segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O Morro dos Ventos Uivantes, XXV

— Essas coisas aconteceram no inverno passado — disse a Sra. Dean —, pouco mais do que há um ano atrás. No inverno passado, eu não poderia imaginar que, doze meses depois, eu distrairia uma pessoa estranha à família contando-lhe esses fatos! Mas quem sabe até quando o senhor vai ser estranho à família? É demasiado jovem para continuar a viver satisfeito sozinho; e eu acho que ninguém pode conhecer Catherine Linton sem amá-la. O senhor sorri, mas. . . por que mostra sempre tanto interesse quan­do eu falo dela? E por que me pediu para pendurar o retrato dela sobre a sua lareira? E por que. . .
— Chega, minha amiga! — exclamei. — É possível que eu venha a amá-la. Mas ela me amaria? A dúvida é demasiado grande para que eu arrisque a minha tranqüi­lidade, caindo em tentação: além disso, eu não sou daqui. Pertenço ao mundo apressado, ocupado, e a ele tenho de voltar. Mas continue. Catherine obedeceu às ordens do pai?
— Obedeceu — prosseguiu a governanta. — O afeto por ele ainda predominava em seu coração; além do mais, ele falara sem ira: falara com a profunda ternura de alguém receoso de deixar o seu tesouro em meio a perigos e ini­migos, onde ele sabia que as palavras seriam a única ajuda que poderia legar-lhe para orientá-la. Alguns dias mais tarde, disse-me:
— Gostaria de que meu sobrinho escrevesse, Ellen, ou viesse visitar-nos. Diga-me, sinceramente, o que acha dele: melhorou ou há probabilidades de que melhore à medida que se tornar, homem?
— Ele é muito delicado de saúde — respondi —, e não me parece que vá chegar a homem; mas uma coisa lhe digo: é que ele não se parece com o pai; se a Srta.
Catherine tivesse a pouca sorte de casar com ele, acho que conseguiria controlá-lo, a não ser que ela fosse extrema e estupidamente indulgente. Mas, patrão, o senhor vai ter muito tempo para conhecê-lo e verificar se ele convém a ela: ainda lhe faltam quase cinco anos para a maioridade.
Edgar suspirou e, encaminhando-se para a janela, olhou na direção da igreja de Gimmerton. A tarde estava nebulosa, mas o sol de fevereiro brilhava por entre a ne­blina e podiam-se distinguir os dois ciprestes do cemitério e as sepulturas, bem afastadas umas das outras.
— Muitas vezes rezei — falou ele, como que para si mesmo — para que chegasse logo o que agora vem vin­do.. . e agora começo a ter medo. Pensava que a lem­brança da hora em que desci aquele vale, recém-casado, seria menos doce do que a expectativa de que em breve, dentro de alguns meses ou, quem sabe? algumas semanas, eu fosse levado vale acima e deposto no seu solitário regaço! Ellen, tenho me sentido muito feliz com a minha pequena Cathy: através das noites de inverno e dos dias de estio, ela tem sido uma esperança viva a meu lado. Mas tenho me sentido igualmente feliz meditando, sozinho, en­tre aquelas sepulturas, abaixo daquela velha igreja; jazendo, durante as longas noites de junho, sobre o musgo verde do túmulo da mãe dela e ansiando pela hora em que pudesse jazer debaixo dele. Que posso fazer por Cathy? Como posso deixá-la? Não me importaria de que Linton fosse filho de Heathcliff, nem que a roubasse de mim, se ele pudesse consolá-la da minha perda. Não me importaria de que Heathcliff conseguisse o que pretende e triunfasse, tirando-me a minha última bênção! Mas se Linton for indigno (apenas um débil instrumento nas mãos do pai) não po­derei abandoná-la a ele! E, embora seja duro fazê-la sofrer, terei de continuar a causar-lhe tristeza enquanto eu viver e deixá-la sozinha quando morrer. Minha querida! Preferia entregá-la a Deus e enterrá-la antes de mim.
— Entregue-a a Deus assim mesmo — respondi. — E, se acaso a perdermos (que Deus não o permita), com a ajuda da Divina Providência eu ficarei ao lado dela até o fim. A Srta. Catherine é uma boa menina; não tenho medo de que ela faça algo propositalmente errado; e as pessoas que cumprem com o seu dever são sempre recom­pensadas.
A primavera chegou, mas as forças não voltaram ao meu amo, embora ele retomasse os seus passeios pelo par­que com a filha. Para a inexperiência dela, aquilo em si já era um sinal de convalescença; além disso, ele tinha as faces geralmente rosadas e olhos brilhantes: ela estava cer­ta da sua recuperação. No dia do seu décimo sétimo ani­versário, ele não foi ao cemitério. Estava chovendo e ob­servei:
— Decerto o senhor não vai sair esta noite, não é? Ele respondeu:
— Não, este ano irei um pouco mais tarde. Escreveu novamente a Linton, expressando o seu
grande desejo de vê-lo, e, estivesse o inválido apresentável, tenho a certeza de que seu pai o teria deixado ir à granja. Como não estava, instruído pelo pai, respondeu insinuando que o Sr. Heathcliff punha objeções a que ele fosse à granja, mas que a atenção do tio lhe dera grande alegria e que esperava encontrá-lo, alguma vez, nos seus passeios, e pedir-lhe, pessoalmente, licença para ele e a prima não permanecerem por tanto tempo separados.
Essa parte da carta era escrita em tom simples, pro­vavelmente por ele mesmo. Heathcliff sabia que o filho era mais capaz do que ele de suplicar eloqüentemente a companhia de Catherine.

Não lhe peço, dizia, que ela me venha visitar aqui; mas nunca mais hei de poder vê-la, só porque meu pai me proíbe de ir à casa dela e o senhor a proíbe de vir à minha? De vez em quando, venha passear com ela na direção do Morro e deixe-nos trocar al­gumas palavras, na sua presença! Nada fizemos para merecer esta separação e o senhor não está zangado comigo; é o senhor mesmo quem diz não ter razão para não gostar de mim. Querido tio, mande-me, por favor, um bilhete amanhã, dando-me permissão para me encontrar com o senhor e Catherine, em qualquer lugar, exceto na granja. Creio que um encontro o con­venceria de que o caráter de meu pai não é, absolu­tamente, o meu: ele próprio afirma que eu sou mais seu sobrinho do que filho dele; e, embora eu tenha defeitos que me tornam indigno de Catherine, ela os perdoou e, por causa dela, o senhor também deveria perdoá-los. Pergunta pela minha saúde — está me­lhor; mas, vivendo sem qualquer esperança e conde­nado à solidão ou à companhia de quem nunca de mim gostou nem há de gostar, como posso me sentir feliz e bem?

Embora sentisse pena do rapaz, Edgar não podia consentir no que ele lhe pedia, por não poder acompanhar Catherine. Respondeu que, no verão, talvez pudessem en­contrar-se: entretanto, desejava que ele lhe continuasse a escrever, prometendo dar-lhe conselhos e confortá-lo no que pudesse, por carta, pois bem sabia como era dura a sua vida. Linton aquiesceu e, deixado por sua conta, sem dúvida teria estragado tudo, enchendo as suas cartas de queixas e lamentações; mas seu pai não relaxava a vigi­lância e, naturalmente, insistia para que ele lhe mostrasse tudo o que o meu amo lhe escrevia; assim, em vez de desa­bafar todos os seus sofrimentos físicos e morais, temas sempre presentes no seu pensamento, ele repisava sempre na cruel obrigação de se manter separado da sua única amiga e amada, e gentilmente teimava em que o Sr. Linton lhes permitisse que se encontrassem sem mais demora, ou ele acabaria achando que estava sendo enganado com promessas vãs.
Por seu lado, Cathy não cessava de suplicar a mesma coisa; e ambos acabaram persuadindo o meu amo a deixá-los passear a pé ou a cavalo juntos, uma vez por semana, sob a minha guarda e na charneca vizinha à granja, pois junho veio encontrá-lo ainda mais fraco, e, embora tivesse posto de lado uma parte do seu rendimento anual para o futuro da filha, ele alimentava o desejo natural de que ela viesse a conservar a casa dos seus antepassados e achava que a sua única probabilidade de o fazer era através de uma união com o seu herdeiro; não sabia que Linton defi­nhava quase tão depressa quanto ele próprio, e nem eu, pois nenhum médico ia ao Morro e ninguém visitava o jovem em casa, para poder saber do seu verdadeiro estado de saúde. Quanto a mim, comecei a pensar que os meus pressentimentos eram falsos e que ele devia estar muito melhor, ao vê-lo sugerir passeios a pé e a cavalo pela char­neca, aparentemente entusiasmado. Não podia imaginar que um pai tratasse um filho moribundo de maneira tão tirânica e perversa como soube, mais tarde, que Heathcliff o tratara, a fim de incitá-lo a esse aparente entusiasmo — e seus esforços duplicavam de intensidade ao ver os seus planos de cobiça ameaçados de fracasso pela morte.

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