segunda-feira, 22 de agosto de 2011

A Mediadora - Assombrado, Meg Cabot, Cap 8

Claro que eu não ia me encontrar com ele. Quero dizer, apesar de amplas evidências em contrário, não sou estúpida. No passado encontrei várias pessoas em várias situações e me vi, horas depois, amarrada numa cadeira, jogada numa dimensão paralela, forçada a vestir maiôs ou cruelmente maltratada de outras formas. Não ia me encontrar com Paul Slater depois das aulas. Não mesmo.
E acabei indo.
Bom, o que mais eu deveria fazer? A isca era forte demais. Quero dizer, provas documentadas sobre mediadores? Alguma coisa sobre pessoas poderem ocupar o corpo de outras? Nem todos os pesadelos sobre corredores compridos e cheios de névoa do mundo iriam me impedir de finalmente descobrir a verdade sobre o que eu era e o que podia fazer. Tinha passado muitos anos imaginando exatamente isso, para deixar uma oportunidade dessas escapar entre os dedos. Diferente do padre Dominic, eu nunca fui capaz de meramente aceitar as cartas que vinham para a minha mão... Queria saber por que tinham sido dadas a mim, e como. Tinha de saber.
E se, para descobrir, eu tivesse de passar um tempo com alguém que regularmente assombrava meu sono, que fosse. Valia o sacrifício.
Ou pelo menos eu esperava que valesse.
Adam e Cee Cee não ficaram contentes com isso, claro.
Quando terminou a última aula do dia, eles me encontraram no corredor - eu estava mancando visivelmente, graças aos meu sapatos, mas Cee Cee não notou. Estava ocupada demais consultando a lista que tinha feito na aula de biologia.
- Certo - disse ela. - Temos de ir direto ao Safeway para comprar pinceis atômicos, purpurina, cola e papelão. Adam, sua mãe ainda tem aquelas tachas na garagem, de quando ela fez aquele curso de estofamento Amish? Porque a gente poderia usá-las para os cartazes pedindo votos para Suze.
- Ah ... - falei, mancando ao lado deles. - Pessoal.
- Suze, nós podemos levar as coisas à sua casa, para montar? Acho que a gente poderia levar à minha casa, mas vocês conhecem minhas irmãs. Elas provavelmente vão passar de patins por cima.
- Pessoal- falei. - Olha. Eu agradeço isso, e tudo o mais. De verdade. Mas não posso ir com vocês.
Já tenho planos.
Adam e Cee Cee trocaram olhares.
- É? - perguntou Cee Cee. - Vamos encontrar o misterioso Jesse, é?
- Ahn. Não exatamente...
Nesse momento Paul passou por nós no corredor. Ele me disse, notando que eu estava mancando:
- Deixa que eu trago o carro até a porta do lado. Assim você não tem de andar até o portão. - E foi andando.
Adam me deu um olhar escandalizado.
- Confraternizando com o inimigo! - exclamou ele. - Que vergonha, moça!
Cee Cee estava igualmente perplexa.
- Você vai sair com ele? - Ela balançou a cabeça de modo que os cabelos branco-louros e lisos brilharam. - E Jesse?
- Eu não vou sair com ele - falei desconfortavelmente. - Nós só ... estamos trabalhando num projeto juntos.
- Que projeto? - Os olhos de Cee Cee ficaram estreitos por trás das lentes dos óculos. - Para que aula?
- É... - Eu troquei o peso de um pé para o outro, esperando algum alívio dos sapatos cruéis, sem solução. - Não é para a escola. É mais para ... para ... a igreja.
No momento em que a palavra me saiu da boca eu soube que tinha cometido um erro. Cee Cee não se importaria de ficar sozinha com Adam - de fato, ela provavelmente adoraria - mas não iria me deixar escapar sem um bom motivo.
- Igreja? - Cee Cee parecia furiosa. - Você é judia, Suze, para o caso de eu ter de lembrar.
- Bem, tecnicamente, não. Quero dizer, meu pai era, mas minha mãe não é ... - Uma buzina soou logo atrás do portão ornamentado perto do qual nós estávamos. - Epa, é o Paul. Tenho de ir. Desculpe.
Então, andando bastante rápido para uma garota que sentia pontadas de dor subindo pelas pernas a cada passo, fui até o conversível de Paul e subi no banco do carona com alívio por estar sentada de novo, sentindo que finalmente iria descobrir uma ou duas coisas sobre quem - ou o quê - eu realmente era ...
Mas tinha um sentimento igualmente forte de que não gostaria do que iria descobrir. De fato, parte de mim se perguntava se eu não estaria cometendo o pior erro da minha vida.
Não ajudou muito o fato de Paul, com os óculos escuros e o sorriso fácil, parecer um astro de cinema. Verdade, como é que eu podia ter tantos pesadelos com esse cara que era claramente o sonho de qualquer garota normal? Não deixei de notar os olhares de inveja lançados na minha direção, vindos de todo o estacionamento.
- Por acaso eu mencionei - perguntou Paul, enquanto eu prendia o cinto de segurança - que acho esses sapatos uma coisa?
Engoli em seco. Eu nem sabia o que ele queria dizer. Só podia presumir, por seu tom de voz, que era algo bom.
Eu realmente queria fazer isso? Valia a pena?
A resposta veio lá do fundo ... tão fundo que eu percebi que sabia o tempo todo: Sim. Ah, sim.
- Só dirija - falei, com a voz saindo mais rouca do que o normal, porque eu estava tentando não demonstrar o nervosismo.
E ele dirigiu.
A casa aonde me levou era uma impressionante construção de dois andares, na lateral de um penhasco perto da praia de Carmel. Era feita quase toda de vidro, para aproveitar a vista do oceano e do pôr-do-sol.
Paul pareceu notar que eu estava impressionada, já que disse:
- É do meu avô. Ele queria uma casinha na praia para a aposentadoria.
- Certo - falei, engolindo em seco. A "casinha" do vovô Slater na praia devia ter custado uns cinco milhões de dólares. - E ele não se incomoda em ter alguém dividindo o espaço de repente?
- Está brincando? - Paul deu um risinho enquanto estacionava o carro numa das vagas da garagem para quatro veículos. - Ele mal sabe que eu estou aqui. O cara vive cheio de remédios o tempo todo.
- Paul - falei, desconfortável.
- O quê? - Paul piscou para mim por trás de seus Ray - Bans. - Eu só estou declarando um fato. O velho praticamente vive na cama, e deveria estar num equipamento de suporte a vida, mas fez uma tremenda confusão quando nós tentamos levá-lo para uma clínica. Então, quando eu sugeri me mudar para ficar de olho nas coisas, meu pai concordou. É uma situação sem lado ruim. O velho pode ficar em casa - com enfermeiros para cuidar dele, claro - e eu posso freqüentar a escola dos meus sonhos, a Academia da Missão.
Senti o rosto esquentar, mas tentei manter o tom de voz leve.
- Ah, então seu sonho é freqüentar uma escola católica?
- É, se você estiver lá - disse Paul em tom igualmente leve ... mas não tão sarcástico.
Meu rosto ficou imediatamente vermelho como um sorvete com calda de morango. Mantendo-o virado para Paul não notar, falei com afetação:
- Não acho isso uma boa idéia, afinal de contas.
- Relaxa, garota. O enfermeiro do velho está aqui, para o caso de você ... sabe ... sofrer de alguma dúvida feminina sobre ficar sozinha em casa comigo.
Segui a direção em que Paul estava apontando. No fim de uma entrada de veículos circular estava um Toyota Celica enferrujado. Não falei nada, principalmente porque estava meio pasma com a facilidade com que Paul parecia ter lido minha mente. Eu estivera ali sentada, sofrendo de dúvidas sobre a coisa toda. Não havia exatamente levantado o assunto com meus pais, mas tinha certeza de que não tinha permissão de ir à casa de algum cara enquanto os pais dele não estivessem lá.
Por outro lado, se nesse caso eu não fosse, nunca descobriria o que precisava descobrir - e agora estava convencida de que essa era uma coisa de que eu realmente precisava.
Paul saiu de trás do volante e rodeou até o meu lado do carro, abrindo a porta para mim.
- Você vem, Suze? - perguntou quando eu não me mexi para tirar o cinto de segurança.
- Ah - falei, olhando nervosa para a grande casa de vidro. Ela parecia perturbadoramente vazia, apesar do Toyota.
Paul pareceu ler meu pensamento de novo.
- Quer parar com isso, Suze? - disse ele, revirando os olhos. - Sua virtude não corre perigo da minha parte. Juro que vou manter as mãos longe de você. Isto aqui são negócios. Mais tarde haverá bastante tempo para diversão.
Tentei dar um sorriso tranqüilo, para ele não suspeitar de que não estou acostumada a que as pessoas - certo, os caras - me digam esse tipo de coisa todo dia. Mas a verdade é que, claro, não estou. E fiquei incomodada com o modo como isso fez com que eu me sentisse quando Paul disse. Puxa, eu nem gostava do cara, mas a cada vez que ele dizia algo assim - sugerindo que me achava, não sei, especial, isso me lançava um arrepio pela coluna ... e não era uma coisa ruim.
Era isso. Não era uma coisa ruim. Que negócio era esse?
Puxa, eu nem gosto do Paul. Estou totalmente apaixonada por outro. E, é, Jesse atualmente não dá sinais de compartilhar meus sentimentos, mas não é por causa disso que, de repente, eu vou começar a sair com Paul Slater ... não importa o quanto ele seja lindo com seu Ray-Ban.
Saí do carro.
- Decisão sabia - comentou Paul, fechando a porta do veículo.
Havia uma espécie de sensação definitiva na batida daquela porta. Tentei não pensar no que podia estar entrando enquanto seguia Paul pelos degraus de cimento até a larga porta de vidro da casa de seu avô, descalça, com os Jimmy Choos numa das mãos e a bolsa de livros na outra.
Dentro da casa dos Slater estava fresco e silencioso ... tão silencioso que não dava para ouvir as ondas batendo a menos de trinta metros abaixo. Quem quer que tivesse decorado aquele lugar tinha um gosto que tendia para o moderno, de modo que tudo parecia liso, novo e desconfortável. A casa, eu imaginei, devia ser gélida de manhã, quando a névoa chegava, já que tudo nela era feito de vidro ou metal. Paul me guiou por uma escada circular, de aço, que ia da porta da frente até a cozinha hi-tech, onde todos os instrumentos brilhavam agressivamente.
- Coquetel? - perguntou ele, abrindo a porta de vidro de um armário de bebidas.
- Muito engraçado. Só água, por favor. Onde está seu avô?
- No fim do corredor - disse Paul enquanto pegava duas garrafas d'água com grife, na enorme geladeira Sub-Zero. Ele devia ter notado meu olhar nervoso por cima do ombro, porque acrescentou: - Vá dar uma olhada, se não acredita.
Fui dar uma olhada. Não que eu não confiasse nele ... bem, certo, era isso. Mas teria sido muita ousadia dele mentir sobre uma coisa que eu poderia verificar tão facilmente. E o que eu faria se o avô dele não estivesse ali? Quero dizer, de jeito nenhum eu iria embora antes de descobrir o que tinha vindo saber.
Felizmente parecia que eu não precisaria ir embora. Ao ouvir alguns sons fracos, segui-os até um longo corredor de vidro, até chegar a um cômodo em que havia uma televisão widescreen, ligada. Diante do aparelho estava um homem muito velho numa cadeira de rodas de aparência muito hi-tech. Ao lado da cadeira de rodas, numa cadeira moderna que parecia muito desconfortável, estava um cara meio novo, com uniforme azul de enfermeiro, lendo uma revista. Ele ergueu os olhos quando eu apareci na porta e sorri.
- Oi - disse ele.
- Oi - falei de volta, e entrei hesitante no quarto. Era um belo quarto, com uma das melhores vistas da casa, pelo que imaginei. Tinha sido mobiliado com uma cama hospitalar, com equipamento de soro, estrutura ajustável e estantes de metal onde havia molduras e mais molduras com retratos. Principalmente fotos em preto-e-branco de pessoas dos anos 1940, a julgar pelas roupas.
- Hm - falei ao velho na cadeira de rodas. - Oi, Sr. Slater. Eu sou Suzannah Simon.
O velho não disse nada. Nem afastou o olhar do programa de perguntas e respostas que passava diante dele. Era quase totalmente careca e coberto de manchas de velhice, e estava babando um pouco. O enfermeiro notou isso e se inclinou com um lenço para enxugar a boca do velho.
- Olha só, Sr. Slater - disse o enfermeiro. - A moça bonita disse oi. O senhor não vai dizer oi também?
Mas o Sr. Slater não falou nada. Em vez disso, Paul, que tinha entrado no quarto atrás de mim, falou:
- Como vão as coisas, vovô? Teve outro dia emocionante diante da tela?
O Sr. Slater não deu sinal de notar Paul também. O enfermeiro disse:
- Nós tivemos um dia bom, não tivemos, Sr. Slater? Demos uma bela volta no quintal dos fundos, ao redor da piscina, e colhemos uns limões.
- Fantástico - disse Paul com entusiasmo forçado. Depois pegou minha mão e começou a me arrastar para fora do quarto. Admito que ele não puxou com força. Eu estava achando aquilo bem assustador, e saí de boa vontade. O que diz muito, considerando como me sentia com relação a Paul e tudo mais. Quero dizer, o fato de haver alguém que me assustasse mais do que ele.
- Tchau, Sr. Slater - falei, sem esperar resposta ... o que foi uma boa coisa, já que não recebi nenhuma.
No corredor, perguntei em voz baixa:
- O que há com ele? Alzheimer?
- Não - disse Paul, entregando-me uma das garrafas d'água azul-escuras. - Os médicos não sabem exatamente. Ele fica bastante lúcido, quando quer.
- Verdade? - Eu achei difícil acreditar. Em geral as pessoas lúcidas conseguem manter controle sobre a própria saliva. - Talvez ele só esteja ... você sabe. Velho.
- É - disse Paul com outro de seus característicos sorrisos amargos. - Provavelmente é isso mesmo. - Depois, sem elaborar mais, abriu uma porta à direita e disse: -É aqui. O que eu queria mostrar a você.
Segui-o até o que, claramente, era seu quarto. Era umas cinco vezes maior do que o meu - e a cama de Paul era umas cinco vezes maior do que a minha. Como o resto da casa, tudo era muito liso e moderno, com muito metal e vidro. Havia até uma mesa de vidro - ou Plexiglas, provavelmente - onde estava um laptop de última geração, novo em folha.
No quarto de Paul não havia nenhuma coisa do tipo pessoal que sempre parecia estar espalhada no meu como revistas, meias sujas, esmalte de unha ou caixas de biscoitos Girl Scout meio comidos. Era como um quarto de hotel muito moderno, muito frio.
- Está aqui - disse Paul, sentando-se na beira da cama do tamanho de um barco.
- É - falei, agora mais amedrontada do que nunca ... e não somente porque Paul estava batendo no espaço vazio ao seu lado no colchão. Não, também era o fato de que a única cor no quarto, além da roupa que Paul e eu estávamos usando, era o que eu podia ver pelas enormes janelas panorâmicas: o céu azul, azul, e abaixo o mar azul mais escuro. - Claro que sim.
- Estou falando sério - disse Paul, e parou de bater no colchão como se quisesse que eu sentasse ao lado. Em vez disso enfiou a mão debaixo da cama e puxou uma caixa de plástico transparente, do tipo em que a gente guarda suéteres de lã durante o verão.
Depois de pôr a caixa ao lado dele na cama, Paul tirou a tampa. Dentro havia o que parecia uma quantidade de artigos de jornais e revistas, todos cuidadosamente recortados.
- Verifique estes - disse Paul, desdobrando cuidadosamente um antiqüíssimo artigo de jornal e abrindo-o sobre a colcha cinza-ardósia para que eu visse. Era do Times de Londres, e datava de 18 de junho de 1952. Havia a foto de um homem parado diante do que parecia a parede de um túmulo egípcio, cheio de hieróglifos. A manchete sobre a foto e a matéria dizia: “Teoria de arqueólogo é zombada pelos céticos."
- O Dr. Oliver Slaski - é esse cara da foto - trabalhou anos para traduzir o texto na parede do túmulo de Tutancamon - explicou Paul. - Ele chegou à conclusão de que no Egito antigo havia um pequeno grupo de xamãs que tinham capacidade de viajar ao reino dos mortos sem, de fato, morrer. Esses xamãs eram chamados, pelo que o Dr. Slaski pode traduzir, de deslocadores.
Eles podiam se deslocar deste plano da existência ao próximo e eram contratados pela família dos mortos como guias para os espíritos, para garantir que seus entes queridos terminassem onde deveriam, em vez de ficar andando sem objetivo pelo planeta.
Eu tinha me sentado na cama enquanto Paul falava, de modo a olhar melhor a foto que ele estava indicando. Antes estivera hesitando em fazer isso - realmente não queria ficar perto de Paul, especialmente considerando a coisa da cama e tudo.
Mas agora mal percebia como estávamos sentados perto.
Inclinei-me para a frente, para olhar a foto, até meu cabelo roçar no papel rachado e amarelo.
- Deslocadores - falei, através de lábios que tinham ficado estranhamente frios, como se tivesse posto Carmex neles. Só que não tinha. - O que ele queria dizer era mediadores.
- Não acho.
- Não - falei. Estava me sentindo meio sem fôlego. Bem, você também ficaria, se durante toda a vida tivesse imaginado por que era tão diferente de todo mundo que conhecia, e de repente, um dia, descobrisse. Ou pelo menos encontrasse alguma pista muito importante. - É exatamente isso que significa, Paul - exclamei. – O arcano nove do baralho do tarô, o eremita, mostra um velho segurando uma lanterna, como esse cara está fazendo - falei, indicando o sujeito no hieróglifo. - Ele sempre aparece quando minhas cartas são lidas. E o eremita é um guia espiritual, alguém que supostamente leva os mortos ao seu destino. E certo, o cara nos hieróglifos não é velho, mas os dois estão fazendo a mesma coisa ... Ele certamente quer dizer mediadores, Paul - falei, com o coração martelando contra as costelas. Aquilo era grande. Realmente grande. O fato de haver provas documentadas da existência de pessoas como eu ... eu nunca esperava ver uma coisa dessas. Mal podia esperar para contar ao padre Dominic. - Tem de ser isso.
- Mas não é só isso que eles eram, Suze - disse Paul, enfiando a mão de novo na caixa de acrílico e pegando um maço de papéis, também amarelados pelo tempo. - Segundo Slaski, que escreveu esta tese a respeito, no Egito antigo havia os médiuns comuns, ou, se você prefere, os mediadores. Mas também havia deslocadores. E isso - disse Paul, me olhando intensamente do outro lado da cama, mas não muito longe, já que estávamos inclinados, separados apenas por uns trinta centímetros, com as páginas da tese do Dr. Slaski entre nós - é o que você e eu somos, Suze. Deslocadores.
De novo senti o arrepio. Que subiu e desceu pela minha coluna, fez os pêlos do meu braço ficarem de pé. Não sei o que era - a palavra, deslocadores, ou o modo como Paul dizia. Mas aquilo teve um efeito em mim ... um tremendo efeito. Como enfiar o dedo num bocal de lâmpada.
Balancei a cabeça e falei numa voz de pânico:
- Não. Eu, não. Eu sou apenas uma mediadora. Quero dizer, se eu fosse uma deslocadora, não teria de me exorcizar daquela vez ...
- Você não precisava ter feito isso - interrompeu Paul, com a voz profunda e calma, comparada ao guincho agudo em que a minha havia se transformado. - Você poderia ter entrado lá e saído sozinha, apenas visualizando o lugar. Podia fazer isso agora mesmo, se quisesse.
Meu queixo caiu. Acima das páginas da tese do Dr. Slaski, notei que os olhos de Paul estavam muito brilhantes. Quase pareciam luzir como olhos de gato. Não dava para saber se ele estava dizendo a verdade ou simplesmente tentando mexer com minha cabeça. Conhecendo Paul, nenhuma das hipóteses teria me surpreendido. Ele parecia sentir prazer em falar as coisas bruscamente e depois ver como a pessoa - certo, como eu - reagia.
- De jeito nenhum - foi como reagi à sua sugestão de que eu era alguma coisa além do que sempre pensei. Ainda que o motivo para eu estar em seu quarto fosse porque, no fundo, sabia que não era.
- Tente - insistiu Paul. - Visualize na cabeça. Você sabe como é o lugar agora.
 Claro que sabia. Graças a ele eu tinha ficado presa lá durante os 15 minutos mais longos de minha vida. Ainda estava presa lá, toda noite, nos sonhos. Mesmo agora podia ouvir o coração martelando nos ouvidos enquanto percorria aquele corredor longo e escuro, com a névoa em redemoinhos e depois se dividindo em volta das minhas pernas. Será que Paul realmente achava que, mesmo por um segundo, eu quereria visitar aquele lugar de novo?
- Não – falei. - Não, obrigada ... o sorriso de Paul ficou maroto.
- Não diga que Suze Simon tem medo de alguma coisa.
- Seus olhos pareciam brilhar mais do que nunca. - Você sempre age como se fosse imune ao medo, assim como algumas pessoas são imunes à catapora.
- Eu não estou com medo - menti com indignação fingida. - Só não estou com vontade de ... como é que se chama mesmo? Ah, é, me deslocar agora. Talvez mais tarde. Neste momento quero perguntar sobre a outra coisa que você falou. A coisa de quando alguém toma conta do corpo de outra pessoa. Transferência de alma.
O sorriso de Paul ficou mais largo.
- Eu achei que isso atrairia sua atenção.
Eu sabia a que ele estava se referindo - ou pensei que sabia, pelo menos. Podia sentir o rosto ficando quente. Mas ignorei as bochechas incandescentes e disse, com o que esperava que parecesse uma indiferença tranqüila:
- Parece interessante. É mesmo possível? - Segurei as páginas amarrotadas da tese que estava entre nós. - O Dr. Slaski fala disso?
- Talvez - disse Paul, pondo a mão sobre as folhas datilografadas de modo que eu não pudesse levantá-las.
- Paul - falei, puxando as folhas. - Só estou curiosa. Quero dizer, você já fez isso? Funciona mesmo? Craig realmente poderia tomar o corpo do irmão?
Mas Paul não queria largar os papéis do Dr. Slaski.
- Mas não é por causa de Craig que você está perguntando, é? - Seus olhos azuis se cravaram em mim. Não havia mais a menor sugestão de sorriso em seu rosto. - Suze, quando você vai entender?
Foi então que finalmente notei como seu rosto estava perto do meu. Só a centímetros de distância. Comecei instintivamente a me afastar, mas os dedos que tinham segurado os papéis do Dr. Slaski subitamente se levantaram e seguraram meu pulso. Olhei a mão de Paul. Sua pele bronzeada parecia muito escura em contraste com a minha.
- Jesse está morto - disse Paul. - Mas isso não significa que você precise agir como se também estivesse.
- Eu não ajo - protestei. - Eu ...
Mas não consegui terminar meu pequeno discurso, porque bem no meio dele Paul se inclinou e me beijou.

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