segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O Morro dos Ventos Uivantes, Cap XXVlll

Na quinta manhã, ou, melhor, na quinta tarde, ouvi passos diferentes aproximarem-se da porta — mais leves e mais curtos; dessa vez, a pessoa entrou no quarto. Era Zillah, envolta no seu xale escarlate, com um gorro de seda preta na cabeça e uma cesta pendurada no braço.
— Ei, Sra. Dean! — exclamou. — Fala-se muito da senhora, em Gimmerton. Pensei que se tinha afogado no pântano de Blackhorse, e a menina também, até que o patrão me contou que tinham sido encontradas e que ele as tinha alojado aqui! Quanto tempo ficaram no pântano? Subiram para uma ilha ou foi o patrão que as salvou, hein, Sra. Dean? Más não está com mau aspecto. . . Não pas­sou fome, passou?
— O seu patrão é um canalha! — repliquei. — Mas ele há de pagar por tudo. Não precisava ter inventado essa mentira: a verdade acabará por vir à tona!
— Que quer dizer com isso? — perguntou Zillah. — Ele não inventou nada: é o que dizem no povoado: que a senhora e a menina se perderam no pântano. Mal che­guei a casa, chamei Earnshaw: "Ei, parece que aconteceu uma desgraça, Sr. Hareton, durante a minha folga. Pobre­zinha da menina e da boa Nelly Dean!" Ele ficou me olhando. Pensei que não soubesse de nada e contei-lhe o que tinha ouvido. O patrão escutou, sorriu e disse: "Se estiveram perdidas no pântano, agora já estão salvas, Zillah. Nelly Dean está lá em cima, no seu quarto. Pode-lhe dizer para sair, quando subir; aqui está a chave. Bebeu muita água do pântano e queria correr para casa, mas não estava em condições, de modo que resolvi impedi-la de sair enquanto não se acalmasse. Pode dizer-lhe que vá imediatamente para a granja, se estiver em condições, avi­sar que a sua jovem ama seguirá a tempo de assistir aos funerais do pai".
— Quer dizer que o Sr. Edgar ainda não morreu? — perguntei. — Oh, Zillah, Zillah!
— Não, ainda não. Sente-se, minha boa Nelly — retrucou ela. — Agora, sim, está com mau aspecto. Ele ainda não morreu; o Dr. Kenneth acha que talvez dure mais um dia. Encontrei-o na estrada e perguntei-lhe.
Em vez de me sentar, peguei nas minhas coisas e desci correndo, aproveitando a porta aberta. Ao entrar na sala, olhei em volta, à procura de alguém que me infor­masse a respeito de Catherine. A porta estava escancarada e o sol entrava por ela, mas ninguém parecia estar por perto. Eu hesitava entre sair logo ou voltar em busca da minha ama, quando uma tossezinha seca me fez virar para a lareira. Linton jazia no sofá, sozinho, chupando um pe­daço de açúcar-cande e seguindo os meus movimentos com olhar apático. — Onde está a Srta. Catherine? — pergun­tei, com voz severa, supondo que, por tê-lo apanhado assim, a sós, poderia, assustando-o, forçá-lo a dar-me in­formações. Mas ele continuou a chupar o açúcar, com ar inocente.
— Ela já foi embora? — insisti.
— Não — respondeu ele. — Está lá em cima. Não vai embora; nós não vamos deixar.
Você não vai deixar, seu idiota! — exclamei. — Leve-me imediatamente para junto dela, ou juro que o faço gritar.
— Papai é que ia fazer você gritar, se tentasse chegar junto dela — retrucou ele. — Diz para eu não ser mole com Catherine: ela é minha mulher, e é uma vergonha querer abandonar-me. Diz que ela me odeia e quer que eu morra, para ficar com o meu dinheiro; mas ela não há de tê-lo e não há de ir para casa! Nunca! Pode chorar o quanto quiser e ficar doente, que nunca irá para casa!
E pôs-se de novo a chupar, fechando os olhos, como se quisesse dormir.
— Sr. Heathcliff — insisti —, será que já esqueceu tudo o que Catherine lhe fez no inverno passado, quando lhe declarou que a amava e ela lhe trouxe livros e lhe can­tou baladas e muitas vezes desafiou o vento e a neve para o vir visitar? Chorava, quando não podia vir, não queren­do decepcioná-lo; e você dizia que ela era demasiado boa; agora, porém, acredita nas mentiras que o seu pai diz, embora saiba que ele detesta ambos. E põe-se do lado dele, contra ela. Bela gratidão, não acha?
Os cantos da boca de Linton descaíram e ele tirou o açúcar-cande de entre os lábios.
— Ela veio até aqui porque o odiava? — continuei. — Pense por si mesmo! Quanto ao seu dinheiro, ela nem sabe que ele existe. Diz que ela está doente, mas deixa-a sozinha, numa casa estranha! Deveria saber o que é ser abandonado à própria sorte! Mas não, só sabe compa­decer-se dos seus próprios sofrimentos; ela também se compadecia, mas ninguém se compadece dela! Derramei lágrimas, Sr. Heathcliff, como vê (eu, uma mulher de meia-idade e simples criada), enquanto você, depois de fingir afeto e de ter razões de sobra para idolatrá-la, poupa as lágrimas para si mesmo e fica aí deitado, como se nada estivesse acontecendo. Ah, você não passa de um rapaz egoísta e sem coração!
— Não posso ficar junto dela — replicou ele, irri­tado. — Não agüento ficar com ela. Chora sem parar e não há meio de se calar, mesmo que eu diga que vou cha­mar o meu pai. Chamei-o uma vez e ele ameaçou estran­gulá-la, se ela não ficasse quieta; mas ela recomeçou a chorar assim que ele saiu do quarto e passou a noite ge­mendo e chorando, embora eu gritasse que não podia dormir.
— O Sr. Heathcliff saiu? — perguntei, percebendo que a infeliz criatura não tinha capacidade de solidarizar-se com a prima.
— Está no pátio — respondeu ele —, falando com o Dr. Kenneth, que lhe disse ser verdade que o meu tio está morrendo. Fico satisfeito, porque passarei a dono da granja. Catherine sempre se referiu a ela como sendo a casa dela. Mas não é dela, é minha: papai diz que tudo o que ela tem é meu. Os seus belos livros são meus; ela disse que os dava a mim e os passarinhos e o pônei, Minny, se eu fosse buscar a chave do nosso quarto e a deixasse sair; mas eu respondi que ela não me podia dar nada, pois era tudo meu. Então ela chorou e tirou um camafeu do pescoço e disse que me daria aquilo: dois retratos dentro de um camafeu de ouro, de um lado a mãe, do outro o meu tio, quando eram jovens. Isso foi ontem; disse-lhe que aquilo também era meu e tentei arrancar-lhe o camafeu. Mas a terrível criatura não me deixou: empurrou-me e machucou-me. Gritei (isso a assusta), ela ouviu papai se aproximar e partiu o camafeu ao meio, ficando-me o re­trato da mãe dela na mão; ela tentou esconder a outra metade, mas papai perguntou de que se tratava e eu disse. Ele tirou a minha metade e ordenou-lhe que me desse a dela; Catherine recusou-se e aí ele. . . ele a jogou ao chão com um tapa, arrancou o medalhão da corrente e esma­gou-o com o pé.
— E você gostou de vê-lo bater-lhe? — perguntei, com a intenção de encorajá-lo a falar.
— Estremeci — respondeu ele. — Estremeço, sem­pre que vejo meu pai bater num cão ou num cavalo; bate com tanta força! A princípio gostei; ela merecia isso por me haver empurrado. Mas, quando papai se foi, ela me fez chegar à janela e mostrou-me o lábio cortado, contra os dentes, e a boca enchendo-se de sangue; depois juntou os pedaços do retrato do pai e sentou-se com o rosto para a parede, e desde então nunca mais falou comigo: às vezes penso que ela não pode falar de dor. Não gosto de pensar nisso; mas ela é insuportável, chorando sem parar; e está tão pálida, que até parece louca e eu sinto medo dela.
— E você pode apanhar a chave quando quiser? — perguntei.
— Posso, quando subir — respondeu ele. — Mas agora não vou subir.
— Em que quarto ela está? — insisti.
— Ora — exclamou ele —, não lhe vou dizer onde é! Ninguém, nem Hareton, nem Zillah, pode saber. É segredo! Pronto, você me cansou. . . Vá-se embora, vá! — E, apoiando o rosto no braço, fechou novamente os olhos.
Achei melhor sair sem falar com o Sr. Heathcliff e trazer socorros da granja para a menina. Ao chegar à granja, o espanto dos outros criados e a sua alegria de me ver foram enormes; e, quando ouviram dizer que a sua jovem ama estava bem, dois ou três quiseram logo subir a gritar a boa nova à porta do Sr. Edgar — mas eu própria me encarreguei de lhe dar a notícia. Como o achei mu­dado, no decorrer daqueles poucos dias! Era a imagem da tristeza e da resignação, à espera da morte. Parecia muito jovem; embora a sua idade real fosse de trinta e nove anos, dava a impressão de ter dez a menos. Pensava em Cathe­rine, pois murmurou o seu nome. Toquei-lhe na mão e sussurrei:
— Catherine já vem, querido patrão! Está viva e bem; espero que volte esta noite mesmo.
Tremi, ante a sua primeira reação à notícia: ele se soergueu, olhou ansiosamente em volta e desmaiou. Tão logo recobrou os sentidos, narrei-lhe a nossa visita forçada e a nossa detenção no Morro dos Ventos Uivantes. Disse-lhe que Heathcliff me obrigara a entrar — o que não era bem verdade. Falei o menos possível contra Linton e não lhe descrevi a conduta brutal do pai dele, pois não queria amargurá-lo e afligi-lo ainda mais.
Ele adivinhava que um dos propósitos do seu inimigo era apoderar-se da sua fortuna pessoal e da propriedade pa­ra o filho, ou antes, para si próprio; por que razão não espe­rava que ele morresse era algo que intrigava o meu amo, que ignorava estar o sobrinho tão perto da morte quanto ele mesmo. Contudo, achou que devia alterar o seu testa­mento: em vez de deixar a fortuna de Catherine à sua disposição, resolveu confiá-la a depositários para seu usu­fruto enquanto ela vivesse e para o dos filhos, se os tivesse, depois que morresse. Dessa maneira, não poderia cair nas mãos de Heathcliff, caso Linton falecesse.
Assim que recebi essas ordens, mandei um criado buscar o advogado e outros quatro empregados, todos ar­mados, salvarem a minha ama da sua prisão. Tanto um quanto os outros demoraram muito a voltar. O criado que fora a Gimmerton regressou primeiro, dizendo que o Sr. Green, o advogado, não estava, quando ele chegara à sua casa, e que tivera de esperar duas horas para que voltasse; e que depois o Sr. Green lhe dissera que tinha um caso urgente a resolver no povoado, mas que iria à Granja Thrushcross antes que amanhecesse. Os quatro homens também voltaram desacompanhados, anunciando que Ca­therine estava doente, demasiado doente para sair do seu quarto, e que o Sr. Heathcliff não os deixara vê-la. Passei-lhes uma boa descompostura por terem dado crédito a tal história, que não poderia transmitir ao meu amo, e resolvi, assim que rompesse o dia, levar uma tropa ao Morro e ameaçar invadir a casa, a menos que nos entregassem a prisioneira. "O pai há de voltar a vê-la", jurei, "mesmo que aquele demônio seja morto ao tentar barrar-nos a entrada!"
Felizmente, Deus quis poupar-me a viagem e as difi­culdades. Eu tinha descido, às três da manhã, para buscar um jarro de água e estava passando pelo hall com ele na mão, quando umas fortes pancadas na porta principal quase me fizeram derramar a água. "Ora, deve ser Green", pensei, serenando. "Só pode ser." E continuei a andar, de­cidida a mandar que outra pessoa abrisse a porta. Mas as batidas continuavam, não com tanta força, mas insistentes. Pousei o jarro e corri a abrir eu mesma. O luar brilhava, lá fora. Não era o advogado. A minha queridinha pulou-me para o pescoço, soluçando:
— Ellen! Ellen! Papai ainda está vivo?
— Está! — falei. — Está, sim, meu anjo. Deus seja louvado por você estar de novo conosco, sã e salva!
Ela queria correr, mesmo exausta como estava, escada acima, para o quarto do Sr. Linton; mas eu insisti para que se sentasse, fi-la beber uma xícara de chá e lavei-lhe o rosto pálido, esfregando-o depois com o meu avental, até lhe avivar um pouco a cor. Depois convenci-a a deixar-me subir primeiro, a fim de anunciar a sua chegada, e im­plorei-lhe que dissesse ao pai que seria muito feliz com o jovem Heathcliff. Ela olhou para mim, mas logo compreen­deu por que razão eu a aconselhava a mentir e garantiu-me que não se queixaria.
Não tive forças para assistir ao encontro deles. Fiquei do lado de fora do quarto uns bons quinze minutos e só depois me aventurei a me aproximar da cama. Mas não precisava preocupar-me: o desespero de Catherine era tão silencioso quanto a alegria do pai. Ela o sustentava calma­mente, na aparência; e ele fixava nas feições dela os seus olhos erguidos, que pareciam dilatados pelo êxtase.
Morreu feliz, Sr. Lockwood. Beijando-lhe a face, mur­murou:
— Vou ter com ela; e você, minha querida, um dia irá ter conosco! — Depois, não mais falou nem se mexeu, mas continuou a olhá-la daquela maneira extasiada, ra­diante, até seu pulso parar imperceptivelmente e a sua alma partir. Ninguém poderia dizer o exato minuto da sua mor­te, tão tranqüila ela foi.
Fosse porque Catherine já tivesse gasto todas as suas lágrimas, fosse porque a sua dor era demasiado grande para chorar, o certo é que ficou sentada, sem uma lágrima, até o sol nascer; continuou sentada até o meio-dia e mais tem­po ficaria ainda ao lado da cama onde o pai jazia morto, se eu não insistisse para que descansasse um pouco. Ainda bem que consegui convencê-la, pois à hora do almoço apa­receu o advogado, após ter ido ao Morro pedir instruções sobre como proceder. Vendera-se ao Sr. Heathcliff: essa fora a causa da sua demora em atender ao chamado do meu amo. Felizmente, após a chegada da filha, ele não pensara mais em nada.
O Sr. Green tomou a casa e os seus habitantes a seu cargo. Deu ordem a todos os criados, menos a mim, para se irem embora e teria levado a sua autoridade ao ponto de insistir para que Edgar Linton não fosse enterrado ao lado da esposa, e sim na capela, com o resto da sua fa­mília. Mas havia o testamento e os meus protestos contra qualquer infração dos seus dispositivos. O funeral foi apres­sado; Catherine, agora Sra. Linton Heathcliff, teve permis­são para permanecer na granja até a saída do corpo do pai.
Contou-me ela que a sua aflição levara, por fim, Lin­ton a correr o risco de soltá-la. Ouvira os homens que eu tinha mandado discutir à porta e deduzira o sentido da resposta de Heathcliff. Aquilo a desesperara. Linton, que fora chamado à saleta pouco depois de eu ter saído, de tal maneira ficara com medo dela que fora buscar a chave antes que o pai subisse. Tivera a esperteza de passar a chave na fechadura, sem contudo fechar a porta; e, à hora de ir para a cama, pedira para dormir no quarto de Hare­ton e seu pedido fora satisfeito, dessa vez. Catherine fugira antes do raiar do dia. Não ousara sair pela porta, com medo de que os cães latissem; entrou nos quartos vazios e examinou as janelas; por sorte, ao chegar ao quarto que fora da sua mãe, passou facilmente pela janela e daí para o chão, ajudada pelos galhos do abeto. Seu cúmplice não escapara ao castigo, apesar da tímida colaboração.

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