segunda-feira, 22 de agosto de 2011

A Mediadora - Assombrado, Meg Cabot, Cap 2

Eu não podia contar, claro. Não podia contar a ninguém sobre Jesse, porque, francamente, quem acreditaria? Eu só conhecia uma pessoa - uma pessoa viva, pelo menos - que sabia toda a verdade sobre gente como Paul e eu, e isso somente porque ele era como nós. Sentado diante de sua escrivaninha de mogno pouco mais tarde, não consegui evitar um gemido.
- Como isso pode ter acontecido? - perguntei.
O padre Dominic, diretor da Academia da Missão Junipero Serra, estava sentado atrás de sua mesa gigantesca, parecendo paciente. Era uma expressão que caia bem no bom padre que, segundo os boatos, ficava mais bonito a cada ano. Com quase 65, era um Adonis de cabelos brancos e óculos.
E também estava muito pesaroso.
- Suzannah, sinto muito. Eu estive tão preocupado com os preparativos para o novo ano escolar, para não mencionar a festa do padre Serra no próximo fim de semana, que não olhei as listas de matrícula. - Ele balançou a cabeça branca com cabelos bem cortados. - Sinto muito, muito mesmo.
Fiz uma careta. Ele sentia muito. Ele sentia muito? E eu?
Não era ele que tinha de estar nas mesmas salas que Paul Slater. Duas salas, na verdade: a de reuniões e a de história americana. Durante duas horas inteiras por dia eu teria de ficar ali sentada e olhar o cara que tinha tentado acabar com meu namorado e me deixar morta. E eu nem estava contando a chegada de manha e o almoço. Era outra hora, sem dúvida!
- Apesar de não saber honestamente o que poderia ter feito para impedir que ele fosse matriculado – disse o padre Dom, folheando a ficha de Paul. - As notas, as avaliações dos professores... tudo é exemplar. Lamento dizer que, no papel, Paul Slater é um estudante muito melhor do que você quando se matriculou nesta escola.
- Não se pode dizer nada sobre a moral de uma pessoa a partir de um punhado de provas de escola. - Eu me sentia meio defensiva com esse assunto, já que minhas notas eram suficientemente medíocres para eu ser recusada pela Academia da Missão há oito meses, quando minha mãe anunciou que iríamos nos mudar para a Califórnia de modo que ela pudesse se casar com Andy Ackerman, o homem de seus sonhos, agora meu padrasto.
- Não - disse o padre Dominic, tirando os óculos com um gesto cansado e limpando-os na batina preta e comprida. Notei sombras roxas sob seus olhos. - Não, não se pode - concordou ele com um suspiro profundo, recolocando a armação de metal sobre o nariz perfeitamente aquilino. - Suzannah, você tem realmente certeza de que os motivos desse rapaz são tão pouco nobres? Talvez Paul esteja procurando orientação. É possível que, com a influência correta, ele possa ver os erros que tem cometido...
- É, padre Dom - falei com sarcasmo. - E talvez este ano eu seja eleita Rainha do Baile.
O padre Dominic não pareceu aprovar. Diferentemente de mim, o padre Dominic sempre tendia a pensar o melhor sobre as pessoas, pelo menos até o comportamento delas provar que sua suposição sobre sua bondade inerente estivesse errada. Era de imaginar que, no caso de Paul Slater, ele já tivesse visto o bastante para formar uma base sólida de julgamento sobre o cara, mas aparentemente não.
- Vou presumir, até termos visto algo que prove o contrário - disse o padre D. - que Paul esteja aqui na Academia da Missão porque quer aprender. Não somente o currículo normal da décima-primeira série, Suzannah, mas também o que você eu temos a lhe ensinar. Vamos esperar que Paul esteja arrependido dos atos do passado e realmente deseje se emendar. Creio que Paul está aqui para um recomeço, como você no ano passado, se é que se recorda. E é nosso dever, como seres humanos caridosos, ajudá-lo a fazer isso. Até que sejamos convencidos do contrário, devemos dar ao Paul o benefício da dúvida.
Achei aquilo o pior plano que já tinha escutado na vida.
Mas a verdade é que não tinha qualquer prova de que Paul estava ali para causar problema. Pelo menos ainda não.
- Bom - disse o padre D., fechando a pasta de Paul e se recostando na cadeira. - Eu não vejo você há algumas semanas. Como vai, Suzannah? E como vai o Jesse?
Senti o rosto esquentar. As coisas estavam feias, quando a simples menção ao nome de Jesse podia me deixar ruborizada, mas era assim que a coisa estava.
- Hmm - falei, esperando que o padre D. não notasse minhas bochechas em chamas. - Bem.
- Ótimo - disse o padre Dom, empurrando os óculos para cima no nariz e olhando para sua estante, distraidamente. - Há um livro que ele disse que queria pegar emprestado... Ah, sim, aqui está. - O padre Dom pôs nos meus braços um gigantesco livro encadernado em couro (que devia pesar pelo menos uns cinco quilos). - Teoria crítica desde Platão - disse com um sorriso. - Jesse deve gostar disso.
Eu não duvidava. Jesse gostava de alguns dos livros mais chatos que a humanidade conhecia. Talvez fosse por isso que não estava reagindo a mim. Quero dizer, não do modo como eu queria. Porque eu não era suficientemente chata.
- Muito bem - disse o padre D. distraidamente. Dava para ver que ele estava com muita coisa na cabeça. As visitas do arcebispo sempre o deixavam nervoso, e essa, para a festa do padre Serra (que varias organizações vinham tentando sem sucesso tornar um santo) seria um pé no saco particularmente grande, pelo que eu podia ver.
- Só vamos ficar de olho no nosso jovem amigo, o Sr. Slater - continuou o padre Dom – e ver como as coisas andam. Pode ser que ele se acomode, Suzannah, num ambiente estruturado como o que oferecemos aqui na academia.
Funguei. Não pude evitar. O padre D. realmente não tinha idéia do que estava enfrentando.
- E se isso não acontecer? - perguntei.
- Bem, vamos atravessar essa ponte quando, e se, necessário. Agora vá. Você não quer desperdiçar toda a sua hora de almoço aqui comigo.
Relutante, deixei a sala do diretor, levando o velho tomo cheio de poeira que ele tinha me dado. A névoa da manhã tinha se dispersado, como sempre acontecia por volta das onze horas, e agora o céu era de um azul brilhante. No pátio, beija-flores trabalhavam nos hibiscos. A fonte, rodeada por meia dúzia de turistas de bermuda (a missão, além de uma escola, também era um marco histórico e possuía uma basílica e até mesmo uma loja de presentes que figuravam como pontos importantes em qualquer programação de ônibus de turismo) borbulhava ruidosamente. As copas das palmeiras, de um verde profundo, oscilavam preguiçosas no alto, a brisa suave do mar. Era outro dia estupendo em Carmel.
Então por que eu me sentia tão péssima?
Tentei dizer a mim mesma que estava reagindo com exagero. Que o padre Dom estava certo - nós não sabíamos quais eram os motivos de Paul para vir a Carmel. Talvez ele realmente tivesse virado uma nova pagina.
Então por que eu não conseguia tirar da cabeça aquela imagem - a imagem dos meus pesadelos? O corredor comprido e escuro e eu correndo por ele, procurando desesperadamente uma saída, achando apenas névoa. Era um sonho que eu tinha uma vez em cada noite, e do qual nunca deixava de acordar suando.
Sinceramente, não sei o que era mais apavorante: o pesadelo ou o que estava acontecendo agora, acordada. O que Paul estava fazendo aqui? Ainda mais perturbador: como é que Paul parecia saber tanto sobre o talento que nos dois compartilhávamos? Não existe nenhuma publicação especializada. Não existem conferências e seminários. Quando você põe a palavra mediador em qualquer mecanismo de busca na Internet, só recebe coisas sobre advogados e conselheiros de família. Hoje em dia eu continuo praticamente tão sem pistas como quando era pequena e só sabia que era... bem, diferente das outras crianças da vizinhança.
Mas Paul... Paul parecia achar que tinha algum tipo de resposta.
Entretanto, o que ele poderia fazer a respeito? Nem mesmo o padre Dominic afirmava saber exatamente o que os mediadores - por falta de uma palavra melhor - eram, de onde tínhamos vindo e exatamente qual era a extensão de nossos talentos... e ele era mais velho do que nós dois juntos! Claro, nós podemos ver e falar com os mortos - e ate beijá-los e dar socos neles. Ou melhor, com o espírito daqueles que morreram deixando coisas inacabadas, algo que descobri aos seis anos, quando meu pai, que faleceu de um súbito ataque cardíaco, voltou para um pequeno papo pós-enterro.
Mas era isso? Quer dizer, era só disso que os mediadores eram capazes? Segundo Paul, não.
Apesar das garantias do padre Dominic, de que Paul provavelmente tinha boa intenção, eu não podia ter tanta certeza. Pessoas como Paul não agiam sem bons motivos. Então o que ele estava fazendo em Carmel? Poderia ser apenas que, agora que descobrira o padre Dom e eu, desejasse um relacionamento por alguma vontade de estar com gente do mesmo tipo?
Era possível. Claro, é igualmente possível que Jesse realmente me ame e que só esteja fingindo que não, já que um relacionamento romântico entre nós dois realmente não poderia ser um negócio muito certo...
É. E talvez eu seja indicada para Rainha do Baile, como venho desejando...
Ainda estava tentando não pensar nisso durante o almoço - no negócio do Paul, nem no negócio de Rainha do Baile - quando, espremida num banco do lado de fora entre Adam e Cee Cee, eu puxei a argola de uma lata de refrigerante diet e quase engasguei com o primeiro gole depois de Cee Cee falar:
- E aí, desembucha. Quem é esse tal de Jesse? Dessa vez, por favor, responda.
Foi refrigerante para tudo que é canto, principalmente pelo meu nariz. Parte caiu no meu suéter Benetton.
Cee Cee não foi nem um pouco solidária.
- É diet - disse ela. - Não vai manchar. Então, por que a gente não conheceu o cara?
- É - disse Adam, superando a diversão inicial por ver refrigerante saindo por minhas narinas. -E como é que esse tal de Paul conhece o cara e a gente não?
Enxugando-me com um guardanapo, olhei na direção de Paul. Ele estava sentado num banco não muito longe, rodeado por Kelly Prescott e outras pessoas populares de nossa turma, todos gargalhando de alguma história que ele tinha acabado de contar.
- Jesse é só um carinha - falei, porque tive a sensação de que não conseguiria me livrar das perguntas. Não desta vez.
- Só um carinha - repetiu Cee Cee. - Só um carinha que aparentemente você está namorando, segundo esse tal de Paul.
- Bem - falei, desconfortável. - É, acho que estou. Mais ou menos. Quero dizer... é complicado.
Complicado? Meu relacionamento com Jesse fazia a Teoria crítica desde Platão parecer um cãozinho travesso.
- Então - disse Cee Cee, cruzando as pernas e mordiscando contente umas cenourinhas de um saco em seu colo. - Conte. Onde vocês se conheceram?
Eu não podia acreditar que estava ali sentada, falando de Jesse com meus amigos. Meus amigos, que eu tanto havia me esforçado para manter no escuro com relação a ele.
- Ele... é... ele mora no meu bairro - falei. Não havia sentido em contar a verdade absoluta.
- Ele estuda na RLS? - quis saber Adam, referindo-se a escola Robert Louis Stevenson e passando a mão por cima de mim para pegar uma cenourinha de Cee Cee.
- Hmm... Não exatamente.
- Não diga que ele estuda na Carmel. - as olhos de Cee Cee ficaram arregalados.
- Ele não está mais na escola - falei, já que eu sabia que, dada à natureza de Cee Cee, ela nunca descansaria enquanto não soubesse tudo. - Ele... á... já se formou.
- Uau! - disse Cee Cee. - Um homem mais velho. Bem, não é de espantar que você esteja mantendo em segredo. Então ele faz o que? Faculdade?
- Na verdade, não. Ele ... é... está dando um tempo. Meio que para... se encontrar.
- Hmpf. - Adam se recostou no banco e fechou os olhos, deixando o sol forte do meio-dia acariciar seu rosto. - Um preguiçoso. Você poderia conseguir coisa melhor, Suze. Você precisa e de um cara com uma ética profissional boa e sólida. Um cara como... Ei, eu sei: eu!
Cee Cee, que estava de olho em Adam desde que eu conhecia os dois, o ignorou.
- Há quanto tempo vocês estão namorando? - perguntou.
- Não sei. - Agora eu estava me sentindo péssima. - Tudo é meio novo. Quero dizer, eu o conheço há um tempo, mas o negócio do namoro... é novo. E não é realmente... Bem, eu não gosto de falar disso.
- De que? - Uma sombra pairou sobre nosso banco.
Franzindo a vista, levantei os olhos e vi David, meu meio-irmão, ali parado, com o cabelo ruivo brilhando como um halo ao sol quente.
- Nada - falei depressa.
Dentre todo mundo na minha família - e sim, eu pensava nos Ackerman, meu padrasto e os filhos dele, como parte de minha família, a pequena família que antigamente era formada apenas por mim e mamãe, depois da morte de meu pai - David, de 13 anos, era o mais próximo de saber a verdade a meu respeito. Isto é, que eu não era apenas a adolescente meio descontente que fingia ser.
E mais, David sabia sobre Jesse. Sabia, e no entanto não sabia. Porque ainda que ele, como todo mundo em casa, tivesse notado minhas súbitas mudanças de humor e a ausência misteriosa da sala íntima da família todas as noites, nem podia imaginar o que havia por trás de tudo.
Agora estava na frente do nosso banco (o que era bastante ousado, já que os caras do segundo grau não tendiam a aceitar tranqüilamente que gente da oitava série como David viesse ao que eles consideravam o seu lado do pátio) tentando parecer que aquele era o seu lugar, o que, considerando seu corpo de cinqüenta quilos, o aparelho nos dentes e as orelhas de abano, não poderia estar mais longe da verdade.
- Você viu isso? - perguntou ele, enfiando um pedaço de papel debaixo do meu nariz.
Peguei o papel. Por acaso era um folheto anunciando uma festa na piscina da Pine Crest Road, 99, na próxima noite de sexta-feira. Os convidados deveriam levar roupa de banho, se quisessem ter um pouco de diversão "quente e borbulhante". Ou se optassem por não levar roupa de banho, tudo bem, particularmente se fossem do sexo feminino.
Havia no folheto um desenho grosseiro de uma garota bêbada e com peitos grandes, tomando cerveja em lata.
- Não, você não pode ir - falei, devolvendo o folheto a David, com uma fungada. - Você é muito novo. E alguém deveria mostrar isso ao orientador da sua turma. O pessoal da oitava série não deveria fazer festas assim.
Cee Cee, que tinha apanhado o folheto com David, falou:
- Ei, Suze.
- Sério - continuei. - E estou surpresa com você, David. Achei que era mais esperto. Nada de bom acontece nessas festas. Claro, algumas pessoas se divertem. Mas aposto dez contra um que alguém vai levar socos na barriga ou bater a cabeça em alguma coisa. É sempre divertido até alguém se machucar.
- Suze. - Cee Cee passou o folheto na frente da minha cara, a centímetros do meu nariz. - Pine Crest Road, 99. É a sua casa, não é?
Arranquei o folheto da mão dela, boquiaberta.
- David! Em que você estava pensando?
- Não fui eu - exclamou David, com a voz esganiçada subindo mais duas ou três oitavas. - Me mostraram na aula de estudos sociais. Brad estava distribuindo. Uns caras da sétima série pegaram, até...
Virei os olhos na direção de meu meio-irmão Brad. Ele estava encostado no mastro de basquete, tentando parecer maneiro, o que era bem difícil para um cara cujo córtex cerebral era coberto, pelo que eu sabia, por WD-40.
- Com licença - falei me levantando. - Tenho de ir cometer um assassinato. - Então fui até a quadra de basquete, com o folheto laranja na mão.
Brad me viu chegando. Notei o ar de puro pânico que passou por suas feições quando seu olhar pousou no que havia na minha mão.
Ele se empertigou e tentou correr, mas eu fui mais rápida. Acuei-o perto do bebedouro e levantei o folheto para que ele visse.
- Você realmente acha - perguntei casualmente _ que mamãe e papai vão deixar você fazer essa... essa... essa sei lá o quê?
O pânico no rosto de Brad tinha se transformado em desafio. Ele esticou o queixo e falou:
- Bem, é... o que eles não souberem não vai causar mal.
- Brad. - Algumas vezes eu sentia pena dele. Sentia mesmo. O cara era um otário completo. - Você não acha que eles vão notar quando olharem pela janela do quarto e virem um punhado de garotas nuas na piscina nova?
- Não. Porque eles não vão estar em casa na sexta à noite. Papai tem aquela palestra em São Francisco e sua mãe vai com ele, lembra?
Não, eu não lembrava. De fato eu me perguntei se ao menos tinham me dito. Ultimamente eu vinha passando muito tempo no quarto, verdade, mas tanto a ponto de não saber de uma coisa importante como meus pais estarem fora durante uma noite inteira? Achava que não...
- E é melhor você não contar - disse Brad com um veneno inesperado. - Ou vai se arrepender.
Olhei-o como se ele fosse pirado.
- Eu vou me arrepender? - falei rindo. - Hmm, desculpe, Brad, mas se seu pai descobrir sobre essa festa que você esta planejando, você é que vai ficar de castigo pelo resto da vida, não eu.
- De jeito nenhum - disse Brad. O olhar de desafio tinha sido substituído por outro ainda menos atraente, quase de corrupção. - Porque se você ao menos pensar em dizer alguma coisa, eu conto sobre o cara que você deixa entrar no seu quarto toda noite.

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