segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O Morro dos Ventos Uivantes, XXVl

O verão já estava adiantado quando Edgar relutante­mente cedeu e eu e Catherine partimos a cavalo ao encon­tro do primo. Era um dia quente e abafado; não havia sol, mas o céu estava demasiado branco e nebuloso para ameaçar chuva. Tínhamos marcado encontro junto ao mar­co, na encruzilhada. Lá chegando, porém, um pastorzinho, enviado como mensageiro, anunciou-nos:
— O Sr. Linton está do lado do Morro e pede para avisá-los de que têm de andar um pouco mais.
— Então ele esqueceu a primeira condição que o tio impôs — observei. — Mandou-nos ficar dentro dos limites da granja e não vamos transgredi-los.
— Ora, podemos virar as cabeças dos nossos cavalos, quando chegarmos ao lugar onde ele está — retrucou Cathy. — Assim, ficaremos voltados para casa.
Mas, ao chegarmos junto dele, a menos de um quarto de milha do Morro, vimos que não trouxera cavalo e fomos obrigadas a desmontar, deixando os nossos animais a pastar. Ele jazia sobre as urzes, à nossa espera, e só se levantou quando chegamos a poucos metros de distância. Encami­nhou-se para nós de maneira tão cambaleante e com ar tão pálido, que logo exclamei:
— Oh, Sr. Heathcliff, está com um aspecto tão mau! Não me parece que esteja bom para dar um passeio a pé.
Catherine olhou para ele com um misto de dor e es­panto; mudou a exclamação de alegria já em seus lábios para outra, de alarma, e as congratulações pelo encontro de ambos para uma pergunta aflita sobre a saúde dele — acaso estava pior do que de hábito?
— Não, melhor. . . muito melhor! — arquejou ele, tremendo e segurando a mão dela como se necessitasse de apoio, enquanto os seus grandes olhos azuis erravam timidamente; as olheiras que os cercavam transformavam em abatimento a lânguida expressão que antes possuíam.
— Mas você está pior — persistiu a prima. — Pior do que da última vez que o vi; está mais magro e. ..
— Estou cansado — interrompeu ele, apressado. — Faz demasiado calor para andar, vamos ficar aqui mesmo. E, de manhã, às vezes sinto-me tonto. Papai diz que estou crescendo. . . muito rápido.
Mal satisfeita, Cathy sentou-se e ele se deitou ao lado
dela.
— Isto até parece o seu paraíso — comentou ela, esforçando-se por criar um ambiente de animação. — Lembra-se dos dois dias que combinamos passar num lugar e da maneira que cada qual achasse mais agradável? Sem dúvida aqui tem você o seu, com a exceção apenas de que há nuvens; mas são tão macias, que está quase melhor do que se houvesse sol. Na semana que vem, se você puder, iremos a cavalo até o parque da granja, experimentar o meu paraíso.
Linton não parecia lembrar-se do que ela estava falan­do e tinha, evidentemente, grande dificuldade em sustentar qualquer espécie de conversa. Sua falta de interesse pelos assuntos que ela começava e a sua incapacidade de contri­buir com qualquer outro assunto eram tão óbvias, que Cathy não conseguiu esconder o seu desapontamento. Uma indefinida alteração se processara na pessoa e na atitude dele. O seu ar caprichoso e mimado dera lugar à indife­rença e à apatia; havia nele menos das artimanhas de uma criança que se queixa e provoca os outros para lhes atrair propositadamente a atenção, e mais do obstinado egocen­trismo de um doente pronto a repelir qualquer consolo e a considerar o bom humor dos outros como um insulto. Catherine apercebeu-se, tanto quanto eu, de que a nossa companhia era para ele mais um castigo do que uma satis­fação e não teve escrúpulos em propor que nos fôssemos. Essa proposta, inesperadamente, despertou Linton da sua letargia, pondo-o num estado de estranha agitação. Olhou, apavorado, na direção do Morro, suplicando-lhe que ficasse pelo menos outra meia hora.
— Mas eu acho — retrucou Cathy — que você esta­ria melhor em casa do que sentado no chão, aqui; e estou vendo que não o posso distrair, hoje, com as minhas his­tórias, as minhas canções e a minha conversa: você se tornou mais adulto do que eu, nestes seis meses. . . Pouco lhe interessa o que eu digo. Se eu visse que estava interes­sado ficaria de bom grado.
— Fique para descansar um pouco — replicou ele. — E, Catherine, não pense ou diga que eu estou muito mal: é este tempo abafado, este calor, que me fazem assim; e, antes de você chegar, andei demais para o meu hábito. Diga ao meu tio que estou passando razoavelmente, está bem?
— Vou lhe dizer que você acha que está, Linton. Não poderia afirmar que isso é verdade — observou a mi­nha jovem ama, espantada com a insistência dele em algo que se via não ser verdade.
— E volte na próxima quinta-feira — continuou ele, evitando o olhar dela. — Agradeça-lhe por ter permitido que você viesse. . . agradeça-lhe da minha parte, Catheri­ne. E. . . e se por acaso encontrar o meu pai e ele lhe perguntar a meu respeito, não lhe diga que estive tão cala­do; não fique com esse ar triste e desanimado... ele ficará furioso.
— Não me importa nada que ele fique furioso! — exclamou Catherine, imaginando ser ela mesma a vítima dessa fúria.
— Mas a mim importa — retrucou o primo, estre­mecendo. — Não o irrite contra mim, Catherine. Você não sabe como ele é.
— Por acaso o maltrata, Sr. Heathcliff? — pergun­tei. — Ter-se-á cansado de ser indulgente e seu ódio terá passado de passivo a ativo?
Linton olhou para mim, mas não respondeu; e, após ter ficado sentada ao lado do primo mais dez minutos, durante os quais ele deixou pender a cabeça sobre o peito e só fez soltar gemidos mal contidos de dor e exaustão, Cathy levantou-se e começou a procurar amoras, dividindo-as comigo; não lhe ofereceu nenhuma, pois viu que só faria aborrecê-lo e cansá-lo.
— Já terá passado meia hora, Ellen? — cochichou ela no meu ouvido, por fim. — Não sei por que nos pediu que ficássemos. Adormeceu e papai já deve estar à nossa espera.
— Bem, não devemos deixá-lo dormindo — respon­di. — Espere até que ele acorde, tenha paciência. Você estava muito ansiosa por vir, mas parece que o seu desejo de ver o seu pobre primo logo se evaporou!
— Por que foi que ele me quis ver? — retrucou Catherine. — Mesmo nos seus piores dias, gostava mais dele do que como ele está agora. Parece até que este nosso encontro é uma tarefa que ele foi obrigado a cumprir por temor a que seu pai ralhasse com ele. Mas eu não vou vir até aqui só para dar prazer ao Sr. Heathcliff, seja qual for a razão que ele tiver para forçar Linton a tal penitência. E, embora me alegre de que ele esteja melhor de saúde, acho que está muito pior de gênio e muito menos afetuoso para comigo.
— Você acha que ele está melhor de saúde? — volvi.
— Acho — respondeu ela —, porque ele sempre fez um bicho de sete cabeças dos seus padecimentos. Acho que ele não está apenas melhor, conforme me pediu para dizer a papai, mas muito melhor.
— Nisso não concordamos, Srta. Cathy — observei. — Eu acho que ele está muito pior.
Nesse ponto, Linton acordou do seu cochilo e, com uma expressão de terror, perguntou se alguém tinha cha­mado o seu nome.
— Não — respondeu Catherine. — Só se tiver sido em sonhos. Não posso entender como é que você pode cochilar no meio do campo, e de manhã.
— Pareceu-me ouvir o meu pai — arquejou ele. — Tem certeza de que ninguém me chamou?
 — Certeza absoluta — replicou sua prima. — Só eu e Ellen é que estávamos falando, sobre o seu estado de saúde. Você está mesmo melhor do que da última vez em que nos vimos, no inverno? Sente-se mais forte? Porque uma coisa, pelo menos, não me parece mais forte... o seu afeto por mim. Diga-me. . . Você está mesmo melhor?
As lágrimas brotaram dos olhos de Linton, ao mesmo tempo em que ele respondia: — Estou, sim, estou! — E, ainda sob o impacto da voz imaginária, seu olhar errava para cima e para baixo, à procura de quem falara. Cathy levantou-se. — Por hoje, temos de ir embora — declarou. — Não escondo que fiquei muito decepcionada com este nosso encontro, embora não vá dizer nada a ninguém.. . e olhe que não tenho medo do Sr. Heathcliff!
— Fale baixo! — murmurou Linton. — Pelo amor de Deus, fale baixo! Ele está vindo. — E agarrou-se ao braço de Catherine, tentando detê-la; mas, ao ouvir aquilo, ela se apressou a chamar Minny, que lhe obedecia como se fosse um cão.
— Voltarei na próxima quinta-feira! — gritou, pu­lando para a sela. — Até lá! Depressa, Ellen!
E assim o deixamos, quase sem se dar conta da nossa partida, tão aflito estava ele com a aproximação do pai.
Antes de chegarmos a casa, a frustração de Catherine já se transformara num perplexo sentimento de pena e de dúvida quanto ao estado físico e social de Linton — dúvida que também eu partilhava, embora a aconselhasse a não fazer comentários, pois um segundo encontro nos daria melhores bases para julgar. Meu amo pediu que lhe relatássemos o encontro. Cathy transmitiu-lhe os agrade­cimentos do primo e pouco falou do resto; eu também, pois não sabia o que ocultar e o que revelar.

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