segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O Morro dos Ventos Uivantes, cap XXXlV

Durante alguns dias, depois dessa noite, o Sr. Heath­cliff evitou encontrar-se conosco, às refeições; contudo, não consentia em excluir formalmente Hareton e Cathy. Repugnava-lhe ceder tão completamente aos seus senti­mentos e preferia ausentar-se; comer apenas uma vez, em vinte e quatro horas, parecia o suficiente, para ele.
Uma noite, depois que todo o mundo já estava dei­tado, ouvi-o descer a escada e sair pela porta da frente. Não o ouvi voltar e, de manhã, vi que ele ainda não re­gressara. Estávamos em abril: o tempo era quente e bom, a grama verde das chuvas e do sol primaveril e as duas macieiras anãs perto do muro estavam em flor. Depois do desjejum, Catherine insistiu para que eu trouxesse uma cadeira e me sentasse a costurar debaixo dos abetos, na extremidade da casa; e convenceu Hareton, que já se recuperara do acidente, a cavar e plantar o seu jardinzinho, trasladado para aquela ponta devido às queixas de Joseph. Eu estava confortavelmente gozando do cheirinho da pri­mavera e do belo céu azul, quando a minha patroazinha, que correra até perto da cancela, à procura de raízes de primaveras para plantar, voltou, com o cesto apenas meio cheio, e nos informou que o Sr. Heathcliff estava chegando. — E falou comigo — acrescentou, o rosto perplexo.
— Que foi que ele disse? — perguntou Hareton.
— Disse-me que sumisse o mais depressa possível — respondeu ela. — Mas estava tão diferente, que parei para olhar para ele.
— Como diferente? — inquiri.
— Bem, quase alegre. Não, quase, não. . . muito excitado e alegre! — afirmou ela.
— Passear à noite faz-lhe bem, então — observei, afetando uma atitude despreocupada, quando na verdade estava tão surpresa quanto ela e ansiosa por confirmar o que ela dissera, pois ver o patrão alegre não era espetáculo corriqueiro. Inventei uma desculpa para entrar. Heathcliff estava de pé, junto à porta aberta. Seu rosto estava pálido e todo ele tremia; contudo, tinha um brilho estranho, ale­gre, nos olhos, o que alterava todo o seu aspecto.
— Quer comer algo? — perguntei. — Deve estar com fome, depois de errar durante toda a noite! — Que­ria descobrir onde ele estivera, mas não me atrevi a per­guntar-lhe diretamente.
— Não, não estou com fome — respondeu ele, vi­rando a cabeça e falando num tom de desdém, como se percebesse que eu estava tentando adivinhar a razão do seu bom humor.
Fiquei perplexa. Não sabia se não seria aquela uma boa oportunidade de lhe dar uns conselhos.
— Não me parece próprio andar fora de casa — co­mentei — quando é hora de repousar; pelo menos, não é aconselhável com esta umidade. Está me parecendo que o senhor vai pegar uma febre. Está diferente do costume! Sente alguma coisa?
— Nada que eu não possa suportar — retrucou ele —, e com o maior prazer, desde que você me deixe em paz; entre logo e não me aborreça.
Obedeci. Ao passar por ele, reparei que ofegava como um gato.
"É isso mesmo", pensei. "Vem aí uma doença. Não posso imaginar o que ele andou fazendo."
Ao almoço, ele se sentou à mesa conosco e recebeu uma pratada das minhas mãos, como se quisesse compen­sar o jejum matinal.
— Não estou resfriado nem tenho nenhuma febre, Nelly — observou, aludindo ao meu sermão daquela ma­nhã. — Estou pronto a fazer justiça a tudo o que você me puser no prato.
Pegou na faca e no garfo e ia começar a comer, quando o apetite pareceu passar-lhe por completo. Pousou os talheres na mesa, olhou ansiosamente na direção da janela, levantou-se e saiu. Vimo-lo andar de um lado para outro, no jardim, enquanto acabávamos de almoçar, e Earnshaw resolveu ir perguntar-lhe por que não voltava para a mesa, pensando que o tivéssemos irritado.
— Então, ele vem? — perguntou Catherine, quando o primo voltou.
— Não — respondeu ele —, mas não está zangado; pelo contrário, parecia estranhamente satisfeito. Só que eu o impacientei, falando-lhe por duas vezes. Mandou-me vir para junto de você; disse que não sabia como é que eu podia desejar outra companhia.
Coloquei o prato dele no fogão, para não esfriar, e depois de uma hora ou duas ele voltou, quando a sala já estava vazia, igualmente excitado: o mesmo ar não natural de alegria sob as sobrancelhas negras, a mesma cor pálida, os dentes de vez em quando visíveis numa espécie de sor­riso, todo ele tremendo, não como se treme de frio ou de fraqueza, mas como uma corda bem tensa vibra — sim, era algo como uma vibração.
"Vou perguntar-lhe o que houve", pensei; só eu po­deria perguntar. Foi o que fiz.
— Recebeu alguma boa notícia, Sr. Heathcliff? Pare­ce muito animado!
— De onde me poderiam vir boas notícias? — retru­cou ele. — A animação é de fome, mas parece que não devo comer.
— O seu almoço está guardado — volvi. — Por que não come?
— Não quero, agora — murmurou ele, apressada­mente. — Vou esperar até o jantar. E, Nelly, de uma vez por todas, peço-lhe que avise Hareton e a outra para não se aproximarem de mim. Não quero ser incomodado por ninguém; quero ter a casa só para mim.
— Há alguma razão para isso? — perguntei. — Di­ga-me por que está tão esquisito, Sr. Heathcliff. Onde esteve ontem à noite? Não estou perguntando por mera curiosidade, e sim porque. . .
— Está perguntando, sim, por mera curiosidade — atalhou ele, com uma risada. — Mas vou responder. On­tem à noite estive às portas do inferno. Hoje tenho o meu céu à vista; nem um metro me separa dele! E agora é melhor você ir embora! Não verá nem ouvirá nada que a assuste, se evitar bisbilhotar.
Após ter varrido o chão e passado um pano na mesa, saí da sala, mais perplexa do que nunca.
Ele não saiu durante toda a tarde e ninguém interferiu na sua solidão; até que, às oito horas, achei que devia — embora não tivesse sido chamada — levar-lhe uma vela e o jantar. Ele estava encostado ao peitoril de uma janela aberta, mas não olhava para fora: seu rosto estava voltado para a escuridão que reinava na sala. O fogo transforma­ra-se em cinzas; a sala estava cheia do ar úmido da noi­te e o silêncio era tal, que se distinguia o murmúrio do riacho de Gimmerton, com o seu gorgolejar por sobre os seixos e através das grandes pedras, que não conseguia cobrir. Soltei uma exclamação de descontentamento ao ver o fogo extinto e comecei a fechar as janelas, uma após a outra, até chegar à dele.
— Quer que feche esta também? — perguntei, a fim de despertá-lo, pois ele não se mexia.
A luz da vela bateu-lhe no rosto. Sr. Lockwood, não posso exprimir o susto que levei! Aqueles olhos fundos e negros! O sorriso, a palidez mortal! Não me parecia o Sr. Heathcliff, e sim um demônio; e, no meu terror, deixei a vela inclinar-se para a parede e ficamos no escuro.
— Isso, feche a janela — respondeu ele, na sua voz habitual. — Ora, que falta de jeito! Por que segurou a vela horizontalmente? Traga outra, depressa.
Saí correndo, apavorada, e disse a Joseph:
— O patrão quer que você lhe leve uma vela e lhe acenda o fogo. — Eu própria não ousava voltar a entrar na sala.
Joseph apanhou alguns carvões em brasa na pá e foi; mas logo voltou, com a bandeja do jantar na outra mão, explicando que o Sr. Heathcliff ia se deitar e não queria comer nada até de manhã. Ouvimo-lo subir a escada; ele não se dirigiu para o seu quarto, entrou no da cama embu­tida. A janela, como já lhe disse, é suficientemente larga para deixar passar uma pessoa, e fiquei pensando que ele planejasse outra saída noturna, de que não quisesse que suspeitássemos.
"Será ele um vampiro?", perguntei-me. Tinha lido a respeito de tão horríveis demônios. Mas logo pensei em como o cuidara na infância e o vira crescer e lhe acom­panhara quase toda a vida — e como era absurdo entre­gar-me a tão horríveis cogitações. "Mas de onde viera ele, de onde viera aquele menino escuro, trazido por um bom homem para o seu lar?", murmurou a Superstição, enquan­to eu adormecia. E comecei, meio em sonho, a imaginar quem seriam seus pais; e, ecoando os meus pensamentos acordada, passei novamente em revista a sua existência, com soturnas variações, que culminavam com a sua morte e o funeral, do qual tudo quanto recordo é de não saber que inscrição ditar para sua lápide e consultar o coveiro a respeito; e, como ele não tinha sobrenome e não pudésse­mos saber a sua idade, sermos obrigados a contentar-nos com uma única palavra, Heathcliff. Isso aconteceu mesmo. Se o senhor entrar no cemitério, só lerá isso na sua lápide, mais a data da morte.
O nascer do dia restituiu-me a sensatez. Levantei-me e, tão logo se fez dia claro, desci ao jardim, a fim de ver se havia pegadas debaixo da janela dele. Não havia. "Ficou em casa", pensei, "e vai estar normal, hoje." Preparei o desjejum para toda a casa, conforme era meu costume, mas disse a Hareton e Catherine que o tomassem antes que o patrão descesse, pois ele ainda devia estar dormindo. Preferiram tomá-lo ao ar livre, sob as árvores, e preparei uma mesinha especialmente para eles.
Ao voltar, encontrei o Sr. Heathcliff embaixo, falando com Joseph sobre os negócios da fazenda; dava-lhe ordens precisas, minuciosas, mas falava rapidamente e desviava constantemente a cabeça, com a mesma expressão agitada, ainda mais exagerada, talvez. Assim que Joseph saiu da sala, sentou-se no seu lugar habitual e coloquei-lhe à frente um bule de café. Ele o aproximou, depois pousou os bra­ços na mesa e olhou para a parede que lhe estava fronteira, parecendo fixar-se só num trecho com olhos brilhantes, inquietos, e com tal interesse, que deixou de respirar du­rante meio minuto.
— Tome! — exclamei, aproximando-lhe o pão da mão. — Coma e beba o café enquanto está quente. Há quase uma hora que está pronto.
Ele não reparou em mim, mas sorriu. Preferia tê-lo visto ranger os dentes do que sorrir daquela maneira.
— Sr. Heathcliff! Patrão! — gritei. — Pelo amor de Deus, não olhe dessa maneira, como se estivesse tendo uma visão do outro mundo.
— E você, pelo amor de Deus, não grite tão alto! — retrucou ele. — Volte-se e diga-me, estamos sós?
— Naturalmente — respondi. — Claro que estamos. Mas, involuntariamente, obedeci-lhe, como se não
estivesse bem segura. Com um gesto de mão, ele abriu um espaço livre entre as vasilhas do desjejum e inclinou-se para a frente, a fim de poder olhar mais à vontade.
Percebi, então, que ele não olhava para a parede; reparando bem nele, parecia que contemplava algo a duas jardas de distância. E, fosse o que fosse, proporcionava-lhe, aparentemente, tanto prazer como dor em extremo: pelo menos era o que a expressão do seu rosto, ao mesmo tem­po angustiada e extasiada, sugeria. O que ele contemplava tampouco estava fixo: os olhos dele perseguiam-no com incansável vigilância e, mesmo ao falar comigo, nunca se arredavam do objeto em foco. Em vão lhe recordei que havia muito tempo não comia: se se mexia para tocar em algo, conforme eu lhe dizia, se estendia a mão para pegar numa fatia de pão, logo os seus dedos se fechavam e per­maneciam sobre a mesa, esquecidos do seu objetivo.
Armei-me de paciência e sentei-me, tentando desviar a sua atenção para a comida, até que ele se irritou e, levantando-se, perguntou por que razão eu não o deixava comer quando ele quisesse, e disse que, da próxima vez, eu não precisava esperar: punha a bandeja em cima da mesa e ia embora. Com essas palavras, saiu da casa, desceu lenta­mente o jardim e desapareceu na estrada.
As horas passaram-se, ansiosamente: outra noite che­gou. Não me recolhi senão muito tarde e, mesmo assim, não consegui dormir. Ele voltou depois da meia-noite e, em vez de ir para a cama, fechou-se na sala. Fiquei de ouvido alerta, remexendo-me na cama, até que, finalmente, vesti-me e desci. Era impossível ficar deitada, dando voltas à cabeça com mil e um pensamentos e preocupações.
Distingui os passos do Sr. Heathcliff, andando sem parar de um lado para outro, e, de vez em quando, uma espécie de gemido, quebrar o silêncio. Murmurava, tam­bém, palavras soltas; a única que consegui pegar foi o nome de Catherine, junto com algum termo de carinho ou sofrimento, dito como se ele falasse com uma pessoa presente: em voz baixa e sincera, saída do mais fundo da alma. Não tive coragem de entrar na sala, mas, desejosa de arrancá-lo daquele devaneio, comecei a remexer o fogo da cozinha e a varrer as cinzas. O barulho atraiu-o mais depressa do que eu esperava. Ele abriu a porta e perguntou:
— Nelly, venha cá. Já é de manhã? Traga a sua vela.
— São quase quatro horas — respondi. — Quer uma vela para levar para cima? Podia ter acendido uma no fogo.
— Não, não quero ir para cima — replicou ele. — Venha até aqui, acenda-me um bom fogo e faça tudo o que for preciso fazer.
— Primeiro, tenho de atiçar os carvões — falei, apanhando uma cadeira e o fole.
Enquanto isso, ele continuava a andar de um lado para outro, num estado de excitação que se aproximava da loucura, os suspiros sucedendo-se um ao outro de uma tal maneira, que mal lhe deixavam tempo para respirar normalmente.
— Quando o dia raiar, vou mandar buscar Green — falou. — Quero fazer-lhe umas consultas jurídicas, en­quanto posso pensar nesses assuntos e agir calmamente. Ainda não escrevi o meu testamento e não sei como legar os meus bens. Oxalá os pudesse varrer da face da terra.
— Eu não falaria assim, Sr. Heathcliff — retruquei. — Não se preocupe já com o testamento: terá muito tempo de se arrepender das suas muitas injustiças. Nunca pensei que os seus nervos viessem a ficar tão alterados e quase que inteiramente por sua culpa. A maneira pela qual o senhor passou estes três últimos dias era capaz de arrasar um titã. Coma alguma coisa e descanse um pouco. É só olhar-se num espelho para ver como está. Suas faces estão cavadas e seus olhos raiados de sangue, iguais aos de uma pessoa semimorta de fome e a ponto de ficar cega por não dormir.
— Não é minha culpa se não posso comer nem des­cansar — replicou ele. — Asseguro-lhe que comeria e re­pousaria se pudesse. Mas seria a mesma coisa que pedir a um homem prestes a se afogar que abandonasse todas as tentativas e descansasse, a um metro da praia. Preciso al­cançá-la primeiro, depois descansarei. Bem, não chame o Sr. Green. Quanto a me arrepender das minhas injusti­ças, não cometi nenhuma e não me arrependo de nada. Sinto-me muito feliz, mas não suficientemente feliz. A ventura está me matando, mas mesmo assim não está satisfeita.
— Sente-se feliz, patrão? — exclamei. — Que estra­nha felicidade! Se me prometer escutar-me sem se zangar, acho que lhe posso dar um conselho para torná-lo mais feliz ainda.
— Qual é, Nelly? — perguntou ele. — Diga.
— O senhor bem sabe — comecei — que, desde os seus treze anos, tem levado uma vida egoísta e pouco cristã; sem dúvida, durante todo esse tempo não pegou sequer na Bíblia. Deve ter se esquecido dos ensinamentos do Livro e pode não ter tempo de relê-lo agora. Será que o senhor não quer mandar chamar alguém (um ministro de qualquer igreja, não importa qual) que lhe explique e lhe mostre a que ponto se desviou dos seus preceitos e como está longe de merecer o céu, a menos que uma mu­dança se opere no senhor antes de morrer?
— Não fico zangado, Nelly, e sim grato — respondeu ele —, pois você me lembrou da maneira pela qual desejo ser enterrado. Quero ser transportado para o cemitério de noite. Você e Hareton, se quiserem, podem me acompa­nhar: mas cuide, particularmente, de que o coveiro obede­ça às minhas instruções a respeito dos dois ataúdes! Não é preciso chamar nenhum ministro, nem dizer qualquer oração; já lhe disse que estou quase alcançando o meu céu e que o dos outros não tem nenhum valor para mim.
— E se acaso o senhor perseverasse no seu obstinado jejum e morresse em conseqüência dele e se recusassem a enterrá-lo no campo-santo? — perguntei, chocada pela sua indiferença religiosa. — O senhor gostaria?
— Não farão isso — replicou ele. — Se fizerem, você deve tratar de trasladar-me em segredo para o cemi­tério; se não o fizer, hei de lhe provar que os mortos não se aniquilam!
Tão logo ouviu os outros membros da família desce­rem, retirou-se para os seus aposentos e eu respirei mais aliviada. Mas, de tarde, enquanto Joseph e Hareton esta­vam  nas suas tarefas, entrou novamente na cozinha e, com um olhar desatinado, pediu-me que fosse para a sala e lhe fizesse companhia: queria alguém com ele. Recusei-me a isso, dizendo-lhe, francamente, que a sua estranha atitude e maneira de falar me assustavam e que não tinha nem vontade, nem coragem de ficar a sós com ele.
— Acho que você me julga um demônio — disse ele, com o seu riso sombrio —, algo por demais horrível para viver numa casa decente. — Depois, voltando-se para Catherine, que se escondera atrás de mim ao vê-lo aproximar-se, perguntou, sarcástico: — E você, vem co­migo? Não lhe vou fazer mal. Não! Aos seus olhos eu me transformei em algo pior do que o Diabo. Bem, há uma pessoa que não foge da minha companhia! Por Deus, ela é inexorável! É demais! Ninguém de carne e osso pode suportar. . . Nem eu!
Não pediu a companhia de ninguém mais. Ao anoite­cer foi para o seu quarto. Durante toda a noite e na ma­nhã seguinte ouvimo-lo gemer e murmurar consigo mesmo. Hareton estava ansioso por entrar, mas eu lhe pedi que fosse buscar o Dr. Kenneth, para que o visse. Quando o médico chegou e pedi licença para entrar e tentei abrir a porta, vi que estava trancada. E Heathcliff mandou-nos para o inferno, dizendo que estava melhor e queria que o deixassem em paz. Em vista disso, o médico foi-se embora.
A noite seguinte foi de chuva: na verdade, choveu até de manhãzinha. Ao dar o meu costumeiro passeio matinal em volta da casa, observei que a janela do patrão estava escancarada e que a chuva entrava por ela às raja­das. "Ele não pode estar na cama", pensei: a chuva tê-lo-ia encharcado. "Deve estar levantado ou ter saído. Mas basta de conjeturas, vou ver."
Após ter conseguido entrar com outra chave, corri a abrir os painéis, pois o quarto estava vazio. Empurrei-os depressa para o lado e olhei. O Sr. Heathcliff estava lá — caído de costas. Seus olhos encaravam-me com tal fixidez, que estremeci; depois, ele pareceu sorrir. Não podia crer que estivesse morto: mas o seu rosto e pescoço esta­vam encharcados; as roupas de cama pingavam água e ele estava perfeitamente imóvel. A gelosia, batendo com o vento, arranhara-lhe uma das mãos, pousada no peitoril; mas não saía sangue da ferida e, quando a toquei com os dedos, não duvidei mais: ele estava mesmo morto!
Tranquei a janela; penteei-lhe os longos cabelos pre­tos, caídos para a testa, e tentei fechar-lhe os olhos: extin­guir, se possível, aquele olhar terrível e ainda vivo de exultação, antes que outra pessoa o pudesse ver. Mas eles não se fechavam: pareciam troçar dos meus esforços — e os seus lábios abertos, deixando à mostra os dentes brancos e aguçados, também pareciam troçar! Tomada de novo acesso de covardia, gritei por Joseph. Ele apareceu logo, mas recusou-se a mexer nele.
— O Demo carregou a alma dele! — falou. — Pode levar também a carcaça! Credo! Até da morte ele caçoa! — e o velho pecador fez uma cara de troça. De repente, porém, recobrando a compostura, ajoelhou-se, ergueu as mãos ao céu e deu graças por ficar Hareton, o legítimo dono, novamente na posse dos seus direitos.
Quanto a mim, estava perplexa — e a minha memória pôs-se a recordar tempos passados, com uma espécie de opressiva tristeza. Mas foi o pobre Hareton, precisamente o mais injustiçado, o único a sofrer realmente muito. Velou o corpo durante toda a noite, chorando sem parar. Aper­tava-lhe a mão, beijava-lhe o rosto sarcástico e terrível, que todos os demais evitavam contemplar, e carpia-o como só sabem fazer os corações generosos, embora endurecidos como aço temperado.
O Dr. Kenneth não conseguiu diagnosticar a causa da morte. Ocultei o fato de ele nada ter comido durante quatro dias, temendo que originasse complicações e tam­bém porque estava convencida de que ele não jejuara pro­positadamente, e sim em conseqüência da estranha doença que o acometera.
Foi sepultado, para escândalo de toda a região, se­gundo o seu desejo. Eu e Earnshaw, o coveiro e seis gatos-pingados — eis o acompanhamento. Os seis gatos-pingados foram embora assim que puseram o caixão na sepultura; nós ficamos para vê-lo ser coberto. Com o rosto lavado em lágrimas, Hareton arrancou tufos de grama verde e colocou-os sobre a terra: atualmente, a sepultura está tão verdejante quanto a da companheira — e espero que o seu ocupante tenha um sono igualmente sossegado. Mas a gente do campo, quando se lhes pergunta, jura pela Bíblia que o vê caminhar: há quem diga que o enxergou perto da igreja, na charneca e até mesmo nesta casa. Histórias, dirá o senhor, e eu também. Contudo, aquele velho sentado diante do fogo afirma que vê os dois, olhando pela janela do quarto dele, todas as noites de chuva, desde que o patrão morreu — e uma coisa estranha aconteceu-me, há cerca de um mês. Eu estava indo para a granja, uma noite — uma noite escura, ameaçando trovoada —, e, bem na encruzilhada que leva ao Morro, encontrei um rapazinho com um carneiro e duas ovelhas; chorava horrivelmente e eu supus que as ovelhas estivessem assustadiças e se recusassem a obedecer-lhe.
— Que foi, meu homenzinho? — perguntei.
— Heathcliff e uma mulher estão ali, perto do morro — gaguejou ele —, e estou com medo de passar.
Nada vi; mas tanto as ovelhas quanto ele se negavam a passar, de modo que lhe disse para ir pela estrada de baixo. Provavelmente ele imaginara os fantasmas de tanto pensar, ao atravessar sozinho a charneca, nas bobagens que ouvira os pais e os colegas repetirem. Mas a verdade é que já não gosto de sair no escuro e nem de ficar sozinha neste casarão. Que alívio vai ser, quando mudarem daqui para a granja!
— Vão para a granja? — perguntei.
— Vão — respondeu a Sra. Dean —, tão logo se ca­sarem, no dia de Ano Novo.
— E quem ficará morando aqui?
— Joseph ficará tomando conta da casa e talvez um rapaz lhe fará companhia. Vão viver na cozinha e o resto da casa será fechado.
— Para uso dos fantasmas — comentei.
— Não, Sr. Lockwood — falou Nelly, abanando a cabeça. — Creio que os mortos descansam em paz, mas não é direito falar deles com tal leviandade.
Nesse momento, a cancela do jardim rangeu: os na­morados estavam de volta.
Esses não têm medo de nada — resmunguei, vendo-os entrar. — Juntos, seriam capazes de desafiar Satã e todas as suas legiões de demônios.
Vendo-os parar um instante diante da porta, para olharem uma última vez para a lua — ou, melhor, um para o outro, banhados pelo luar —, senti-me novamente impelido a ir embora; e, enfiando uma lembrança na mão da Sra. Dean, não obstante os seus protestos, saí pela co­zinha no exato momento em que eles abriam a porta de entrada — e teria confirmado a opinião de Joseph quanto às indiscrições da velha colega, se ele não tivesse conside­rado como prova da minha respeitabilidade o soberano de ouro que lhe atirei aos pés.
Meu caminho de volta foi alongado por um desvio na direção da igreja. Uma vez dentro dela, percebi quan­to envelhecera em apenas sete meses: muitas janelas mos­travam buracos negros, destituídos de vidraças; e, aqui e ali, telhas saíam fora da linha do telhado, candidatando-se a serem arrancadas pelas próximas tempestades de outono.
Procurei, e logo descobri, as três lápides na encosta próxima à charneca: a do meio, cinzenta e meio enter­rada na urze; a de Edgar Linton, com a grama e o musgo trepando-lhe pela base — e a de Heathcliff, ainda nua.
Demorei-me a contemplá-las, sob aquele céu clemente, a ver as borboletas esvoaçando por entre a urze e as campânulas, a ouvir a brisa suave soprando através da relva e a pensar como poderia alguém imaginar, sequer, sonos agitados sob aquela terra.

FIM

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