segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O Morro dos Ventos Uivantes, Cap XXX

Fui uma vez ao Morro, mas não a vi desde que ela se foi: Joseph segurou a porta com a mão, quando fui perguntar por ela, e não me deixou entrar. Disse que a Sra. Linton estava ocupada e que o patrão não estava em casa. Zillah contou-me alguma coisa da maneira como vivem; de outra forma, eu mal saberia quem tinha mor­rido e quem continuava vivo. Acha Catherine orgulhosa e, pelos seus comentários, deduzo que não gosta dela. A minha jovem ama pediu-lhe ajuda, assim que chegou, mas o Sr. Heathcliff disse-lhe que cuidasse da sua vida e dei­xasse a sua nora cuidar de si mesma — ao que Zillah aquiesceu de boa vontade, pois é uma mulher mesquinha e egoísta. Catherine reagiu infantilmente a esse descaso; pagou-o com desdém e assim colocou a minha informante entre os seus inimigos, como se lhe tivesse feito alguma coisa. Há cerca de mês e meio, tive uma longa conversa com Zillah — pouco antes de o senhor vir para cá —, um dia em que nos encontramos na charneca, e eis o que ela me contou:
— A primeira coisa que a Sra. Linton fez, ao chegar ao Morro, foi correr escada acima, sem sequer dar boa-noite a mim e a Joseph; fechou-se no quarto de Linton e lá ficou até de manhã. Depois, quando o patrão e Earn­shaw estavam tomando o desjejum, entrou na sala e per­guntou, com voz trêmula, se podia chamar o médico, pois o seu primo estava muito mal.
" 'Já sabemos disso!', respondeu Heathcliff. 'Mas a vida dele não vale dez réis e não vou gastar dinheiro com ele.'
" 'Mas eu não sei o que fazer', insistiu ela, 'e se nin­guém me ajudar ele morrerá!'
" 'Saia da sala', gritou o patrão, 'e nunca mais me fale dele! Ninguém aqui se importa com o que lhe possa acontecer; se você se importa, cuide dele; se não, tran­que-o no quarto e deixe-o morrer.'
"Ela então começou a. aborrecer-me e eu lhe respon­di que já tinha tido bastante trabalho com aquele garoto impertinente; cada qual tinha a sua tarefa e a dela era cuidar de Linton. O Sr. Heathcliff ordenara-me que dei­xasse isso a seu cargo.
"Como eles faziam, eu não sei. Imagino que ele se queixasse muito e gemesse noite e dia e que ela quase não descansasse; a gente podia ver isso pela palidez do seu rosto e pelas olheiras. Às vezes ela entrava na cozinha com ar alarmado, como se quisesse pedir ajuda; mas eu não ia desobedecer ao patrão: nunca me atrevo a deso­bedecer-lhe, Sra. Dean; e, embora achasse que Kenneth devia ser chamado, não era da minha conta dar conselhos ou reclamar, e sempre me recusei a intrometer-me. Uma ou duas vezes, depois de me haver deitado, aconteceu ter de abrir a porta do quarto e vi-a chorando, no alto da escada; mas tratei logo de fechar a porta, com medo de ser obrigada a interferir. Tinha pena dela, claro; mas não queria perder o emprego, a senhora compreende.
"Finalmente, uma noite ela entrou resolutamente no meu quarto e assustou-me terrivelmente, dizendo:
" 'Vá dizer ao Sr. Heathcliff que o filho está mor­rendo. . . tenho a certeza de que está, desta vez. Levan­te-se e vá lhe dizer isso.'
"Disse isso e desapareceu. Fiquei um quarto de hora tremendo e de ouvido alerta. Nada se movia. A casa esta­va em silêncio.
" 'Ela está enganada', pensei com os meus botões. 'Ele teve um acesso, mas já passou. Não preciso incomodá-los.' E comecei a cochilar. Mas o meu sono foi interrompido, uma segunda vez, pelo toque estridente da campainha, a única campainha que temos, instalada propositadamente para Linton; e o patrão chamou-me para saber o que es­tava acontecendo e informar-lhes que não queria estrondo àquela hora.
"Transmiti-lhe o recado de Catherine. Ele prague­jou e dali a poucos minutos saiu com uma vela acesa, a caminho do quarto deles. Acompanhei-o. A Sra. Heath­cliff estava sentada junto à cama, com as mãos cruzadas no regaço. O sogro entrou, aproximou a vela do rosto de Linton, olhou para ele e tocou-o; depois, voltou-se para ela.
" 'Como é que você se sente agora, Catherine?', per­guntou.
"Ela não respondeu. Ele insistiu.
" 'Ele está livre e eu também', falou, por fim. 'Devia me sentir bem, mas. . .', continuou, com uma amargura que não conseguia esconder, 'o senhor me deixou tanto tempo lutando sozinha contra a morte, que eu só sinto e vejo morte! Sinto-me como morta, também.'
"E parecia mesmo! Dei-lhe um pouco de vinho. Ha­reton e Joseph, que tinham sido acordados pela campainha e pelo barulho de passos e das nossas vozes, entraram no quarto. Joseph estava ansioso, eu acho, para que o rapaz fosse removido; Hareton parecia um pouco emocionado, embora estivesse mais ocupado a olhar para Catherine do que a pensar em Linton. Mas o patrão mandou-o voltar para a cama: não precisávamos da sua ajuda. Depois, ordenou que Joseph levasse o corpo para o seu quarto e disse-me para voltai para o meu, deixando a Sra. Heathcliff sozinha.
"De manhã, mandou-me dizer-lhe que ela devia des­cer para o desjejum. Ela se despira, aparentemente para se deitar, e disse que não se sentia bem, o que não me sur­preendeu. Informei disso o Sr. Heathcliff, que retrucou:
" 'Bem, deixe-a em paz até depois do funeral; e suba de vez em quando, para lhe levar o que for preciso. Tão logo ela pareça melhor, avise-me'."
Cathy ficou no quarto duas semanas, segundo Zillah, que a ia visitar duas vezes por dia, e ter-se-ia mostrado bem mais amiga, se as suas tentativas de aproximação não fossem pronta e orgulhosamente repelidas.
Heathcliff subiu tão logo pôde, para lhe mostrar o testamento de Linton. Legara tudo o que era dele e os bens móveis dela ao pai: a pobre criatura devia ter sido ameaçada ou levada ardilosamente a fazer isso durante a semana em que estivera ausente pela morte do pai. Quan­to às terras, sendo ele menor de idade, não podia dispor delas. Contudo, o Sr. Heathcliff apelou e conservou-as em nome da esposa e do seu próprio, creio que legalmente: de qualquer maneira, privada de dinheiro e de amigos, Catherine não pode fazer nada contra isso.
— Ninguém — contou Zillah — aproximou-se do quarto dela, exceto dessa vez, senão eu; e ninguém fez qualquer pergunta sobre ela. A primeira vez que ela des­ceu para a sala foi um domingo à tarde. Queixara-se, quan­do lhe levei o almoço, de que não podia mais suportar o frio, e eu disse-lhe que o patrão ia à Granja Thrushcross e que eu e Earnshaw não a impedíamos de descer; de modo que, mal ouviu o galope do cavalo de Heathcliff se afastar, apareceu, toda vestida de preto e com os cachos louros penteados para trás das orelhas, como se fosse uma quacre: não tinha vontade de se arrumar.
"Eu e Joseph geralmente vamos à capela aos domin­gos" (a igreja, como o senhor sabe, não tem agora mi­nistro — explicou a Sra. Dean — e chamam capela ao templo dos metodistas ou dos batistas. . . não sei bem qual. . . que há em Gimmerton). "Joseph tinha ido", con­tinuou ela, "mas eu achei conveniente ficar em casa. Os jovens precisam sempre de alguém mais velho para vigiá-los e Hareton, com toda a sua timidez, não é um modelo de bom comportamento. Dei-lhe a entender que a sua pri­ma viria, provavelmente, fazer-nos companhia e que estava habituada a respeitar os domingos, de modo que era me­lhor ele deixar de lado as suas espingardas e os seus tra­balhos, enquanto ela estivesse presente. Ele ficou vermelho e olhou para as mãos e para a roupa. Depois, pôs a pól­vora e o óleo lubrificante fora de vista. Percebi que queria fazer-lhe companhia e adivinhei que desejava estar apresentável; por isso, rindo — como não me atrevo a rir, quando o patrão está por perto —, ofereci-me para auxiliá-lo, se ele quisesse, e trocei da sua confusão. Ele se zangou e começou a praguejar.
"Ora, Sra. Dean", prosseguiu Zillah, vendo que não me agradava a sua maneira de falar, "decerto a senhora acha a sua menina demasiado fina para o Sr. Hareton — e tem razão; mas eu confesso que gostaria de ver o orgulho dela diminuído. E de que lhe adiantam agora todos os seus conhecimentos e delicadezas? Está tão pobre quanto eu ou a senhora: ainda mais pobre, eu acho, porque a senhora está poupando e eu também."
Hareton permitiu que Zillah o ajudasse e ela, mediante lisonjas, restituiu-lhe o bom humor, de modo que, quando Catherine entrou, já quase esquecida dos seus antigos in­sultos, ele tentou mostrar-se agradável, segundo a narrativa da governanta.
— A senhora entrou — disse ela —, fria como gelo e altiva como uma princesa. Levantei-me e ofereci-lhe o meu lugar na poltrona, mas ela arrebitou o nariz. Earnshaw também se levantou e disse-lhe que se sentasse no sofá, perto do fogo, pois certamente ela estaria com frio.
" 'Tenho estado com frio há um mês e tanto', res­pondeu ela, da maneira mais desdenhosa possível.
"Puxou uma cadeira e colocou-a bem afastada de nós dois. Quando já se sentia aquecida, começou a olhar em volta e descobriu alguns livros no aparador; pôs-se ime­diatamente de pé e esticou-se para tentar alcançá-los, mas eles estavam demasiado altos. O primo, que acompanhava todos os seus gestos, finalmente criou coragem e resolveu ajudá-la; ela levantou o vestido e ele lhe jogou no regaço o primeiro volume que apanhou.
"Era um grande progresso, para o rapaz. Ela não lhe agradeceu, mas assim mesmo ele ficou satisfeito por ela ter aceito a sua ajuda e atreveu-se a ficar de pé atrás da cadeira e até a inclinar-se e apontar para o que mais lhe chamava a atenção numas velhas gravuras que o livro tinha. Fingia não reparar na maneira impertinente como ela vi­rava as páginas de modo a lhe afastar o dedo e contentava-se com recuar um pouco e olhar para ela, em vez de para o livro. Ela continuava a ler ou a procurar alguma coisa para ler. Aos poucos, a atenção dele foi se concentrando na contemplação dos grossos e sedosos cachos dela: não lhe podia ver o rosto, nem ela o podia ver. E, talvez sem saber o que fazia, mas atraído como uma criança para uma vela, por fim ele estendeu a mão e tocou num cacho, tão suavemente como se fosse um passarinho. Mas foi como se lhe tivesse enfiado uma faca na nuca, tal a reação dela.
" 'Saia daí imediatamente! Como é que você ousa tocar-me? Por que está aí, de pé?', gritou, num tom de re­pulsa. 'Não posso com você! Voltarei para o meu quarto, se você se aproximar de mim.'
"O Sr. Hareton recuou, com ar apatetado; sentou-se, muito quieto, no sofá e ela continuou a virar as páginas por mais meia hora; finalmente, Earnshaw atravessou a sala e falou no meu ouvido:
" 'Quer pedir a ela para ler para nós, Zillah? Estou cansado de não fazer nada; e gostava. . . Acho que gosta­va de ouvir ela ler! Não diga que eu pedi, tá?'
" 'O Sr. Hareton gostaria que a senhora lesse para nós', falei imediatamente. 'Gostaria muito. . . Ficaria mui­to grato.'
"Ela franziu a testa e, olhando para nós, respondeu:
" 'O Sr. Hareton e todos vocês fiquem sabendo que rejeito todas as simulações de amizade que têm a hipo­crisia de me oferecer! Desprezo-os e não tenho nada a dizer a nenhum de vocês! Quando teria dado a minha vida por uma boa palavra ou mesmo por ver o rosto de vocês, todos me falharam. Mas não me queixarei! O frio me impeliu a vir até aqui, não para distraí-los ou gozar da sua companhia'.
" 'Que foi que eu fiz?', começou Earnshaw. 'Que cul­pa que eu tenho?'
" 'Bem, você é uma exceção', respondeu a Sra. Heath­cliff. 'Nunca senti falta dos seus cuidados.'
" 'Mas eu me ofereci mais de uma vez', retrucou ele, abespinhando-se. 'Pedi ao Sr. Heathcliff para me deixar sair da cama pra lhe atender. . .'
" 'Cale-se! Irei daqui para fora, sei lá para onde, para não ter de ouvir a sua voz horrível!', disse a minha ama.
"Hareton resmungou que, por ele, ela podia ir para o inferno e, pegando na espingarda, não se incomodou mais em guardar o domingo. Passou a falar alto e livre­mente, até que ela achou melhor retirar-se para a sua soli­dão; mas o degelo começara e, apesar do seu orgulho, ela foi obrigada a condescender cada vez mais com a nossa companhia. Contudo, resolvi não deixar que ela voltasse a fazer pouco do meu bom gênio; desde então, tenho me mostrado tão seca quanto ela e a sua ama não tem quem goste dela — nem merece —, pois não se pode dizer-lhe uma palavra, que ela logo se enfurece, sem respeito pôr ninguém! Responde até para o patrão e desafia-o a surrá-la; e quanto mais sofre mais cheia de veneno fica."
Assim que Zillah acabou de me contar isso, resolvi deixar o meu emprego, alugar uma casinha e fazer com que Catherine viesse viver comigo; mas o Sr. Heathcliff nunca permitiria isso, da mesma maneira que não instala­ria Hareton numa casa independente; de modo que não vejo saída, atualmente, para esse estado de coisas, a menos que ela pudesse voltar a casar, coisa que está fora do meu alcance.


A história da Sra. Dean terminou aqui. Não obstante o prognóstico do médico, estou recobrando rapidamente as forças e, embora estejamos apenas na segunda semana de janeiro, pretendo, dentro de um ou dois dias, ir a cavalo até o Morro dos Ventos Uivantes, a fim de informar o meu senhorio de que passarei os próximos seis meses em Londres e que, se ele quiser, pode procurar outro inqui­lino para alugar a granja a partir de outubro. Eu não pas­saria outro inverno aqui por nada deste mundo.

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