, por uma fraqueza perdoável, hesitava em corrigir-lhe o engano, perguntando a mim mesma que vantagem havia em perturbar-lhe os últimos momentos com revelações de coisas que ele não tinha tempo nem poder para alterar.
Deixamos o nosso passeio para a tarde, uma dourada tarde de agosto, com o ar dos morros tão cheio de vida que até dava a impressão de que quem o respirasse, embora moribundo, reviveria. O rosto de Catherine era como a paisagem — as sombras e o sol passando por ele em rápida sucessão; mas as sombras perduravam mais e o sol era mais passageiro e o seu pobre coraçãozinho censurava até mesmo aquele transitório esquecimento dos seus cuidados.
Avistamos Linton esperando-nos no mesmo lugar da semana anterior. Minha jovem ama desmontou, dizendo-me que, como estava resolvida a não demorar nada, seria melhor que eu segurasse o pônei e permanecesse a cavalo. Não concordei: não queria correr o risco de perdê-la de vista, nem mesmo um minuto, e subimos juntas a encosta coberta de urze. O rapaz recebeu-nos com maior animação do que da outra vez, embora não fosse uma animação provocada pela alegria ou pelo entusiasmo — parecia mais causada pelo medo.
— É tarde! — exclamou, falando em frases curtas e com dificuldade. — Seu pai não está muito doente? Pensei que você não viesse.
Por que é que você não é franco? — perguntou Catherine, engolindo o desapontamento. — Por que não diz logo que não me quer ver mais? É estranho, Linton, que pela segunda vez você me tenha feito vir até aqui apa­rentemente só com o fim de nos aborrecer e sem qualquer motivo!
Linton estremeceu e olhou para ela, meio suplicante, meio envergonhado; mas a paciência da prima não era suficiente para suportar aquele comportamento enigmático.
— Meu pai está doente — disse ela. — Por que me tirar, então, da sua cabeceira? Por que você não mandou recado liberando-me da promessa, se não desejava que eu a mantivesse? Vamos, quero uma explicação: brincadeiras e bobagens estão completamente fora dos meus pensamen­tos e não posso perder tempo atendendo aos seus caprichos!
— Os meus caprichos! — murmurou ele. — Quais são eles? Pelo amor de Deus, Catherine, não fique tão zangada! Despreze-me à vontade. . . sou um covarde, um desgraçado, mereço todo o desprezo. . . mas não mereço a sua zanga. Odeie o meu pai, mas despreze-me apenas!
— Tolice! — exclamou Catherine, fora de si. — Ra­paz bobo, pateta! Veja! Treme como se eu fosse realmente tocá-lo! Não precisa pedir que o desprezem, Linton: todo o mundo o desprezará espontaneamente. Vá-se embora! Vou voltar para casa: é loucura tirá-lo de junto da lareira e fingir. . . fingir o quê? Largue o meu vestido! Se eu tivesse pena de você por estar chorando, com esse ar tão apavorado, você desprezaria esse meu sentimento. Ellen, faça-o ver como está ridículo. Levante-se, não queira pa­recer um réptil abjeto!
Com o rosto lavado em lágrimas e uma expressão de agonia, Linton jogara o seu corpo frágil no chão e parecia convulsionado de terror.
— Oh! — soluçou. — Não posso, não posso! Cathe­rine, Catherine, sou um traidor e não ouso dizer-lhe! Mas se você me abandonar eu serei morto! Minha querida Catherine, a minha vida está nas suas mãos: você disse que me amava e se isso fosse verdade tudo estaria bem. Você fica, então? Minha boa, minha doce Catherine! E talvez você consinta. . . e ele me deixe morrer com você!
Ao ver a angústia dele, a minha jovem ama inclinou-se para levantar o primo. O velho sentimento de ternura e indulgência sobrepujara a sua irritação, e ela ficou como­vida e alarmada.
— Consentir em quê? — perguntou. — Em ficar? Diga-me o que quer dizer tudo isso e ficarei. Você contra­diz as suas próprias palavras e me põe fora de mim! Fique calmo, seja franco e confesse, de uma vez por todas, o que tanto o preocupa. Você não me faria sofrer, Linton, faria? Não permitiria que nenhum inimigo me fizesse mal se pudesse evitá-lo, não é? Acredito que você seja covarde, mas nunca um traidor da sua melhor amiga!
— Mas o meu pai ameaçou-me — arquejou o rapaz, torcendo os dedos finos —, e eu tenho medo dele. . . tenho medo! Não me atrevo a contar!
— Está bem! — exclamou Catherine, num misto de dó e desprezo. — Guarde o seu segredo: eu não sou co­varde. Poupe-se você mesmo: eu não tenho medo!
A magnanimidade dela fez com que ele chorasse: chorou copiosamente, beijando-lhe as mãos, que o apoia­vam, mas não conseguiu criar coragem para falar. Eu esta­va pensando que mistério seria aquele e resolvida a que Catherine, por minha vontade, não sofresse por causa dele ou de qualquer outra pessoa, quando, ouvindo passos na urze, levantei a cabeça e vi o Sr. Heathcliff já quase junto de nós, descendo do Morro. Não olhou para os dois jovens, embora eles estivessem suficientemente perto para que ouvisse os soluços de Linton; mas, saudando-me no tom quase alegre que só usava para comigo e cuja sinceridade eu não podia evitar pôr em dúvida, disse:
— Que novidade, vê-la tão perto da minha casa, Nelly! Que tal vão as coisas na granja? Conte-nos. Dizem
— acrescentou, num tom de voz mais baixo — que Edgar Linton está à morte: talvez exagerem a gravidade da sua doença!
— Não, meu amo está mesmo morrendo — respondi.
— Será uma tristeza para todos nós, mas uma bênção para ele!
— Quanto tempo pensa que ele vá durar? — per­guntou.
— Não sei — retruquei.
— Porque. . . — continuou ele, olhando para os dois jovens, aparentemente transformados em estátuas: Linton dava a impressão de não ousar mexer-se, nem mes­mo erguer a cabeça, e Catherine não podia mover-se por causa dele — porque esse rapaz aí parece determinado a derrotar-me e eu gostaria muito de que o tio dele andasse depressa e fosse antes do sobrinho. Ei! Esse idiota tem se portado sempre assim? Eu já lhe ensinei a se arrastar pelo chão! Costuma mostrar-se animado na companhia dela?
— Animado? Não. . . tem se mostrado é muito de­sanimado — respondi. — A julgar pela aparência, eu diria que, em vez de andar passeando com a namorada, ele deveria mas era estar na cama, aos cuidados de um médico.
— E estará, dentro de um dia ou dois — murmurou Heathcliff. — Mas primeiro. . . levante-se, Linton! Levan­te-se! — gritou. — Não se esfregue pelo chão! Levante-se já!
Linton caíra novamente ao chão, noutro paroxismo de medo, causado, ao que tudo indicava, pelo olhar que o pai lhe lançara — nada mais havia que lhe pudesse pro­vocar tal reação. Fez vários esforços para obedecer, mas as suas poucas forças pareciam aniquiladas e caiu para trás, com um gemido. O Sr. Heathcliff avançou e levan­tou-o, apoiando-o contra uma saliência relvada.
— Agora — falou, com ferocidade contida — estou ficando zangado; e, se não controlar essa sua maldita fra­queza. . . ai de você! Ponha-se imediatamente de pé!
— Já vou, pai — ofegou ele. — Mas deixe-me, ou desmaiarei. Fiz o que o senhor queria, tenho a certeza de que fiz. Catherine dir-lhe-á que eu. . . que eu. . . me tenho mostrado animado. Fique ao meu lado, Catherine: dê-me a sua mão.
— Pegue na minha — retrucou o pai. — Fique de pé. Pronto... ela lhe dará o braço. Assim, olhe para ela. Até parece que eu sou o Demônio encarnado, para lhe suscitar tal horror. Por favor, Catherine, acompanhe-o até a casa, sim? Ele estremece quando lhe toco.
 — Linton, meu querido! — sussurrou Catherine. — Não posso ir ao Morro: papai me proibiu. Seu pai não lhe vai fazer mal. Por que é que você tem tanto medo?
— Não posso voltar para casa — respondeu ele. — Não posso voltar a entrar nela sem você!
— Chega! — exclamou o pai. — Vamos respeitar os escrúpulos filiais de Catherine. Nelly, entre com ele e eu seguirei imediatamente o seu conselho de chamar o médico.
— O senhor faria bem — repliquei. — Mas eu tenho de ficar com a menina: cuidar do seu filho não me com­pete.
— Você é muito severa — disse Heathcliff —, eu sei disso. Mas vai me obrigar a beliscar o bebê e fazê-lo gritar para provocar a sua piedade. Vamos, meu herói. Quer voltar para casa, acompanhado por mim?
E avançou mais uma vez, como se fosse pegar o ra­pazinho; mas, recuando, Linton agarrou-se à prima e im­plorou-lhe que o acompanhasse, num tom frenético, que não admitia negativa. Por mais que eu desaprovasse a sua ida, não podia impedi-la: na verdade, como podia ela ter-se recusado? O que o enchia de pânico, nós não tínhamos meios de descobrir — mas lá estava ele, apavorado a ponto de parecer idiotizado. Chegamos à porta principal: Cathe­rine entrou e eu fiquei esperando que ela tivesse conduzido o doente para uma poltrona e voltasse logo, quando o Sr. Heathcliff, empurrando-me para a frente, disse:
— Minha casa não está assolada por nenhuma praga, Nelly, e estou com vontade de ser hospitaleiro: sente-se e deixe-me fechar a porta.
Dito isso, fechou-a e trancou-a. Estremeci.
— Vocês vão tomar chá, antes de irem para casa — acrescentou. — Estou sozinho, Hareton foi levar umas cabeças de gado a Lees e Zillah e Joseph estão de folga. Embora eu esteja acostumado a ficar sozinho, prefiro uma boa companhia. Catherine, sente-se ao lado dele. Ofereço-lhe o que tenho: o presente não vale muito a pena, mas nada mais tenho para oferecer. Refiro-me a Linton. Como ela me olha! É estranho o sentimento de fúria que se apossa de mim contra quem parece temer-me! Se eu tivesse nascido onde as leis são menos estritas e os gostos menos delicados, divertir-me-ia, ao serão, com uma lenta vivis-secção desses dois.
Respirou profundamente, bateu com o punho na mesa e praguejou para si mesmo: — Com mil diabos! Eu os odeio.
— Não tenho medo do senhor! — exclamou Cathe­rine, que não tinha ouvido a última parte da conversa. Aproximou-se, com os olhos negros brilhantes de indigna­ção. — Dê-me essa chave: quero sair daqui! — gritou. — Nem que estivesse morrendo de fome eu comeria ou beberia aqui.
Heathcliff tinha a chave na mão, que permanecia fe­chada sobre a mesa. Olhou para ela, tomado de surpresa ante a sua audácia ou, talvez, lembrando-se, através da voz e do olhar, da pessoa de quem ela a tinha herdado. Catherine estendeu a mão e quase conseguiu tirar a chave dos dedos dele; mas aquele gesto trouxe-o de volta ao presente.
— Catherine Linton — ameaçou ele —, cuidado ou acabo jogando-a no chão; e a Sra. Dean ficará furiosa.
Sem lhe dar ouvidos, ela agarrou novamente a mão dele. — Havemos de sair! — repetiu, envidando todos os esforços para fazê-lo soltar a chave; e, ao ver que as suas unhas não bastavam, apelou para os dentes. Heathcliff lançou-me um olhar que evitou qualquer interferência da minha parte. Catherine estava demasiado atenta aos dedos dele para reparar no seu rosto. De repente, ele abriu a mão e soltou a chave; mas, antes que ela a pudesse pegar, ele a agarrou com a mão livre e, puxando-a para si, admi­nistrou-lhe com a outra mão uma quantidade de tapas nas orelhas, cada qual suficiente para levar a cabo a sua ameaça, se houvesse ela podido cair.
Ao ver aquela violência, atirei-me sobre ele, furiosa. — Seu canalha! — gritei. — Seu canalha! — Mas uma pancada no peito silenciou-me: sou forte mas fico logo sem ar; além do mais, com a raiva, cambaleei para trás, sentindo-me prestes a sufocar ou a arrebentar uma artéria. A cena não durou mais do que dois minutos; assim que se viu solta, Catherine levou as mãos às têmporas, como se não estivesse bem certa de que ainda tinha orelhas. Tremia, pobrezinha, e apoiava-se à mesa com ar apavorado.
— Como vêem, eu sei lidar com crianças — disse o patife, enquanto se abaixava para apanhar a chave, que caíra no chão. — Vá ter com Linton, como lhe ordenei. . . e chore à vontade! Amanhã serei seu pai. O único pai que você terá, dentro de alguns dias, e então vai ver com quantos paus se faz uma canoa. Você não é nada fraquinha. . . e se voltar a mostrar um diabo de gênio como ainda há pouco mostrou terá uma dose diária de pancadas!
Em vez de correr para Linton, Cathy dirigiu-se para mim. Ajoelhou-se e pôs o rosto em brasa no meu regaço, chorando alto. Seu primo encolhera-se a um canto do sofá, mais quieto que um rato, congratulando-se, creio, pelo fato de o pai ter batido na prima e não nele. Vendo-nos a todos atônitos, o Sr. Heathcliff levantou-se e tratou de preparar ele mesmo o chá. As xícaras e os pires foram postos na mesa. Ele mesmo serviu o chá e me passou uma xícara.
— Lave a sua bile — falou ele. — E sirva a atrevida da sua menina e o meu rapaz. Não tem veneno, embora eu o tenha preparado. Vou sair para buscar os cavalos.
O nosso primeiro pensamento, assim que ele saiu, foi procurar uma saída qualquer. Experimentamos a porta da cozinha, mas estava trancada por fora. Olhamos para as janelas — eram demasiado estreitas para dar sequer passa­gem à fina silhueta de Cathy.
— Sr. Linton — falei, vendo que estávamos virtual­mente prisioneiras —, decerto sabe qual a intenção do seu diabólico pai e vai nos dizer qual é, ou lhe encho as orelhas de tapas, como ele fez com a sua prima.
— Sim, Linton, você precisa nos dizer — falou Ca­therine. — Foi por sua causa que eu vim e você será muito ingrato se não nos disser.
— Dê-me um pouco de chá, estou morto de sede. Depois lhe direi — respondeu ele. — Sra. Dean, afaste-se. Não gosto de vê-la de pé junto de mim. Catherine, você está deixando as suas lágrimas caírem na minha xícara. Não vou beber esse chá. Dê-me outra xícara.
Catherine obedeceu e enxugou o rosto. Senti-me eno­jada com a compostura daquele pobre-diabo, que já não parecia apavorado. A aflição que mostrara na charneca desaparecera tão logo entrara em casa, levando-me a ima­ginar que ele fora ameaçado com uma terrível explosão de ira, se falhasse em nos arrastar até lá; uma vez conse­guido isso, não tinha mais receios imediatos.
— Papai quer que nos casemos — disse, após ter tomado uns goles de chá — e sabe que o seu pai não nos deixaria casar agora. Tem medo de que eu morra, se es­perarmos; por isso, vamos casar amanhã de manhã e você vai ficar aqui toda a noite. Se você fizer o que ele quer, voltará para casa amanhã mesmo e poderá levar-me junto.
— Levá-lo junto, pobre infeliz? — exclamei. — Ca­sar com você? O seu pai deve estar louco... ou então pensa que somos todos idiotas. Por acaso você pensa que essa moça bonita, essa jovem sadia e cheia de vida vai se amarrar a um não-me-toques como você? Imagina acaso que alguém, e muito menos Catherine Linton, vai gostar de tê-lo por marido? Você precisava era de uma boa surra, por nos ter trazido até aqui, com os seus truques desleais e. . . não fique com esse ar de bobo! Tenho uma vontade enorme de o sacudir, pela sua traição e pelo seu egoísmo imbecil.
E dei-lhe umas sacudidelas; mas ele começou logo a tossir e lançou mão do seu costumeiro recurso de gemer e choramingar, fazendo com que Catherine me censurasse.
— Ficar aqui a noite inteira? Não — disse ela, olhan­do lentamente em volta. — Ellen, vou deitar fogo àquela porta, mas hei de sair.
E poria em ação a sua ameaça, se Linton não se levan­tasse, novamente alarmado com a sua própria e preciosa pessoa. Enlaçou-a com os seus débeis braços, soluçando!
— Você não quer casar comigo e salvar-me. . . Não me quer deixar ir para a granja? Oh, minha querida Ca­therine! Você não pode ir embora. Tem de obedecer a meu pai. .. Tem!
— Tenho de obedecer é ao meu — replicou ela — e evitar-lhe tão cruel expectativa. A noite inteira! Que pen­saria ele? A estas horas já estará em cuidados. Hei de conseguir sair desta casa, seja como for. Cale-se! Você não corre perigo; mas se tentar impedir-me. . . Linton, amo muito mais a meu pai do que a você!
O terror mortal que ele sentia pelo Sr. Heathcliff res­taurou-lhe a covarde eloqüência. Catherine estava quase louca, mas insistia em que tinha de ir para casa e tentou convencê-lo a abrir a porta, a esquecer por um pouco o seu egoísmo. Enquanto discutiam, o nosso carcereiro voltou.
— Os seus cavalos desapareceram — anunciou. — Então, Linton! Choramingando outra vez? Que é que ela lhe andou fazendo? Vamos, vamos. . . chega, e vá para a cama. Dentro de um mês ou dois, meu rapaz, você estará apto a lhe pagar as atuais tiranias com mão de ferro. Está se consumindo de amor, não é? Nada mais o aflige. . . e ela há de tê-lo! Vamos, para a cama! Zillah não está aqui esta noite; você tem de se despir sozinho. Psiu, pouco ba­rulho! Uma vez no seu quarto, não precisa ter medo, que eu não irei lá. Por sorte, você se comportou passavelmente. Quanto ao resto, deixe comigo.
Falou tudo isso enquanto segurava a porta para o filho sair, coisa que Linton fez à maneira de um cachorrinho temeroso de que o dono lhe desse um pontapé. A porta voltou a ser trancada. Heathcliff aproximou-se da lareira, junto à qual eu e a minha ama permanecíamos, de pé. Catherine olhou para ele e instintivamente levou a mão à face: a presença dele reavivava-lhe a sensação de dor. Qualquer outra pessoa teria sido incapaz de considerar aquele gesto infantil com severidade, mas ele franziu a testa e rosnou:
— Não me vá dizer que está com medo de mim! A sua coragem está bem disfarçada: você parece morta de medo!
— E estou com medo, agora — replicou ela —, por­que, se eu ficar aqui, papai vai ficar preocupadíssimo; e como posso causar-lhe essa preocupação, quando ele . . . quando ele. . . Sr. Heathcliff, deixe-me ir para casa! Pro­meto que casarei com Linton: papai quer isso e eu o amo. Por que razão o senhor há de querer forçar-me a fazer o que eu quero?
— Ele que ouse forçá-la! — exclamei. — Existe uma lei neste mundo, graças a Deus, embora estejamos num lugar afastado. Denunciá-lo-ia, nem que fosse meu filho; e é uma farsa um casamento sem a bênção da Igreja!
— Cale-se! — atalhou o vilão. — Vá para o inferno com as suas ameaças! A conversa não é com você. Ca­therine, será para mim uma satisfação pensar que seu pai vai ficar preocupado: nem dormirei, de alegria. Você não podia ter atinado com maneira mais segura de ficar aqui mais vinte e quatro horas do que me informar que seu pai ficaria preocupadíssimo. Quanto à sua promessa de casar com Linton, cuidarei de que a cumpra, pois não sairá daqui enquanto não a tiver cumprido.
— Mande Ellen, então, avisar papai de que estou bem! — suplicou Catherine, chorando amargamente. — Ou case-nos agora. Pobre papai! Ellen, ele vai pensar que nos perdemos. Que havemos de fazer?
— Nada disso! Pensará que você se cansou de cuidar dele e resolveu procurar um pouco de divertimento — retrucou Heathcliff. — Você não pode negar que entrou na minha casa porque quis, contrariando as ordens dele. E é muito natural que deseje divertir-se, na sua idade; e que se tivesse cansado de cuidar de um doente, quando ele é ape­nas seu pai. Catherine, os seus dias mais felizes termina­ram quando você nasceu. Seu pai amaldiçoou-a por ter vindo ao mundo (pelo menos foi o que eu fiz), de modo que não seria nada de mais se ele a amaldiçoasse quando se fosse desta para melhor. Eu me juntaria a ele. Não a posso ver? Como poderia? Chore o quanto quiser. Chorar vai ser a sua principal diversão, daqui por diante; a menos que Linton compense outras perdas; coisa em que o seu pre­vidente pai parece acreditar. As suas cartas de conselhos e consolo fizeram-me rir. Na última, dizia à minha jóia para cuidar bem da dele; para tratá-la bem, quando lhe perten­cesse. Cuidados paternais! Ele não sabe é que Linton só quer que o cuidem e tratem dele! Linton é um bom tira-nozinho. Não se importaria de torturar cães e gatos, se eles não tivessem dentes nem garras. Garanto-lhe que vai poder contar a seu pai belos exemplos da bondade do sobrinho, quando voltar para casa.
— Aí o senhor tem razão! — exclamei. — Revele-lhe o caráter do seu filho! Mostre-lhe como se parece com o senhor. . . e espero que a Srta. Cathy pense duas vezes antes de aceitá-lo!
— Não me importa falar das suas boas qualidades — respondeu ele —, porque ela vai ter de aceitá-lo ou ficar aqui, prisioneira (e você também, com ela), até que o pai morra. Posso detê-las aqui, a ambas, sem que ninguém desconfie disso. Se duvida, encoraje-a a voltar atrás com a palavra dada, e verão!
— Não voltarei atrás com a minha palavra — disse Catherine. — Casarei com ele agora mesmo, se logo depois puder voltar para a granja. Sr. Heathcliff, sei que é um homem cruel, mas certamente não é um demônio; tenho a certeza de que não irá, por simples maldade, destruir irrevogavelmente a minha felicidade. Se papai pensasse que eu o tivesse deixado de propósito e morresse antes que eu voltasse, como poderia eu continuar a viver? Já desisti de chorar; mas vou me ajoelhar aqui, aos seus pés; e não me levantarei e não tirarei os meus olhos do seu rosto, en­quanto não olhar para mim! Não, não vire o rosto! Olhe! Nada verá que o irrite. Eu não o odeio. Não estou sequer zangada porque o senhor me bateu. Nunca amou ninguém na sua vida, tio? Nunca? Ah, o senhor tem de olhar para mim! Estou tão desesperada, que o senhor não pode deixar de me lastimar e ter pena de mim!
— Tire esses dedos de cima de mim; e afaste-se, ou lhe dou com o pé! — exclamou Heathcliff, repelindo-a brutalmente. — Preferia ser abraçado por uma serpente.
Como diabos você pode pensar em me agradar? Eu a detesto!
E sacudiu-se todo, como se tomado de repulsa física, empurrando a cadeira para trás, enquanto eu me levantava e o cobria de imprecações. Mas tive de calar-me, ante a ameaça de ser posta num cárcere privado. Estava ficando escuro e ouvimos vozes no portão do jardim. Heathcliff saiu para ver o que era: tinha a cabeça fria, coisa que nós não tínhamos. Falou durante alguns minutos e depois voltou sozinho.
— Pensei que fosse o seu primo Hareton — comen­tei com Catherine. — Oxalá ele viesse logo! Quem sabe se não ficaria do nosso lado?
— Eram três criados, mandados da granja para bus­cá-las — falou Heathcliff, que me ouvira. — Você devia ter aberto a gelosia e gritado; mas juro que essa lambisgóia está contente por você não o ter feito. Tenho certeza de que está feliz por ser obrigada a ficar.
Ao saber da oportunidade que perdêramos, ambas de­mos vazão ao nosso desespero e ele nos deixou chorar até as nove, quando nos mandou subir, através da cozi­nha, para o quarto de Zillah. Murmurei a Cathy que obe­decesse: talvez pudéssemos sair pela janela ou passar para uma mansarda e sair pela clarabóia. Mas a janela, como as do andar de baixo, era estreita, e o alçapão que levava à mansarda estava trancado. Nenhuma das duas se deitou: Catherine sentou-se junto à janela, esperando ansiosamente a manhã; um profundo suspiro foi toda a resposta que pude obter às minhas sugestões de que tentasse descansar. Instalei-me numa cadeira de balanço e passei em revista todas as minhas quebras de dever, das quais, verificava de repente, se originavam todas as desventuras dos meus amos. Na realidade, não era esse o caso, bem sei; mas a minha imaginação culpava-me de tudo, naquela horrível noite — a ponto de achar o próprio Heathcliff menos culpado do que eu.
Às sete horas, ele subiu e perguntou se Catherine já se tinha levantado. Ela correu imediatamente para a porta e respondeu: — Já. — Abriu a porta e puxou-a para fora. Levantei-me, para acompanhá-la, mas ele passou a chave na fechadura. Exigi que me soltasse.
— Tenha paciência — replicou. — Mando-lhe o desjejum daqui a pouco.
Bati na porta e tentei arrebentar a fechadura. Cathe­rine perguntou por que motivo eu tinha de permanecer trancada. Ele respondeu que era só mais uma hora e ouvi-os afastando-se. Duas ou três horas se passaram até que, finalmente, ouvi passos — mas não os de Heathcliff.
— Trouxe umas coisas para você comer — disse uma voz.
A porta se abriu e Hareton apareceu diante de mim, trazendo comida suficiente para todo o dia.
— Pegue ela — falou, passando-me a bandeja.
— Fique só um pouco — pedi.
— Não! — respondeu ele, e foi-se embora, apesar das minhas súplicas.
E ali fiquei eu, fechada o dia inteiro e toda a noite seguinte e mais outro dia e outra noite. Ao todo, fiquei prisioneira durante cinco noites e quatro dias, sem ver ninguém a não ser Hareton, e mesmo assim só de manhã, quando me trazia a bandeja. Ele era um modelo de car­cereiro: insensível, mudo e surdo a todas as minhas ten­tativas de suscitar o seu sentimento de justiça ou com­paixão.

Nenhum comentário:

Postar um comentário