segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O Morro dos Ventos Uivantes, Cap XXXll

1802

Este setembro, fui convidado a conhecer as charnecas de um amigo, no norte, e, a caminho, cheguei inesperada­mente a quinze milhas de Gimmerton. O estribeiro de uma estalagem de beira de estrada estava trazendo um balde de água para dessedentar os meus cavalos, quando passou uma carroça cheia de aveia verde, acabada de ceifar, e ele comentou:
— Aquilo está vindo de Gimmerton! Estão sempre três semanas atrasados com a colheita deles.
— Gimmerton? — repeti; minha residência nessa localidade já estava nebulosa na minha memória. — Ah, conheço! Fica muito longe daqui?
— Umas catorze milhas pra lá desses morros; mas a estrada é ruim — respondeu ele.
Senti o súbito desejo de fazer uma visita à Granja Thrushcross. Era pouco mais de meio-dia e pensei que melhor passaria a noite sob o meu próprio teto do que numa estalagem. Além do mais, bem poderia aproveitar o dia para acertar contas com o meu senhorio, poupando-me assim o incômodo de vir outra vez até ali. Após descansar um pouco, mandei o meu criado perguntar o caminho para o povoado e, com grande fadiga para as nossas montarias, fizemos a distância em cerca de três horas.
Deixei o meu criado em Gimmerton e desci o vale sozinho. A igreja acinzentada parecia mais cinzenta ainda e o cemitério ainda mais solitário. Avistei uma ovelha pastando a grama curta que crescia sobre as sepulturas.
O tempo estava bom, quente — demasiado quente para viajar; mas o calor não me impediu de apreciar o belo panorama à minha volta: se o tivesse visto, pela primeira vez, no fim do verão, estou certo de que me teria tentado a passar um mês naquela solidão. No inverno, nada havia de mais inóspito e, no verão, de mais divino, do que aque­les vales cercados por morros e do que aquelas ondulações de charneca.
Cheguei à granja antes do pôr-do-sol e bati à porta, mas a família já se tinha retirado para os fundos, a julgar por uma fina fumaça azulada que saía da chaminé da cozinha, e ninguém ouviu. Dei a volta e entrei pelo terrei­ro. Debaixo do alpendre estava uma menina de nove ou dez anos, tricotando, e uma velha fumava cachimbo, en­costada nos degraus.
— A Sra. Dean está? — perguntei à velha.
— A Sra. Dean? Não! — respondeu ela. — Não mora mais aqui: está lá em cima, no Morro.
— A senhora é a governanta, então? — insisti.
— É, eu tomo conta da casa — falou ela.
— Bem, eu sou o Sr. Lockwood, o dono da casa. Há algum quarto onde eu possa ficar? Quero passar a noite aqui.
— O patrão! — exclamou ela, atônita. — Quem que sabia que o senhor ia chegar? — O senhor devia ter man­dado avisar. Não tem nada pronto, não senhor!
Tirou o cachimbo da boca e entrou em casa; a me­nina seguiu-a e eu também, logo percebendo que o que ela dissera era verdade e, também, que a minha inesperada aparição quase a pusera fora de si. Disse-lhe que ficasse calma, que eu iria dar um passeio e que, entretanto, ela preparasse um canto de uma das salas para que eu jantasse e um quarto onde dormir. Não precisava varrer nem limpar o pó, apenas acender um bom fogo e pôr na cama lençóis passados. Ela parecia ansiosa por agradar, embora usasse a vassoura da lareira para remexer as brasas e mal em­pregasse vários outros utensílios caseiros. Saí, confiando em que encontraria um lugar onde repousar, quando re­gressasse. O Morro dos Ventos Uivantes era o objetivo da excursão que eu pretendia fazer. Mas pensei melhor e vol­tei, quando já tinha deixado o terreiro.
— Está tudo bem no Morro? — perguntei à velha.
— Está, pelo que a gente sabe — respondeu ela, pas­sando com um balde cheio de carvões em brasa.
Meu desejo era perguntar-lhe por que razão a Sra. Dean abandonara o seu posto na granja, mas era impos­sível detê-la com os carvões, de modo que dei meia-volta e saí, com o clarão do sol poente atrás de mim e o brilho prateado da lua surgindo à minha frente, quando deixei o parque e subi pelo atalho pedregoso que levava à pro­priedade do Sr. Heathcliff. Antes que eu chegasse diante da casa, tudo o que restava do dia era uma débil luz cor de âmbar vinda de oeste; mas o luar permitia-me ver to­das as pedras no caminho e todas as folhinhas de grama. Não tive nem de pular a cancela, nem de bater — ela cedeu à minha mão. "Que progresso!", pensei. E com as narinas constatei um outro: um aroma de goivos pairava no ar, vindo de entre as árvores frutíferas.
Tanto as portas quanto as gelosias estavam abertas; e, contudo, como geralmente acontece numa região carbonífera, um belo fogo vermelho iluminava a lareira: a alegria que ele dá aos olhos torna o calor suportável. Mas a sala do Morro é tão grande que os meus moradores têm espaço de sobra para se afastarem do fogo, se assim o desejarem; e, na verdade, as pessoas que lá estavam se tinham colocado perto de uma das janelas. Pude vê-las e ouvi-las falar antes mesmo de entrar e foi o que fiz, levado por um misto de curiosidade e inveja, que aumentou ao chegar mais perto.
Con-trário! — disse uma voz doce e cristalina. — É a terceira vez, seu burro! Não lhe vou dizer de novo. Trate de se lembrar ou lhe puxo o cabelo!
— Muito bem, contrário — retrucou outra voz, ressonante mas suave. — E agora dê-me um beijo, para re­compensar o meu esforço.
— Não, primeiro leia tudo certinho, sem um erro. O rapaz começou a ler: era um jovem bem vestido e
sentado a uma mesa, com um livro diante dele. Seus tra­ços corretos iluminavam-se de satisfação e seus olhos des­locavam-se, impacientemente, da página para uma mãozinha branca pousada em seu ombro, que lhe ministrava um tapa no rosto sempre que sua dona percebia no aluno sinais de falta de atenção. A moça estava de pé, atrás dele, seus cachos louros e lustrosos misturando-se, de vez em quando, com os escuros cabelos dele, sempre que se inclinava para acompanhar-lhe a leitura; e o rosto dela!
— ainda bem que ele não lhe podia ver o rosto, ou não poderia prestar atenção ao que lia. Mas eu lhe via o rosto; e mordi os lábios, despeitado, por ter jogado fora a chance que poderia ter tido de fazer algo mais do que contemplar a sua sorridente beleza.
A tarefa terminou, com mais alguns erros; mas o aluno reclamou um prêmio e recebeu pelo menos cinco beijos
— os quais, entretanto, generosamente retribuiu. Dirigi­ram-se, depois, para a porta e, pela conversa deles, de­preendi que iam sair para dar um passeio pela charneca. Imaginei que seria condenado por Hareton Earnshaw, em pensamento se não por palavras, à região mais profunda do inferno, se me fizesse mostrar naquela ocasião; e, sentindo-me maldoso e mesquinho, esgueirei-me dali e pro­curei refúgio na cozinha. Também aí a porta estava aberta e na soleira se sentava a minha velha amiga Nelly Dean, cosendo e cantando, o que de vez em quando era inter­rompido por uma voz vinda de dentro, cujas palavras cheias de intolerância nada tinham de musicais.
— Juro que preferia mil vezes ouvir eles praguejando da manhã até de noite, que ouvir você cantar! É uma vergonha, eu não poder abrir a Bíblia Sagrada, sem você começar a cantar hinos para Satã e em honra de tudo quan­to é pecado deste mundo! Agora que vocês estão bem, e o pobre rapaz vai acabar se perdendo! Coitado! — acres­centou, com um gemido. — Está enfeitiçado, eu sei! Ó Senhor, julgai elas, pois não tem outra lei nem outra jus­tiça nesta terra!
— E não! Ou já estaríamos ardendo, creio — retru­cou a minha antiga governanta. — Leia a sua Bíblia, como bom cristão, e não ligue para mim. O que eu estou cantan­do se chama As bodas da bela Aninha, e é para dançar.
A Sra. Dean ia recomeçar a cantar, quando eu entrei. Reconhecendo-me logo, ela se pôs de pé num salto, excla­mando:
— Deus o abençoe, Sr. Lockwood! Por que é que não nos avisou da sua chegada? Está tudo fechado, lá na granja.
— Já arranjei acomodações lá — respondi. — Ama­nhã mesmo vou embora. E como veio parar aqui, Sra. Dean? Conte-me.
— Zillah despediu-se e o Sr. Heathcliff pediu-me que viesse para cá, pouco depois de o senhor ter partido para Londres, e que ficasse até o senhor voltar. Mas entre, por favor! Veio de Gimmerton a pé?
— Não, da granja — respondi. — Enquanto pre­param um quarto para mim lá, quero acertar contas com o seu patrão, pois não creio que terei outra oportunidade, tão depressa.
— Que contas? — perguntou Nelly, conduzindo-me para dentro da casa. — O patrão saiu e não voltará tão cedo.
— As contas do aluguel — respondi.
— Ah, sim! Nesse caso, tem de acertá-las com a Sra. Heathcliff — falou ela — ou, antes, comigo. Ela ainda não aprendeu a dirigir os seus negócios, de modo que eu me encarrego disso, pois não há mais ninguém.
Olhei para ela, espantado.
— Ah, vejo que não sabe que Heathcliff morreu! — continuou ela.
— Heathcliff morreu! — repeti, atônito. — Há quan­to tempo?
— Há três meses. Mas sente-se, dê-me o seu chapéu e já lhe conto tudo. Espere, o senhor não comeu nada, não é?
— Não quero nada, obrigado. Pedi que me prepa­rassem uma ceia, para quando voltar à granja. Sente-se, também. Nunca podia imaginar que ele tivesse morrido! Conte-me como foi. Diz que não os espera de volta ce­do. . . os dois jovens?
— Não. Todas as noites preciso ralhar com eles por causa desses passeios noturnos. . . mas eles não ligam para mim. Pelo menos, beba uma caneca da sua velha cer­veja; o senhor parece cansado.
Apressou-se a ir buscar a cerveja antes que eu pudesse recusar e ouvi Joseph perguntar se "não era um escândalo ela ter amigos com a idade dela? E ainda por cima, roubar cerveja da adega do patrão! Era até uma vergonha ele ver e ficar calado".
Ela não se deu ao trabalho de responder; voltou dali a um minuto, trazendo uma caneca de prata, cujo conteú­do bebi com prazer. A seguir contou-me o resto da história de Heathcliff. Tivera um fim "esquisito", disse.
Fui chamada aqui ao Morro uma quinzena depois de o senhor se ter ido embora — contou; — e obedeci alegre­mente, por causa de Catherine. Logo que a vi, porém, fiquei chocada e preocupada: ela tinha mudado tanto desde a nossa separação! O Sr. Heathcliff não me explicou as ra­zões por que havia resolvido chamar-me; disse apenas que me queria aqui e que estava farto de ver Catherine. Eu tinha de transformar a saleta numa salinha de estar e fazer com que ela ficasse comigo. Já chegava ele ser obrigado a vê-la uma ou duas vezes por dia. Catherine pareceu sa­tisfeita com isso e, aos poucos, fui lhe trazendo, às escon­didas, uma boa quantidade de livros e outros artigos que haviam sido dela, na granja, imaginando que viveríamos relativamente bem. Mas a ilusão não durou muito. Cathe­rine, a princípio contente, não tardou a ficar irritadiça e inquieta. Por um lado, estava proibida de sair do jardim e punha-a num estado de terrível mau humor ser obrigada a ficar confinada aos seus estreitos limites, à medida que a primavera se afirmava; por outro lado, as minhas tare­fas forçavam-me a deixá-la constantemente entregue a si mesma, e ela se queixava de solidão: preferia discutir com Joseph na cozinha a ficar em paz, mas só. Não me importavam as brigas deles; mas Hareton também era muitas vezes compelido a se refugiar na cozinha, quando o patrão queria a casa só para si; e, embora de início ela saísse ao vê-lo entrar ou viesse ajudar-me nas minhas ocupações, e evitasse dirigir-se a ele — e embora ele estives­se sempre tão calado e emburrado quanto lhe era possível —, após algum tempo ela mudou de atitude e ficou inca­paz de o deixar sossegado: ora lhe falava, provocando-o; ora comentava a sua estupidez e ociosidade, expressando o seu espanto de que ele pudesse suportar a vida que le­vava — como podia passar toda a noite olhando para o fogo e cochilando.
— É igualzinho a um cão, não é, Ellen? — observou certa vez. — Ou a um desses burros que puxam carro­ças. . . Faz o seu trabalho, come o que lhe põem à frente e dorme! Que espírito vazio, horrível, ele deve ter! Você alguma vez sonha, Hareton? Com o quê? Mas você é inca­paz de falar comigo!
E olhou para ele; mas Hareton recusou-se a falar ou mesmo a olhar para ela.
— Talvez ele esteja sonhando, agora — continuou ela. — Estremeceu os ombros igualzinho a Juno. Pergun­te-lhe, Ellen.
— O Sr. Hareton vai acabar pedindo ao patrão para mandá-la para cima, se você não se comportar! — re­pliquei. Ele não só estremecera os ombros, como também fechara o punho, dando a impressão de que pretendia usá-lo.
— Sei por que é que Hareton nunca fala quando eu estou na cozinha! — exclamou ela, de outra feita. — Tem medo de que eu ria dele. Ellen, que é que você acha? Certa vez, começou a aprender a ler sozinho e, como eu risse, jogou os livros no fogo e desistiu de aprender; não foi, bobo?
— E você, não foi impertinente? Vamos, responda — disse eu.
— Talvez tenha sido — continuou ela —, mas não esperava que ele fosse tão bobo. Hareton, se eu lhe der um livro, você quer tentar de novo?
Colocou-lhe na mão o livro que estava folheando; ele o atirou longe e disse que, se ela não o deixasse em paz, lhe torcia o pescoço.
— Bem, vou pô-lo aqui — falou —, na gaveta da mesa. Vou me deitar.
Sussurrou-me que visse se ele ia buscá-lo e subiu. Mas Hareton nem sequer se aproximou da mesa. Disse-lhe isso no dia seguinte e ela ficou muito desapontada. Via-se que lamentava vê-lo perseverar na teimosia e na indolência; a consciência reprovava-a por tê-lo desmoralizado a ponto de ele não querer mais progredir. Mas não cessava de pensar em como remediar o mal feito: enquanto eu pas­sava a ferro ou fazia qualquer outra coisa na cozinha, ela trazia um dos seus livros prediletos e lia em voz alta, para mim. Se Hareton lá estava, ela geralmente parava num trecho interessante e deixava o livro aberto. Fez isso repe­tidamente, mas ele era mais teimoso que um burro e, em vez de morder a isca, na estação chuvosa punha-se a fumar com Joseph e os dois ficavam sentados como autômatos, um de cada lado do fogo, o mais velho felizmente dema­siado surdo para entender as bobagens danadas que ela fa­lava, como ele dizia, e o jovem esforçando-se por parecer não a ouvir. Nas noites de luar, Hareton saía para caçar e Catherine ficava bocejando ou suspirando e pedindo-me que falasse com ela, para correr para o pátio ou para o jardim, tão logo eu começava; e, como último recurso, chorava e dizia estar cansada de viver, pois a sua era uma vida inútil.
O Sr. Heathcliff, cada vez mais misantropo, quase banira Earnshaw dos seus aposentos. Devido a um aci­dente ocorrido no começo de março, o rapaz passou alguns dias confinado na cozinha. A espingarda disparara ines­peradamente, certo dia que saíra à caça; ferira-se no braço e perdera uma grande quantidade de sangue, antes de che­gar a casa. Conseqüentemente, via-se condenado a ficar junto da lareira, sem se mexer, até se recuperar. Catherine parecia gostar de tê-lo ali: pelo menos, parecia detestar cada vez mais a saleta do primeiro andar, e fazia-me pro­curar ocupações no andar térreo, para poder fazer-lhe companhia.
Na segunda-feira de Páscoa, Joseph foi à feira de Gimmerton, com algumas cabeças de gado para vender. À tarde, pus-me a passar roupa na cozinha. Earnshaw sen­tava-se, como sempre taciturno, à beira da chaminé e a minha jovem ama procurava passar o tempo desenhando figuras nas vidraças, cantarolando e lançando olhadelas de aborrecimento e impaciência na direção do primo, que continuava a fumar como se nada visse, olhos fixos no fogo. Quando eu lhe disse que não me tirasse a luz, ela se retirou para junto da lareira. Não prestei mais atenção nela, até que a ouvi dizer:
— Sabe de uma coisa, Hareton? Descobri que que­ro. . . que gostaria de que você me tratasse mesmo como primo. Mas você é sempre tão rude para comigo, parece sempre tão zangado. . .
Hareton não respondeu.
— Hareton, está me ouvindo? — persistiu ela.
— Fora daqui! — grunhiu ele, com inflexível rudeza.
— Deixe-me tirar-lhe esse cachimbo — falou ela, estendendo cautelosamente a mão e puxando-o dentre os lábios dele.
Antes que Hareton pudesse fazer alguma coisa, o ca­chimbo fora partido e jogado para trás do fogão. Ele pra­guejou e pegou outro.
— Pare! — gritou ela. — Primeiro você precisa escutar-me. E não posso falar com essas nuvens de fumaça no meu rosto.
— Vá para o inferno! — exclamou ele, com feroci­dade. — Vá para o inferno e me deixe em paz!
— Não — retrucou ela —, não vou deixá-lo em paz; não sei o que fazer para que você fale comigo. . . e você está resolvido a não me escutar. Quando o chamo de estú­pido, não significa que o desprezo. Vamos, você tem de conversar comigo, Hareton! Você é meu primo.
— Não quero nada com você e com o seu maldito orgulho nem com sua mania de caçoar dos outros! — respondeu ele. — Prefiro ir para o inferno que olhar para você. Vá saindo daqui, já, neste minuto!
Catherine franziu a testa e postou-se novamente junto à janela, mordendo o lábio e cantarolando para ocultar uma vontade crescente de soluçar.
— Devia fazer as pazes com sua prima, Sr. Hareton — intrometi-me —, uma vez que ela se mostra arrepen­dida da sua impertinência. Far-lhe-ia muito bem: o senhor ficaria outro se a tivesse como amiga.
— Amiga! — repetiu ele. — Ela me odeia e não me acha capaz nem de lhe limpar os sapatos! Não! Mesmo que eu me transformasse num rei não ia correr mais o risco de que ela ria de mim.
— Não sou eu que o odeio, Hareton, você é que me odeia! — chorou Cathy, incapaz de se conter por mais tempo. — Você me odeia tanto quanto o Sr. Heathcliff, ou mais ainda.
— Você é uma mentirosa dos diabos — retrucou Earnshaw. — Por que é que eu fiz ele ficar furioso mais de cem vezes, defendendo você? E isso quando você caçoa­va de mim e. . . Continue me atormentando e eu saio daqui e vou contar que você me obrigou a sair da cozinha!
— Não sabia que você me tinha defendido — res­pondeu ela, enxugando os olhos — e sentia-me triste e amargurada. Mas agora eu lhe agradeço e lhe peço que me perdoe. Que mais posso fazer?
Voltou para junto dele e estendeu-lhe a mão. Hareton fechou a cara como se fosse uma nuvem carregada e con­servou os punhos resolutamente fechados e os olhos fixos no chão. Catherine, instintivamente, deve ter adivinhado que era pura teimosia e não antipatia o que o levava a proceder assim; porque, após permanecer um instante inde­cisa, curvou-se e beijou-o na face, docemente. Pensou que não a tinha visto e, endireitando-se, postou-se de novo à janela. Abanei a cabeça, desaprovadoramente, e ela corou e sussurrou:
— Bem, que é que eu podia fazer, Ellen? Ele não queria dar-me a mão e nem olhar para mim. Tinha de lhe mostrar, de alguma maneira, que gosto dele, que quero que sejamos amigos.
Não posso afirmar se o beijo convenceu Hareton: du­rante alguns minutos, tomou muito cuidado para não deixar ver o rosto e, quando por fim o ergueu, não sabia para onde olhar.
Catherine pôs-se a embrulhar um dos seus livros pre­feridos em papel branco e, depois de passar-lhe uma fita, e endereçá-lo ao Sr. Hareton Earnshaw, pediu-me que lhe servisse de embaixatriz e entregasse o presente ao desti­natário.
— Diga-lhe que, se ele o aceitar, lhe ensinarei a lê-lo corretamente, mas que, se ele o recusar, irei para cima e nunca mais o incomodarei.
Levei o livro e repeti o recado, ante o olhar ansioso da minha patroa. Hareton continuava de punhos cerrados, de modo que lhe pousei o livro nos joelhos, de onde ele não o tirou. Voltei ao meu trabalho. Catherine reclinou a cabeça e os braços na mesa, até ouvi-lo desembrulhar o presente; imediatamente se levantou e se foi sentar ao lado do primo. Ele estremeceu e seu rosto abriu-se, como se tivesse descartado de vez toda a rudeza. Mas não pôde criar coragem para responder ao olhar interrogativo da prima ou ao seu sussurrado pedido:
— Diga que me perdoa, Hareton! Ficaria tão feliz se você dissesse que sim!
Ele murmurou algo inaudível.
— E você vai ser meu amigo? — insistiu Catherine.
— Não, você ficaria envergonhada de mim — res­pondeu ele; — cada vez mais envergonhada, à medida que fosse me conhecendo; e eu não posso agüentar isso.
— Quer dizer que não quer ser meu amigo? — per­guntou ela, sorrindo docemente e chegando-se mais perto dele.
Não consegui ouvir mais nada mas, ao erguer a ca­beça, vi dois rostos tão radiantes curvados sobre a página do livro, que percebi haver sido o tratado de paz ratifi­cado por ambas as partes — e os inimigos foram, desde então, os melhores aliados.
O livro era cheio de belas gravuras; tanto elas como a posição em que os dois se encontravam fizeram com que permanecessem imóveis até Joseph voltar para casa. O po­bre velho ficou boquiaberto ao deparar com Catherine sen­tada no mesmo banco que Hareton Earnshaw e apoiando a mão no ombro dele sem que o seu favorito a arredasse; o espanto foi tal, que nem pôde falar nada. A sua emoção revelou-se apenas através dos imensos suspiros que soltou, ao abrir solenemente a sua grande Bíblia em cima da mesa, cobrindo-a de notas sujas que tirara da carteira, o produto das transações do dia. Por fim, chamou Hareton.
— Leve isto para o patrão, rapaz — falou —, e fique por lá. Eu vou indo para o meu quarto. Isto aqui não está próprio para nós: temos de procurar outro lugar.
— Venha, Catherine — disse eu. — Nós também vamos subir; já terminei de passar.
— Ainda não são oito horas! — respondeu ela, levantando-se a contragosto. — Hareton, vou deixar o livro em cima da lareira e amanhã trarei mais.
— Vou jogar fora todo livro que eu encontrar — falou Joseph. — Agora, vocês podem fazer o que quiser!
Cathy respondeu que, se isso acontecesse, ela faria o mesmo com os livros dele e, sorrindo ao passar por Ha­reton, subiu a escada, cantando — mais alegre, creio, do que jamais estivera naquela casa, exceto, talvez, durante as suas primeiras visitas a Linton.
A amizade assim iniciada cresceu rapidamente, em­bora encontrasse interrupções temporárias. Earnshaw não se civilizou da noite para o dia e a minha patroa não era nenhum modelo de paciência; mas, como ambos deseja­vam virtualmente a mesma coisa — uma, amar e estimar, o outro, amar e ser estimado —, no fim conseguiram en­tender-se muito bem.
Como vê, Sr. Lockwood, era fácil conquistar o cora­ção de Catherine. Mas agora estou contente de que o senhor não o tenha tentado. O que eu mais desejo é a união desses dois jovens. No dia em que eles se casarem, serei a mulher mais feliz de toda a Inglaterra!

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