segunda-feira, 22 de agosto de 2011

A Mediadora - Assombrado, Meg Cabot, Cap 5

Era a cara de Jake, trazer para casa um convidado mal-assombrado.
Não que Neil parecesse saber que era mal-assombrado. Parecia perfeitamente ignorante da presença fantasmagórica atrás dele - assim como o resto de minha família, com exceção de Max. No minuto em que Neil se sentou, Max disparou para fora da sala de jantar com um ganido que fez Andy balançar a cabeça e dizer: - Esse cachorro está ficando a cada dia mais neurótico.
Pobre Max. Sei como ele se sente.
Só que, diferente do cachorro, eu não podia fugir da sala de jantar e me esconder em outra parte da casa, como queria. Quero dizer, se fizesse isso provocaria um monte de perguntas desnecessárias.
Além disso eu sou uma mediadora. Lidar com os mortos é meio inevitável para mim.
Ainda que definitivamente haja momentos em que eu deseje poder sair dessa. Aquele era um desses momentos.
Não que eu pudesse fazer alguma coisa. Não, eu estava grudada na mesa, tentando engolir fajitas na brasa enquanto era encarada por um morto, um final fantástico para um dia muito menos do que perfeito.
O morto, de sua parte, parecia bastante chateado. Bem, e por que não? Quero dizer, ele estava morto. Eu não fazia idéia de como ele havia se separado de sua alma, mas devia ter sido súbito, porque ainda não parecia muito acostumado com aquilo. Sempre que alguém pedia alguma coisa que estivesse perto dele, ele estendia a mão ... e o objeto era arrancado debaixo de seus dedos fantasmagóricos por um dos vivos à mesa, o que o deixava irritado. Mas deu para notar que a maior parte de sua animosidade era reservada a Neil. Cada pedaço de fajita que o novo amigo de Jake pegava, cada batata frita que ele mergulhava em seu guacamole, parecia enfurecer mais o morto. Os músculos de sua mandíbula tremiam, e seus pulsos se apertavam convulsivamente cada vez que Neil respondia em sua voz calma:
"Sim, senhora" ou "Não, senhora", a qualquer das muitas perguntas que mamãe fazia.
Finalmente não pude suportar mais - era arrepiante ficar ali sentada à mesa com aquele fantasma furioso que só eu podia ver... e eu estou acostumada a ser olhada por fantasmas - por isso me levantei e comecei a retirar os pratos de todo mundo, ainda que fosse a vez de Brad fazer isso. Ele me olhou boquiaberto - proporcionando a todos nós uma visão muito linda de um bife meio mastigado que ele tinha na boca - mas não falou nada. Acho que tinha medo de que, se dissesse, isso me arrancaria da ilusão de que era minha noite de tirar os pratos. Ou isso ou ele achou que eu estava tentando cair nas suas boas graças para ele não me dedurar sobre o "cara" que eu estava recebendo à noite no quarto.
De qualquer modo, minha ação de tirar os pratos pareceu um sinal de que o jantar estava acabado, já que todo mundo se levantou e foi para a varanda, olhar a piscina nova que Andy ainda mostrava com orgulho a todos que passavam pela porta da frente, quer pedissem para ver ou não.
Foi enquanto eu estava na cozinha enxaguando os pratos antes de colocá-los na lavadora que a sombra ambulante de Neil e eu ficamos sozinhos. Ele parou tão perto de mim - olhando através da porta deslizante, de vidro, para os que estavam na varanda - que eu pude estender a mão molhada e puxar sua camisa sem ninguém notar.
Dei-lhe um tremendo susto. Ele girou, com o olhar furioso e incrédulo ao mesmo tempo. Sem dúvida não tinha notado que eu podia vê-lo.
- Ei - sussurrei para ele, enquanto todos os outros falavam sobre cloro e sobre o flan que Andy tinha feito de sobremesa. - Nós dois temos de conversar.
O cara ficou chocado.
- Você ... consegue me ver? - gaguejou ele.
- Obviamente.
Ele piscou, depois olhou pela porta de vidro.
- Mas eles ... eles não podem?
-Não.
- Por quê? Quero dizer, por que você e não ... eles.
- Porque eu sou uma mediadora.
Ele ficou inexpressivo. - Uma o quê?
- Espere um segundo - falei, porque pude ver mamãe vindo subitamente da varanda para a porta de vidro.
- Brr - disse ela enquanto entrava e fechava a porta. - Fica frio lá fora quando o sol baixa. Como está indo com os pratos, Suzinha? Precisa de ajuda?
- Não - falei toda animada. - Tudo bem.
- Tem certeza? Eu achava que era a vez do Brad limpar a mesa.
- Não faz mal - falei com um sorriso que esperava que ela não notasse que era completamente forçado.
Não funcionou.
- Suzinha, querida. Você não está chateada, está? Com o que Brad estava dizendo sobre o tal garoto ser indicado para vice-presidente no seu lugar?
- Ah ... - falei, olhando o garoto fantasma, que pareceu bastante irritado com a interrupção. Eu não podia culpá-lo. Acho que foi pouco profissional da minha parte ter uma sessão de reforço do elo entre mãe e filha no meio de uma mediação. - Não, sério, mamãe. Na verdade eu me sinto bem com relação a isso.
E não estava mentindo. Não estar no diretório estudantil este ano me liberaria um bocado de tempo. Tempo com o qual eu não tinha idéia do que iria fazer, claro, já que aparentemente não iria gastá-lo sendo levada as alturas por Jesse. Mesmo assim, a esperança é a última que morre.
Mamãe continuou parada perto da porta, preocupada. - Bem, Suzinha querida, você vai ter de substituir isso por outra atividade extracurricular, você sabe. As faculdades procuram esse tipo de coisa nos candidatos. Faltam menos de dois anos para a sua formatura. Você vai nos deixar em breve.
Nossa! Mamãe nem sabia sobre Jesse, e mesmo assim fazia todo o possível para nos manter separados, sem saber que o próprio Jesse estava cuidando disso sozinho.
- Tudo bem, mamãe - falei, olhando desconfortavelmente para o garoto fantasma. Quero dizer, eu não estava exatamente empolgada por ele ouvir tudo isso. - Eu vou entrar na equipe de natação. Isso deixa você feliz? Ter de me levar para os treinos às cinco da manhã todo dia?
- Isso não foi muito convincente, Suzinha - disse mamãe em voz seca. - Sei perfeitamente que você nunca vai entrar para a equipe de natação. Você é obcecada demais com o cabelo e com o que aquela química da piscina pode fazer com ele.
E então ela foi para a sala de estar, deixando o garoto fantasma e eu sozinhos na cozinha.
- Certo - falei em voz baixa. - Onde é que nós estávamos?
O cara só balançou a cabeça.
- Ainda não acredito que você pode me ver - falou em voz chocada. - Quero dizer, você não sabe ... você não pode saber como é. É como se, em todo lugar aonde eu fosse, as pessoas olhassem através de mim.
- É - falei jogando para o lado a toalha de pratos que eu tinha usado para enxugar as mãos. - Isso é porque você está morto. A questao é: O que deixou você nesse estado?
O garoto fantasma ficou pasmo com o meu tom de voz.
Acho que fui meio rude. Mas afinal de contas eu não estava tendo o melhor dos dias.
- Você é ... - Ele me olhou um tanto cautelosamente. - Quem você disse mesmo que era?
- Meu nome é Suze. Sou uma mediadora.
- Uma o quê?
- Mediadora. Meu trabalho é ajudar os mortos a passar para o outro lado ... para a próxima vida, ou sei lá o que. Qual é o seu nome?
O garoto fantasma piscou de novo. - Craig.
- Certo. Bem, escute, Craig. Alguma coisa está errada, porque eu duvido tremendamente de que o universo pretenda que você fique na minha cozinha como parte de toda a sua experiência pós-vida. Você precisa ir em frente.
Craig franziu as sobrancelhas escuras.
- Em frente para onde?
- Bem, isso é você quem vai descobrir quando chegar lá.
De qualquer modo, a grande pergunta não é para onde você vai, mas por que ainda não chegou lá.
- Quer dizer ... - Os olhos de Craig se arregalaram. - Você quer dizer que isto aqui não é ... lá?
- Claro que não - falei, achando meio divertido. - Você acha que, depois de morrer, todo mundo vai para Pine Crest Road, 99?
Craig encolheu os ombros largos.
- Não. Acho que não. É só que ... quando eu acordei, você sabe, eu não sabia aonde ir. Ninguém podia ... você sabe. Me ver. Quero dizer, eu fui para a sala de estar, e minha mãe estava chorando como se não conseguisse parar. Foi meio assustador.
Ele não estava brincando.
- Tudo bem - falei, com mais gentileza do que antes. - É assim que acontece algumas vezes. Só que não é o normal. A maioria das pessoas vai direto para a próxima ... bem, fase de consciência. Sabe, para a próxima vida, ou para a danação eterna, se ferraram com tudo na ultima. Esse tipo de coisa. - Os olhos dele meio se arregalaram diante das palavras danação eterna, mas como eu nem tinha certeza de haver uma coisa assim, me apressei: - O que nós temos de descobrir agora é por quê você não foi. Quero dizer, por quê não foi em frente logo. Alguma coisa obviamente está segurando você. Nós precisamos ...
Mas nesse ponto o exame da piscina - a preciosa piscina de Andy, que daqui a menos de uma semana estaria cheia de vomito e cerveja - terminou, e todo mundo voltou para dentro.
Sinalizei para Craig me seguir e subi a escada, até onde eu achava que poderíamos falar sem ser interrompidos.
Ao menos pelos vivos. Jesse, por outro lado, era uma história diferente.
- Nombre de dios - disse ele, espantado das páginas da Teoria Crítica desde Platão quando entrei de volta no quarto com Craig logo atrás. Spike, o gato de Jesse, arqueou as costas antes de ver que era só eu (com outro dos meus incômodos amigos fantasmas) e se encostou em Jesse.
- Desculpe – falei. Ao ver o olhar de Jesse passar par mim e se grudar no garoto fantasma, fiz as apresentações: - Jesse, este é Craig. Craig, Jesse. Vocês dois devem se dar bem. Jesse também está morto.
Mas Craig pareceu achar a visão de Jesse (que, como sempre, estava vestido no auge da moda do ultimo ano em que esteve vivo, mais ou menos 1850, inclusive com botas de couro pretas indo até os joelhos, calças pretas justas e uma grande camisa bufante de gola aberta) um pouco demais.
Tanto, de fato, que teve de se sentar pesadamente (ou pelo menos tão pesadamente quanto alguém sem matéria poderia) na beira da minha cama.
- Você é um pirata? - perguntou Craig.
Jesse, diferentemente de mim, não achou isso muito divertido. Acho que não posso culpá-lo.
- Não - disse em tom chapado. - Não sou.
- Craig - falei, tentando manter o rosto sério, e fracassando apesar do olhar que Jesse me lançou. - Verdade, você precisa pensar. Tem de haver um motivo para ainda estar aqui em vez de onde deveria estar. Qual você acha que pode ser o motivo? O que está segurando você?
Craig finalmente afastou o olhar de Jesse.
- Não sei. Talvez o fato de que eu não deveria estar morto?
- Certo - falei tentando ser paciente. Porque o negócio, claro, é que todo mundo acha isso. Que morreu jovem demais. Tive gente que apagou aos 104 anos reclamando comigo sobre a injustiça disso tudo.
Mas eu tento ser profissional. Quero dizer, afinal de contas a mediação é o meu serviço. Não que eu seja paga nem nada, a não ser que conte, sabe, em termos de carma. Assim espero.
- Certamente dá para ver por quê você se sente assim – continuei. - Foi de repente? Quero dizer, você não estava doente nem nada, estava?
Craig ficou indignado.
- Doente? Está brincando? Eu sou capaz de levantar 120 quilos no supino e corro oito quilômetros todo dia. Para não mencionar que eu era da equipe de remo da NoCal. E ganhei a corrida de catamarã do Iate Clube de Pebble Beach três anos seguidos.
- Ah – falei. Não era de espantar que o sujeito parecesse ter um corpo tão marombado debaixo da camisa pólo. - Então sua morte foi acidental?
- Sem dúvida que foi acidental- disse Craig, cutucando um dedo no meu colchão para enfatizar. - Aquela tempestade veio de lugar nenhum. Virou a gente antes que eu tivesse chance de ajustar a vela. Fiquei preso embaixo do barco.
- Então ... - falei hesitante. - Você se afogou?
Craig balançou a cabeça ... não em resposta a minha pergunta, mas de frustração.
- Isso não devia ter acontecido - falou, olhando os sapatos sem ver ... mocassins, do tipo que caras como ele, que curtem barcos, usam sem meias. - Não deveria ter sido eu. Eu era da equipe de natação no segundo grau. Fui o primeiro do distrito em estilo livre.
Eu ainda não entendia.
- Sinto muito - falei. - Eu sei que não parece justo. Mas as coisas vão melhorar, garanto.
- Verdade? - Craig ergueu o olhar dos sapatos, com os olhos castanhos parecendo me prender na parede. - Como? Como as coisas vão melhorar? Para o caso de você não ter notado, eu estou morto.
- Ela quer dizer que as coisas vão melhorar para você quando você se mudar - disse Jesse, vindo em meu socorro. Ele parecia ter superado a observação sobre o pirata.
- Ah, as coisas vão melhorar, é? - Craig soltou um riso amargo. - Como melhoraram para você? Parece que você andou esperando um bom tempo para se mudar, meu chapa. Qual é o problema?
Jesse ficou quieto. Realmente não havia nada que ele pudesse falar. Claro que ele ainda não sabia por que não tinha passado deste mundo para o outro. Nem eu. Mas o que quer que estivesse prendendo Jesse neste tempo e neste lugar segurava-o com muita força: já o mantinha aqui há um século e meio, e mostrava todos os sinais de continuar segurando (eu esperava egoisticamente) pelo menos durante meu tempo de vida, se não por toda a eternidade.
E ainda que o padre Dom insistisse em que um dia desses Jesse iria deduzir o que o mantinha na Terra e que era melhor eu não me ligar demais a ele porque chegaria o dia em que eu nunca mais iria vê-lo de novo, esses conselhos bem-intencionados tinham caído em ouvidos surdos. Eu já estava ligada. De montão.
E não estava trabalhando muito para me desligar.
- A situação de Jesse é meio especial - falei com Craig no que esperava que fosse uma voz tranqüilizadora, tanto por ele quanto por Jesse. - Tenho certeza de que a sua nem de longe é tão complicada.
- Isso mesmo - disse Craig. - Porque eu nem deveria estar aqui.
- Certo - falei - E vou fazer o máximo para que você passe para a sua próxima vida ...
Craig franziu a testa. Era a mesma expressão que tinha mantido por todo o jantar, olhando para Neil, o amigo de Jake.
- Não - disse ele. - Não foi isso que eu quis dizer. Quis dizer que eu não devia estar morto.
Assenti. Eu tinha ouvido esse papo antes, vezes sem conta. Ninguém quer acordar e descobrir que não está mais vivo. Ninguém.
- É difícil – falei. - Eu sei que é. Mas com o tempo você vai se acostumar à idéia, garanto. E as coisas vão melhorar assim que nós descobrirmos exatamente o que o está segurando ...
- Você não entende - disse Craig, balançando a cabeça morena. - É o que eu estou tentando lhe dizer. O que está me segurando é o fato de que não era eu que devia estar morto.
Falei hesitante:
- Bem ... pode ser. Mas não há nada que eu possa fazer a respeito.
- O que você quer dizer? - Craig ficou de pé no meu quarto, furioso. - O que você quer dizer com não pode fazer nada a respeito? Então o que eu estou fazendo aqui? Achei que você poderia me ajudar. Achei que você disse que era a mediadora.
- E sou - falei olhando rapidamente para Jesse, que parecia tão pasmo quanta eu. - Mas eu não determino quem vive ou morre. Isso não é comigo. Não faz parte do meu trabalho.
Craig, com a expressão transformada em nojo, falou:
- Bem, então obrigado por nada - e começou a ir para a porta do meu quarto.
Eu não iria impedi-lo. Quero dizer, eu não queria ter mais nada a ver com ele. Ele parecia o tipo de cara grosso e metido a besta. Se não queria minha ajuda, ei, não era problema meu.
Foi Jesse quem o fez parar.
- Você - disse ele, numa voz bastante profunda. E autoritária. A ponto de fazer Craig parar. - Peça desculpas à ela.
O cara na porta virou a cabeça lentamente para olhar Jesse.
- De jeito nenhum - foi o que teve a falta de sensatez de dizer.
Um segundo depois ele não estava saindo - nem atravessando - aquela porta. Não. Estava grudado nela. Jesse estava segurando um dos braços de Craig no que parecia ser um ângulo muito doloroso Às costas, e estava encostado firmemente contra ele.
- Peça desculpas à jovem dama – sibilou Jesse. - Ela está tentando lhe fazer uma gentileza. Não se vira as costas a alguém que está tentando fazer uma gentileza.
Epa. Para um cara que parece não querer nada comigo, Jesse certamente pode ficar irritado com o modo como outras pessoas me tratam.
- Desculpe - disse Craig numa voz abafada contra a madeira da porta. Parecia estar sentindo dor. Só porque você está morto, claro, não significa que seja imune à ferimentos. Sua alma se lembra, ainda que o corpo não exista mais.
- Assim está melhor - disse Jesse, soltando-o.
Craig se afrouxou contra a porta. Mesmo ele sendo meio escroto, senti pena do cara. Puxa, ele tinha tido um dia ainda pior do que eu, estando morto e coisa e tal.
- É só que não é justo, sabe! - disse Craig num tom sofrido enquanto esfregava o braço que Jesse quase havia quebrado. - Não devia ter sido eu. Eu é que devia ter sobrevivido, não o Neil.
Olhei-o com surpresa.
- Ah? Neil estava com você no barco?
- Catamarã - corrigiu Craig. - E sim, claro que estava.
- Ele era seu parceiro de vela?
Craig me lançou um olhar de nojo. Depois, com um olhar nervoso para Jesse, modificou-o rapidamente para um desdém educado.
- Claro que não. Você acha que nos teríamos virado se Neil tivesse a mínima idéia do que estava fazendo? Pelo direito, ele é que deveria estar morto. Não sei o que mamãe e papai estavam pensando. Leve Neil no catamarã com você. Você nunca leva o Neil. Bem, espero que agora eles estejam felizes. E olha onde eu fui parar. Estou morto. E meu irmão estúpido foi que sobreviveu.

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