segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O Morro dos Ventos Uivantes, Cap XXXl

Ontem fez um dia de sol, calmo e frio. Fui até o Morro, conforme pensara; minha governanta pediu-me para levar um bilhete à sua jovem ama e eu não recusei, pois a boa mulher não via nada de estranho no pedido. A porta da frente estava aberta, mas o portão continuava zelosamente trancado, como quando da minha última visi­ta. Bati e chamei Earnshaw, ocupado entre os canteiros do jardim; ele veio abrir e eu entrei. O rapaz é um belo tipo rústico. Desta vez reparei bem nele; mas parece fazer o possível por não tirar partido das suas qualidades.
Perguntei se o Sr. Heathcliff estava em casa. Ele res­pondeu que não, mas que viria para o almoço. Eram onze da manhã e anunciei a minha intenção de entrar e esperar por ele, diante do que imediatamente largou as ferramen­tas e me acompanhou, mais como um cão de guarda do que como um substituto para o dono da casa.
Entramos juntos; Catherine estava na sala, prepa­rando hortaliças para o almoço; pareceu-me mais taciturna e menos animada do que da primeira vez em que a vira. Mal levantou os olhos para mim e continuou na sua tare­fa com o mesmo descaso para as mais corriqueiras normas de polidez que antes — não retribuindo, de nenhuma ma­neira, a minha reverência e os meus bons-dias.
"Não me parece tão amável", pensei, "quanto a Sra. Dean quer me levar a crer. É muito bonita, sem dúvida, mas não é nenhum anjo."
Earnshaw ordenou-lhe que levasse as suas coisas para a cozinha. — Leve-as você — retrucou ela, empurrando-as para longe, tão logo terminou; e, sentando-se num banquinho junto à janela, começou a recortar figuras de pássaros e animais nas cascas de nabo que tinha ao regaço. Apro­ximei-me, fingindo querer ver o jardim, e — pelo menos no meu entender — deixei-lhe cair no colo o bilhete da Sra. Dean, sem que Hareton se apercebesse disso. Mas ela perguntou, em voz alta: — O que é isso? — e sacudiu-o.
— Uma carta de uma velha amiga, a governanta da granja — respondi, aborrecido por ela ter revelado a mi­nha boa ação e temeroso de que se pensasse que era uma carta minha. Ela a teria de bom grado apanhado, mas Hareton foi mais rápido; pegou-a e colocou-a no colete, dizendo que o Sr. Heathcliff a leria primeiro. Ao ouvir isso, Catherine voltou-se silenciosamente de costas para nós e, disfarçadamente, tirou o lenço e levou-o aos olhos; ao que o primo, após ter lutado contra os seus bons sen­timentos, puxou da carta e jogou-a no chão, aos pés dela, da maneira mais brutal possível. Catherine apanhou-a e leu-a ansiosamente; depois fez-me algumas perguntas a respeito dos habitantes, racionais e irracionais, da sua anti­ga casa e, olhando na direção dos morros, murmurou, num solilóquio:
— Como gostaria de descer aquela colina montada em Minny! Como gostaria de subir àquele morro! Oh! como estou cansada. . . Sinto-me embolorada, Hareton! — E reclinou a bonita cabeça no peitoril, com um misto de bocejo e suspiro, que lhe dava um ar de abstrata tris­teza, não se importando nem querendo saber se a estáva­mos vendo.
— Sra. Heathcliff — disse eu, após ter passado algum tempo calado —, sabe que a conheço muito bem? Tão bem, que acho estranho a senhora não falar comigo. A minha governanta não se cansa de falar na senhora e de elogiá-la. Ficará muito desapontada, se eu voltar sem outra notícia a não ser que a senhora recebeu a carta e não disse nada!
Ela pareceu pensar no que eu lhe dizia e perguntou:
— Ellen gosta do senhor?
— Muito — respondi, sem hesitar.
— Diga-lhe — continuou ela — que eu gostaria de poder responder à carta, mas não tenho com que escrever: nem mesmo um livro, do qual arrancar uma folha.
— Nem um livro! — exclamei. — Como pode viver aqui sem livros, se me permite perguntar?! Embora tenha à mão uma grande biblioteca, muitas vezes me sinto entediado, na granja; se me tirassem os livros, ficaria deses­perado!
— Eu também estava sempre lendo quando tinha livros — retrucou Catherine. — Mas o Sr. Heathcliff nunca lê e meteu na cabeça a idéia de destruir os meus livros. Há meses que não vejo uma letra. Ou melhor, uma vez passei em revista os volumes de teologia de Joseph, para sua grande irritação; e outra vez, Hareton, descobri uma biblioteca secreta no seu quarto: alguns livros em latim e grego e alguns volumes de contos e poesia, todos velhos amigos. Trouxe os últimos para cá. . . e você os arrecadou como uma pega junta colheres de prata, pelo simples pra­zer de roubar! Não lhe servem para nada; ou então você os escondeu com a má intenção de, já que não os pode ler, não deixar ninguém mais ter essa alegria. Quem sabe se a sua inveja não induziu o Sr. Heathcliff a tirar-me os meus tesouros? Mas tenho a maioria gravada na cabeça e no coração e disso vocês não podem privar-me!
Earnshaw enrubesceu, ao ouvir a prima revelar o seu secreto acervo literário, e tartamudeou uma indignada de­fesa das suas acusações.
— O Sr. Hareton está desejoso de aumentar a sua cultura — falei, acorrendo em defesa dele. — Não o move a inveja e sim o desejo de emular os seus conhecimentos. Em poucos anos será uma pessoa culta.
— E, enquanto isso, quer me ver transformada em burra — replicou Catherine. — Sim, às vezes ouço-o ten­tando soletrar e ler sozinho, e não imagina os erros que faz! Gostaria que repetisse Chevy Chase como o leu on­tem: era de morrer de rir. Fique sabendo que o ouvi; e ouvi-o folhear o dicionário, para procurar as palavras difí­ceis, e depois praguejar porque não conseguia ler as expli­cações!
O jovem, evidentemente, ficou furioso de ser objeto de troça pela sua ignorância e ridicularizado por tentar acabar com ela. Eu também achei aquilo de muito mau gosto e, lembrando-me do que a Sra. Dean me contara a respeito da sua primeira tentativa de acabar com as trevas em que fora criado, observei:
— Mas, Sra. Heathcliff, todos nós começamos do nada e todos tropeçamos e vacilamos no início. Se os nos­sos mestres tivessem feito pouco de nós, em vez de nos ajudar, ainda estaríamos tropeçando e vacilando.
— Ora — retrucou ela —, eu não quero limitar os conhecimentos dele; contudo, ele não tem o direito de se apropriar do que é meu e de torná-lo ridículo aos meus ouvidos com os seus erros crassos e a sua terrível pro­núncia! Esses livros, sejam de prosa ou poesia, são para mim sagrados e detesto vê-los profanados por ele! Além do mais, ele escolheu os trechos que eu mais gosto de repe­tir, como que de propósito.
O peito de Hareton arquejou um momento em silên­cio: ele estava num estado de mortificação e raiva que não era fácil suprimir. Levantei-me e, desejoso de lhe poupar embaraços, postei-me junto à porta, olhando a paisagem. Ele seguiu o meu exemplo e saiu da sala; mas logo voltou, trazendo meia dúzia de livros nas mãos, os quais jogou no regaço de Catherine, dizendo:
— Pegue eles! Nunca mais vou querer ler eles ou pensar neles!
— Agora não os quero — retrucou ela. — Sempre que os lesse pensaria em você e os odiaria.
Abriu um volume que estava, visivelmente, muito manuseado e leu um trecho, à maneira hesitante de um principante; deu uma risada e jogou-o longe. — E escute só — continuou, provocadoramente, começando a ler uma velha balada do mesmo jeito.
Mas o amor-próprio dele não agüentava mais humi­lhações. Ouvi — e não posso dizer que o desaprovasse — o ruído sonoro de uma bofetada. A impertinente fizera o possível por ferir a sensibilidade, embora inculta, do primo e um violento tapa foi a única maneira que teve de pagar os tormentos morais por ela infligidos. Depois, juntou os li­vros e lançou-os ao fogo. Li no seu rosto um sentimento de angústia por ter de sacrificá-los. Imaginei que, ao vê-los se consumirem, ele recordava o prazer que já lhe tinham dado e o triunfo e a satisfação cada vez maior que esperara de­les; e adivinhei o estímulo que ele tinha para os seus estu­dos secretos. Contentara-se com os trabalhos do campo e as diversões animalescas, até que Catherine surgira no seu caminho. Vergonha de ser escarnecido por ela e a espe­rança da sua aprovação haviam-no feito dar os primeiros passos; mas, ao invés de evitar o escárnio e ganhar a esti­ma, os seus esforços para progredir só tinham produzido o efeito oposto.
— Sim, essa é a única vantagem que um bruto como você pode obter dos livros: alimentar o fogo! — gritou Catherine, mordendo o lábio ferido e com um brilho de indignação nos olhos.
— Acho melhor você calar a boca! — exclamou ele, furioso.
A sua agitação pôs fim à conversa; avançou a passos largos para a porta, e dei-lhe passagem. Mas, antes que ele tivesse ultrapassado a soleira, o Sr. Heathcliff, subindo o jardim, deu de encontro com ele e, pondo-lhe a mão no ombro, perguntou:
— Que aconteceu, rapaz?
— Nada, nada — respondeu ele, e afastou-se, para ruminar sozinho o seu sofrimento e a sua ira.
Heathcliff ficou a olhá-lo e suspirou.
— Seria estranho se eu me contradissesse — mur­murou, sem saber que eu estava atrás dele. — Mas, quando busco o pai no rosto dele, a cada dia que passa é a ela que encontro mais. Como diabos é ele tão parecido? Mal posso olhar para ele.
Pôs os olhos no chão e entrou, a testa franzida. Havia em seu rosto uma expressão inquieta, aflita, que nunca antes lhe notara; e parecia mais magro. Ao vê-lo chegar, pela janela, a nora imediatamente fugiu para a cozinha, de modo que só eu fiquei na sala.
— Apraz-me vê-lo novamente de pé, Sr. Lockwood — disse ele, em resposta aos meus cumprimentos —, em parte por razões egoístas: é difícil suprir a sua falta neste deserto. Mais de uma vez perguntei o que o teria trazido até aqui.
— Receio que apenas um capricho — respondi —, ou talvez seja um capricho que me vai agora levar daqui. Partirei para Londres na próxima semana e devo avisá-lo de que não pretendo alugar a Granja Thrushcross além dos doze meses do contrato. Acho que não voltarei a mo­rar lá.
— Ah, sim? Está cansado de viver retirado do mun­do, não? — perguntou ele. — Mas, se veio pedir-me para deixar de pagar, a viagem foi em vão: nunca perdôo dívi­das a ninguém.
— Não vim pedir nada — exclamei, muito irritado. — Se quiser, posso acertar contas já — e puxei da minha carteira.
— Não, não — retrucou ele, friamente. — O senhor deixará o suficiente, em depósito, para cobrir as suas dívi­das, se não voltar: não estou com tanta pressa. Sente-se e almoce conosco; um convidado sobre quem estamos cer­tos de que não vai repetir a visita é, geralmente, bem-vindo. Catherine, traga as coisas para pôr a mesa. Onde é que você está?
Catherine reapareceu, carregando uma bandeja cheia de facas e garfos.
— Pode almoçar com Joseph — murmurou Heath­cliff, num aparte — e ficar na cozinha até o Sr. Lockwood ir embora.
Ela obedeceu logo; talvez não tivesse desejo de deso­bedecer. Vivendo entre rústicos e misantropos, provavel­mente não sabe apreciar gente superior quando a vê.
Com o Sr. Heathcliff taciturno, de um lado, e Hare­ton, absolutamente mudo, do outro, tive um almoço bem pouco agradável e despedi-me cedo. Teria saído pelos fun­dos, a fim de dar uma última olhadela a Catherine e aborre­cer o velho Joseph; mas Hareton recebeu ordens para con­duzir o meu cavalo e o meu anfitrião veio pessoalmente acompanhar-me até a porta, de modo que não pude reali­zar o meu desejo.
"Que vida horrível se leva naquela casa!", pensei, en­quanto cavalgava pela estrada. Que coisa mais romântica do que uma história de fadas teria sido para a jovem Sra. Linton Heathcliff se ela e eu tivéssemos iniciado um idílio, como a sua boa governanta desejava, e emigrado juntos para a agitada atmosfera da cidade!

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