segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O Morro dos Ventos Uivantes, Cap XXlV

Ao cabo de três semanas, pude finalmente deixar o meu quarto e andar pela casa. Na primeira noite, pedi a Catherine que lesse para mim, pois tinha a vista fraca. Es­távamos na biblioteca e o meu amo já se retirara. Ela acedeu, se bem que me parecesse a contragosto; e, pen­sando que talvez não gostasse do meu tipo de leituras, dis­se-lhe que escolhesse entre os livros dela. Selecionou um dos seus favoritos e leu mais ou menos durante uma hora; depois começou a fazer perguntas.
— Ellen, você não está cansada? Não seria melhor deitar-se? Pode ter uma recaída, Ellen, ficando de pé até tão tarde.
— Não, minha querida, não estou cansada — res­pondi.
Vendo que não conseguia nada, tentou outra maneira de me mostrar que não gostava daquela ocupação. Pôs-se a bocejar e a espreguiçar-se, dizendo:
— Ellen, estou cansada.
— Pare de ler, então, e vamos conversar — sugeri.
Aquilo foi pior ainda: começou a suspirar e a mos­trar-se impaciente, de vez em quando consultando o reló­gio, até que, às oito horas, foi para o seu quarto, tonta de sono, a julgar pelo seu olhar pesado e o constante esfregar de olhos. Na noite seguinte pareceu-me ainda mais impa­ciente; e na terceira noite queixou-se de uma dor de ca­beça e recolheu-se. Achei aquele comportamento muito estranho e, após ter ficado muito tempo sozinha, resolvi ir ver se ela estava melhor e perguntar-lhe se não preferia descer e deitar-se no sofá, em vez de ficar às escuras, no quarto. Mas não achei Catherine, nem em seu quarto, nem em lugar nenhum da casa. Os criados afirmavam que não a tinham visto. Encostei o ouvido à porta do quarto do Sr. Linton: silêncio completo. Voltei para o quarto dela, apa­guei a vela e sentei-me à janela.
Era uma noite de luar; uma neve fina cobria o chão e pensei que talvez ela pudesse ter tido a idéia de dar uma volta pelo jardim, para desanuviar a cabeça. Vi um vulto esgueirar-se ao longo da cerca interna do parque, mas não era a minha jovem ama: à luz de uma lanterna, não tardei a reconhecer um dos cavalariços. Ficou um tempo considerável olhando para a estrada que atravessava o par­que e depois começou a andar rapidamente, como se tives­se visto alguma coisa, e voltou dali a pouco, puxando pela rédea o pônei de Catherine; não tardou que ela aparecesse ao seu lado, em roupa de montaria. O homem levou o animai silenciosamente pela grama, em direção à cavalariça. Cathy entrou pela janela envidraçada da sala de visi­tas e subiu, sem fazer barulho, até o quarto, onde eu a esperava. Fechou cuidadosamente a porta, tirou os sapa­tos cobertos de neve, desatou o chapéu e estava tratando, sem suspeitar da minha presença, de despir a capa, quando de repente me levantei e lhe revelei minha presença. A surpresa petrificou-a, durante um instante: ela deixou es­capar uma exclamação de espanto e ficou como que presa ao chão.
— Minha querida Srta. Catherine — comecei, de­masiado agradecida pela sua recente meiguice para me pôr a zangar com ela. — Onde é que você foi, a esta hora? E por que tentar enganar-me, contando-me uma mentira? Onde foi que esteve? Fale.
— Fui até o fundo do parque — gaguejou ela. — Não lhe contei nenhuma mentira.
— Não foi a nenhum outro lugar? — perguntei.
— Não — foi a resposta murmurada.
— Oh, Catherine! — exclamei, tristemente. — Você bem sabe que não andou procedendo direito, ou não seria obrigada a me dizer uma mentira. Isso é que me entristece. Preferia ficar três meses doente a ouvi-la inventar uma mentira.
Ela rompeu em lágrimas e abraçou-me.
— Ellen, tenho tanto medo de que você se zangue! — disse. — Prometa que não se zanga e lhe contarei a verdade: detesto ter de esconde-la.
Sentamo-nos junto à janela; garanti-lhe que não ralharia com ela, fosse qual fosse ou seu segredo — de que, naturalmente, suspeitava —, e ela começou:
— Fui ao Morro dos Ventos Uivantes, Ellen, e não deixei de ir nem um dia, desde que você caiu doente; a não ser três dias antes e dois depois que você se levantou. Dei a Michael livros e gravuras em troca de aprontar Minny todas as noites e de pô-la de volta na cavalariça: mas você também não deve ralhar com ele. Chegava ao Morro às seis e meia e geralmente ficava até as oito e meia; depois, galopava para casa. Não ia lá para me divertir: quase sempre me sentia muito infeliz. Só de vez em quando me sentia feliz: uma vez por semana, talvez. A princípio, pensei que ia ser muito difícil convencê-la a me deixar cumprir a palavra dada a Linton, pois prometera voltar no dia seguinte, quando viemos embora; mas você não desceu, facilitando-me as coisas. Enquanto Michael con­sertava a fechadura do portão do parque, naquela tarde, apossei-me da chave e contei-lhe que o meu primo queria que eu fosse visitá-lo, porque estava doente e não podia vir à granja; e que papai não me queria deixar ir. . . e negociei com ele a respeito do pônei. Michael gosta muito de ler e está pensando em deixar o emprego para se casar; de modo que me propôs que lhe emprestasse livros da bi­blioteca, em troca de fazer o que eu quisesse; mas preferi emprestar-lhe dos meus livros, o que ele ainda achou melhor.
"Na minha segunda visita, encontrei Linton bem-humorado. Zillah (a governanta deles) preparou-nos um aposento limpo e um bom fogo e disse-nos que Joseph estava na igreja e Hareton Earnshaw saíra com os cães (para caçar faisões nos nossos bosques, conforme ouvi dizer mais tarde), de modo que podíamos fazer o que quiséssemos. Trouxe-me vinho licoroso e pão de mel, parecendo-me muito solícita. Linton sentou-se na poltrona e eu na cadeirinha de balanço, junto à lareira, e rimos e con­versamos e falamos de muitas coisas: planejamos aonde iríamos e o que faríamos no verão. Não vou repetir o que combinamos, porque você acharia isso tolo.
"Por pouco, porém, não discutimos. Ele disse que a melhor maneira de passar um dia quente de julho era ficar deitado, da manhã à noite, numa moita de urzes, no meio da charneca, com as abelhas zumbindo de flor em flor e as cotovias cantando bem alto, sobre as nossas cabe­ças, e o céu azul e o sol brilhando sem parar e sem nuvens. Essa era a sua idéia da perfeita ventura celestial: a minha era balançar-me numa árvore verde e rumorejante, com o vento de oeste soprando nas folhas e nuvens brancas esvoaçando no céu; e não só cotovias, mas também tordos e melros e pintarroxos e cucos derramando música por todos os lados e a charneca vista a distância e quebrada em ravinas frescas e nebulosas; perto, grandes massas de erva alta, ondulando à brisa; e bosques e água cantante e o mundo inteiro desperto e triunfante de alegria. Ele queria jazer num êxtase de paz; eu queria que tudo resplandecesse e dançasse em gloriosa aleluia. Disse-lhe que o seu paraíso não teria vida, e ele retrucou que o meu pareceria ébrio; disse-lhe que, no dele, eu adormeceria, e ele, que não po­deria respirar no meu, e começou a ficar muito irritado. Finalmente, concordamos em experimentar ambos, tão logo chegasse o bom tempo; e nos beijamos e fizemos as pazes.
"Após termos ficado sentados uma hora inteira, olhei para a grande sala, com seu soalho liso e sem tapetes, e pensei que bom seria inventarmos uma brincadeira, se tirás­semos a mesa do lugar; e pedi a Linton que fosse chamar Zillah, para brincarmos de cabra-cega; ela tentaria pegar-nos — como você costumava fazer, Ellen. Mas ele não quis: disse que aquilo não tinha graça. Concordou, porém, em jogar bola comigo. Encontramos duas bolas num armá­rio, entre um monte de brinquedos velhos, arcos, piões, raquetes e pelas. Uma delas tinha marcado um C, a outra, um H; quis ficar com a C, pois era a inicial de Catherine, ao passo que H podia significar Heathcliff, seu sobrenome; mas a bola H tinha o farelo saindo e Linton reclamou. Venci-o sempre e ele ficou novamente zangado; começou a tossir e voltou para a sua poltrona. Essa noite, porém, recuperou facilmente o bom humor: ficou encantado com duas ou três canções que lhe cantei — as suas canções, Ellen; e, quando tive de me vir embora, suplicou-me que voltasse na noite seguinte. Prometi-lhe que voltaria e vim a galope para casa. Sonhei com o Morro dos Ventos Uivantes e com o meu querido primo até de manhã cedo.
"Passei o dia seguinte triste: em parte por você estar doente e em parte por desejar que meu pai soubesse das minhas visitas e as aprovasse. Mas, depois do chá, o luar cobriu tudo; e, enquanto eu galopava, a tristeza foi se dis­persando. 'Terei outro belo serão', pensava comigo mesma; 'e, o que é melhor, o meu querido Linton também o terá.' Subi o jardim deles e ia dar a volta pelos fundos, quando o tal Earnshaw me apareceu, pegou nas rédeas e convidou-me a entrar pela frente. Acariciou o pescoço de Minny, dizendo que era um belo animal e que parecia querer falar com ele. Disse-lhe que largasse o meu cavalo ou se arris­caria a receber um coice. Ele respondeu, na sua pronúncia vulgar: 'Não pode fazer muito estrago', e examinou as patas de Minny com um sorriso. Tive vontade de fazê-lo experimentar, mas ele se afastou para abrir a porta e, ao levantar a tranca, olhou para a inscrição, em cima, e disse, com uma estúpida mistura de timidez e orgulho:
" 'Srta. Catherine! Já sei ler aquilo'.
" 'Ótimo!', exclamei. 'Vamos ouvir, então. Você ficou inteligente!'
"Ele soletrou e leu, sílaba por sílaba, o nome 'Hareton Earnshaw'.
" 'E os números?', perguntei, encorajando-o, ao per­ceber que ele tinha parado.
" 'Ainda não sei ler eles', respondeu.
" 'Puxa, que burro!', exclamei, com uma risada.
"O pateta ficou me olhando, com um sorriso pairando nos lábios e uma ruga entre os olhos, como se hesitasse em rir também: como se não soubesse ao certo se a minha risada fora fruto de uma agradável familiaridade ou — o que realmente era — expressão de desprezo. Acabei-lhe com as dúvidas recuperando a gravidade e dizendo-lhe que fosse embora, pois viera visitar Linton, e não a ele. O bobo corou — o luar bastava para que se pudesse ver isso —, deixou cair a mão da tranca e foi-se embora, o retrato vivo da vaidade ferida. Julgava-se no mesmo pé de igualdade de Linton, só por conseguir ler o seu próprio nome — e ficou tremendamente desapontado por eu não achar o mesmo."
— Um momento, Srta. Catherine! — interrompi. — e levou-me, ou, melhor, quase me carregou para dentro de casa.
"Ellen, eu estava completamente desesperada! Solucei e chorei tanto, que quase fiquei cega; enquanto isso, o ru­fião por quem você demonstra tanta simpatia permanecia de pé, à minha frente, atrevendo-se, de vez em quando, a me mandar calar e negando que tivesse tido a culpa; final­mente, assustado pela minha promessa de contar tudo a papai e fazer com que ele fosse preso e enforcado, come­çou também a gaguejar e saiu correndo, para esconder a sua covarde agitação. Mesmo assim, não consegui ver-me livre dele: quando, por fim, me convenceram a partir e eu já estava a umas cem jardas da propriedade, ele de repente emergiu das sombras da estrada, deteve Minny e impediu-me de continuar.
" 'Srta. Catherine, estou muito aflito', começou, 'mas acho que a culpa. . .'
"Dei-lhe uma chicotada, temendo que talvez ele me quisesse matar. Soltou as rédeas, explodindo numa das suas horríveis pragas, e eu voltei para casa a galope, quase fora de mim.
"Nessa noite não vim dar boa-noite a você e no dia seguinte não fui ao Morro: desejava muito ir, mas estava terrivelmente excitada e temia receber a notícia de que Linton morrera; por outro lado, estremecia, só de pensar que encontraria Hareton. No terceiro dia tomei coragem: de qualquer modo, não agüentava mais aquela ansiedade e novamente resolvi ir até lá. Saí às cinco, caminhando, pois pensava que poderia entrar na casa e subir ao quarto de Lin­ton sem que ninguém me visse. Entretanto, os cães anun­ciaram a minha aproximação. Zillah veio receber-me e, dizendo que 'o rapaz estava quase fino', fez-me entrar numa salinha toda atapetada e bem-arrumada, onde, para minha enorme alegria, deparei com Linton deitado num pequeno sofá, lendo um dos meus livros. Mas, durante uma hora inteira, recusou-se a falar comigo ou mesmo a olhar para mim, Ellen. Tem um gênio tão difícil! E o que mais me espantou, quando finalmente resolveu abrir a boca, foi ouvi-lo dizer a mentira de que eu fora a causadora de tudo e Hareton não tivera a menor culpa! Incapaz de responder, a não ser exaltada, levantei-me e saí da sala. Ele me cha­mou logo com um débil 'Catherine!' Não contava com a minha reação, mas não me virei e, no dia seguinte, não voltei lá, determinada a não mais visitá-lo. Só que era tão horrível ir para a cama e acordar sem ter notícias dele, que a minha decisão dissolveu-se antes mesmo de estar bem assente. Antes parecera-me malfeito ir até lá; agora parecia mal não ir. Michael veio perguntar-me se devia encilhar Minny. Respondi que sim e achei que estava cumprindo um dever, à medida que me aproximava do Morro. Tive de passar pelas janelas da frente para chegar ao terreiro: não adiantava esconder a minha presença.
" 'O patrãozinho está em casa', disse Zillah, vendo-me andar na direção da salinha de estar. Entrei; Earnshaw também lá estava, mas saiu imediatamente. Linton estava sentado na poltrona grande, meio adormecido. Encaminhando-me para a lareira, comecei, num tom sério, dese­jando que soasse verdadeiro:
" 'Como você não gosta de mim, Linton, e como pen­sa que vim de propósito para aborrecê-lo e prejudicá-lo, esta será a última vez que nos vemos: vim para me despe­dir. Diga ao Sr. Heathcliff que você não tem a mínima vontade de me ver e que ele não deve inventar mais men­tiras a respeito'.
" 'Sente-se e tire o chapéu, Catherine', respondeu ele. 'Você é tão mais feliz do que eu, que deveria ser melhor. Papai fala tanto nos meus defeitos e mostra tanto despre­zo por mim, que é natural que eu seja inseguro. Fico pen­sando se não serei mesmo tão desprezível como ele diz que eu sou — e fico tão amargurado, que odeio todo o mundo! Sou desprezível e quase sempre tenho mau gênio e maus pensamentos; se você quiser, pode se despedir de mim: ficará livre de um aborrecimento. Só lhe peço, Catherine, para me fazer justiça: acredite que, se pudesse ser bom e gentil como você é, eu o seria: e feliz e saudável. E acre­dite, também, que a sua bondade fez com que eu a amasse mais profundamente do que merecia: e, embora eu não pudesse e não possa deixar de lhe mostrar como sou, la­mento muito e sinto-me arrependido; hei de sentir-me arre­pendido e lamentar isso até o dia da minha morte!'
"Senti que ele falava a verdade e que devia perdoá-lo, embora pudéssemos brigar logo a seguir. Reconciliamo-nos; mas choramos, choramos ambos, durante o tempo todo em que lá fiquei: não inteiramente de pena, embora eu tivesse pena de que Linton tivesse aquela triste maneira de ser. Nunca fará com que os seus amigos se sintam bem e ele próprio nunca se sentirá bem! A partir daquela noite fui sempre para a salinha dele, pois seu pai voltou no dia seguinte.
"Três vezes apenas, se não me engano, passamos um serão alegre, fazendo planos e rindo, como na primei­ra noite; as demais visitas foram pouco agradáveis, ora pelo egoísmo e mau gênio dele, ora pelos seus queixumes: mas eu aprendi a suportar aqueles quase com tanta paciên­cia quanto estes. O Sr. Heathcliff evita-me propositada­mente: pode-se dizer que não o tenho visto. Este último do­mingo, tendo chegado mais cedo do que de hábito, ouvi-o ralhar de maneira cruel com o pobre Linton, pelo seu comportamento na noite anterior. Não sei como foi que ele soube, a menos que escutasse. Realmente, Linton com­portara-se bastante mal. Mas só a mim dizia respeito e interrompi a reprimenda do Sr. Heathcliff para lhe dizer isso. Ele caiu na risada e saiu, dizendo estar satisfeito por eu levar a coisa assim. Desde então, tenho dito a Linton que, quando quiser dizer coisas desagradáveis, fale baixo. Pronto, Ellen, você está a par de tudo. Não posso deixar de ir ao Morro, a menos que faça sofrer duas pessoas: ao passo que, se você não contar nada a papai, o fato de eu ir lá não prejudicará ninguém. Você não vai contar, não é? Seria horrível da sua parte."
— Decidirei isso até amanhã, Srta. Catherine — respondi. — Preciso pensar bem; vou deixá-la agora, para poder meditar.
Meditei sobre o assunto em voz alta, na presença do meu amo, pois fui direto ao quarto dele e contei-lhe toda a história, com exceção das conversas dela com o primo e de fazer menção a Hareton. O Sr. Linton ficou mais alar­mado e preocupado do que me demonstrou. Na manhã seguinte, Catherine soube da minha traição e soube tam­bém que as suas visitas secretas tinham chegado ao fim. Em vão chorou e suplicou ao pai que tivesse pena de Linton: tudo o que conseguiu foi a promessa de que ele escreveria, dando-lhe licença de vir à granja sempre que quisesse, mas explicando que não esperasse mais visitas de Catherine. Se ele soubesse do temperamento do sobrinho e do seu estado de saúde, talvez os tivesse privado até mesmo desse leve consolo.

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