segunda-feira, 22 de agosto de 2011

A Mediadora - Assombrado, Meg Cabot, Cap 18

Encare os fatos - disse Cee Cee enquanto engolia sua metade de um cannoli que estávamos dividindo no dia seguinte, na festa do padre Serra. - Os homens são um horror.
- Você é que está dizendo.
- Sério. Ou a gente está a fim deles e eles não estão a fim da gente, ou a gente não está a fim deles...
- Bem-vinda ao meu mundo - falei, carrancuda.
- Ah, qual é - disse ela, abalada com meu tom de voz. - Não pode ser tão ruim.
Eu não estava no clima para discutir com ela. Por um lado fazia menos de 12 horas que tinha superado a dor de cabeça pós-deslocamento. De outro, havia a pequena questão do Jesse. Eu não estava muito ansiosa para falar dos últimos acontecimentos nessa área.
Já estava com problemas demais. Tipo, minha mãe e meu padrasto. Eles não tinham ficado tão homicidas quando chegaram de São Francisco e descobriram os destroços onde antes tinha havido sua casa... para não mencionar a convocação da polícia. Brad não somente estava de castigo para o resto da visa, mas Jake, por ter concordado com todo o esquema da festa – para não mencionar o fornecimento do álcool -, teve a poupança para o seu Camaro totalmente confiscada para pagar as multas que a festa terminou custando. Só o fato de David estar em segurança na casa de Todd o tempo todo impediu Andy de matar os dois filhos mais velhos. Mas dava para ver que mesmo assim ele estava pensando nisso... especialmente depois de mamãe ter visto o que aconteceu com o armário de louças.
Não que Andy ou minha mãe estivessem particularmente satisfeitos comigo, também – e não porque soubessem que o armário de louças arrebentado fosse minha culpa, mas porque não dedurei meus meio-irmãos. Eu teria dado a entender o uso da chantagem, mas então eles saberiam que Brad sabia alguma coisa minha que valia chantagem.
Por isso fiquei de boca fechada, feliz porque, pela primeira vez, estava mais ou menos não sentindo culpa. Bem, a não ser com relação ao armário de louças – se bem que, felizmente, apenas eu tivesse conhecimento disso. Mesmo assim sabia que não podia evitar a culpa. Sabia muito bem para onde iria qualquer grana que ganhasse trabalhando como babá.
Tenho bastante certeza de que eles estavam pensando em me colocar também de castigo. Mas da festa do padre Serra eles não podiam me manter longe, porque, sendo membro da direção da turma, a irmã Ernestine esperava que eu cuidasse de uma barraquinha. E foi assim que terminei na barraca de cannoli com Cee Cee, que, como editora do jornal estudantil, também deveria aparecer. Depois das atividades da noite anterior - você sabe, brigas enormes, viagem ao outro mundo e depois papo furado acompanhado por quantidades copiosas de pipoca e chocolate - nenhuma de nós estava nas melhores condições. Mas o número surpreendente de freqüentadores que pagavam um dólar por cannoli não parecia notar os círculos debaixo dos nossos olhos... talvez porque estivéssemos usando óculos escuros.
- Certo - disse Cee Cee. Tinha sido burrice da irmã Ernestine colocar Cee Cee e eu encarregadas de uma barraca de sobremesa, já que a maioria dos doces que deveríamos estar vendendo desapareciam pela nossa garganta abaixo. Depois de uma noite como a que tivemos, sentíamos necessidade de açúcar. - Paul Slater.
- O que é que tem?
- Ele gosta de você.
- Acho que sim.
- É isso? Você acha?
- Eu lhe disse – falei. - Eu gosto de outro.
- Certo - disse Cee Cee. - Jesse.
- Certo. Jesse.
- Que não gosta de você?
-Bem... é.
Cee Cee e eu ficamos sentadas em silêncio um minuto.
A nossa volta soava música de mariachis. Perto da fonte, crianças batiam em piñatas. A estátua de Junipero Serra tinha sido adornada com guirlandas de flores. Havia uma barraca de salsicha com pimenta bem ao lado da de taco. Havia tantos italianos na comunidade da igreja quanto latinos.
De repente, olhando-me por trás dos óculos escuros, Cee Cee falou: - Jesse é um fantasma, não é?
Engasguei no cannoli que estava comendo. - O... o quê? - perguntei entalada.
- Ele é um fantasma - disse Cee Cee. - Você não precisa se incomodar em negar. Eu estava ali ontem à noite, Suze. Eu vi... bem, eu vi coisas que não podem ser explicadas de outro modo. Você estava falando com ele, mas não havia ninguém. E no entanto alguém estava segurando o Paul debaixo da água.
Falei, sentindo-me vermelha como uma beterraba: - Você pirou.
- Não. Não pirei. Gostaria de ter pirado. Você sabe que eu odeio esse tipo de coisa. Coisas que não podem ser explicadas cientificamente. E aquelas pessoas estúpidas dizendo que podem falar com os mortos. Mas... - Um turista apareceu, bêbado do sol forte, do ar puro do oceano e da cerveja extremamente fraca que estavam servindo na barraca alemã. Colocou um dólar. Cee Cee lhe entregou um cannoli. Ele pediu um guardanapo. Nós notamos que o porta-guardanapos estava vazio. Cee Cee pediu desculpas. O turista deu um riso bem-humorado, pegou o cannoli e foi embora.
- Mas o que? - perguntei nervosa.
- Mas com você, eu estou disposta a acreditar. E um dia - acrescentou ela, pegando o porta-guardanapos vazio - você vai me explicar tudo.
- Cee Cee - falei, sentindo o coração voltar ao ritmo natural. - Acredite. É melhor você não saber.
- Não. - Cee Cee balançou a cabeça. - Não é. Eu odeio não saber as coisas. - Então sacudiu o porta-guardanapos. - Vou pegar mais. Você pode ficar sozinha um minuto?
Assenti, e ela se afastou. Não sei se ela fazia idéia de como tinha me abalado. Fiquei ali sentada, imaginando o que deveria fazer. Só uma outra pessoa viva sabia o meu segredo – uma única pessoa além do padre Dom e de Paul, claro - e nem mesmo ela, minha melhor amiga Gina, lá no Brooklyn, sabia tudo. Eu nunca tinha contado a mais ninguém porque... bem, porque quem iria acreditar?
Mas Cee Cee acreditava. Cee Cee tinha deduzido sozinha e acreditava. Talvez, pensei. Talvez a coisa não fosse tão maluca quanta eu sempre achei.
Ainda estava ali sentada, tremendo, mesmo com os 23 graus e o sol. Estava tão absorvida nos pensamentos que não escutei a voz que falava comigo do outro lado da barraca, até que ela disse meu nome - ou alguma coisa parecida - por três vezes.
Ergui os olhos e vi um rapaz com uniforme azul-claro rindo para mim.
- Suze, não é? - disse ele.
Olhei do sujeito para o rosto do velho cuja cadeira de rodas ele estava empurrando. Era o avô de Paul Slater e seu enfermeiro. Sacudi a cabeça e me levantei.
- Hmm - falei. - Oi. - Dizer que eu me sentia meio confusa seria o eufemismo do ano. - O que vocês... O que vocês estão fazendo aqui? Eu pensei... eu pensei...
- Você pensou que ele não podia sair de casa? - perguntou o enfermeiro com um riso. - Não exatamente. Não, o Sr. Slater gosta de sair. Não é, Sr. Slater? De fato ele insistiu em vir aqui hoje. Eu não achei adequado, você sabe, dado o que aconteceu com o neto dele ontem à noite, mas Paul está em casa, se recuperando muito bem, e o Sr. S. foi inflexível. Não foi, Sr. S.?
O avô de Paul fez uma coisa que me surpreendeu. Olhou para o enfermeiro e disse numa voz perfeitamente lúcida: - Vá pegar uma cerveja para mim.
O enfermeiro franziu a testa.
- Ora, Sr. S. o senhor sabe o que o médico diz ...
- Faça isso - disse o Sr. Slater.
O enfermeiro, com um olhar divertido para mim como se dissesse "Bem, o que se pode fazer?", foi até a barraca de cerveja, deixando o Sr. Slater sozinho comigo.
Encarei-o. Na última vez em que o tinha visto, ele estivera babando. Agora não estava. Seus olhos azuis eram remelentos, certo. Mas eu tinha a sensação de que viam muito mais do que estava acontecendo em volta além de simplesmente reprises de Family Feud.
De fato eu tive certeza disso quando ele falou:
- Escute. Nós não temos muito tempo. Eu esperava que você estivesse aqui.
Ele falava depressa e baixo. De fato eu tive de me curvar para a frente, por cima dos cannoli para ouvir. Mas ainda que a voz fosse baixa, a pronuncia era claríssima.
- Você é um deles. Um dos deslocadores. Acredite, eu sei. Eu também sou.
Pisquei para ele.
- O senhor... O senhor é?
- Sim. E meu nome é Slaski, não Slater. O idiota do meu filho mudou. Não queria que as pessoas soubessem que ele era parente do velho maluco que vivia falando sobre pessoas com a capacidade de andar entre os mortos.
Eu só o encarei. Não sabia o que dizer. O que eu poderia dizer? Estava mais pasma com isso do que com o que Cee Cee tinha revelado.
- Eu sei o que meu neto lhe disse. Não preste atenção a ele. Ele entendeu tudo errado. Claro, você tem a capacidade. Mas isso vai matá-la. Talvez não agora, mas com o tempo. - Ele me encarou de dentro de uma mascara de rugas cinzentas e cheias de manchas de velhice. - Eu sei do que estou falando. Como aquele meu neto idiota, eu achei que era um deus. Não, eu achei que era Deus.
Eu tentei falar. - Mas...
- Não cometa o meu erro, Susan. Fique longe disso. Fique longe do mundo das sombras. - Mas...
Mas o avô de Paul tinha visto o enfermeiro voltando e rapidamente voltou para seu estado semi-catatônico e não quis falar mais.
- Aí está, Sr. Slater - disse o enfermeiro, cuidadosamente segurando o copo plástico perto dos lábios do velho. - Boa e gelada.
O Dr. Slaski, para minha descrença completa, deixou a cerveja escorrer pelo queixo e cair na camisa.
- Eepa! - disse o enfermeiro. - Desculpe. Bem, é melhor a gente se limpar. - Ele piscou para mim. - Foi bom ver você de novo, Suze. Vejo você mais tarde.
Então empurrou o Dr. Slaski para longe, em direção a barraca de tiro ao pato.
E para mim bastava. Eu precisava sair dali. Não podia ficar mais um minuto na barraca de cannoli. Não tinha idéia de para onde Cee Cee havia desaparecido, mas ela teria de lidar sozinha um tempo com a venda de doces. Eu precisava de um pouco de silêncio.
Sai por trás da barraca e andei cegamente pela multidão que apinhava o pátio, passando depressa pela primeira porta aberta que encontrei.
Vi que estava no cemitério da missão. Não voltei. Os cemitérios não me assustam muito. Quero dizer, se bem que talvez seja uma surpresa, os fantasmas quase nunca ficam nesses lugares. Quero dizer, perto de suas sepulturas. Eles tendem a se concentrar muito mais nos lugares onde viviam. Na verdade os cemitérios podem ser um local de descanso para os mediadores.
Ou deslocadores. Ou o que quer que Paul Slater esteja convencido de que eu sou.
Paul Slater que, como eu estava começando a perceber, não era só um sujeito manipulador que cursava a décima primeira série e por acaso sentia tesão por mim. Não, segundo seu avô, Paul Slater era... bem, o demônio.
E eu tinha acabado de lhe vender minha alma.
Esta não era uma informação que eu poderia processar com facilidade. Precisava de tempo para pensar, tempo para deduzir o que faria em seguida.
Pisei no cemitério fresco, sombreado, e entrei num caminho estreito que, nesse ponto, tinha se tornado um tanto familiar para mim. Eu passava um bocado por ele. De fato algumas vezes, quando fingia que tinha de ir ao banheiro no meio das aulas, era para cá que vinha, ao cemitério da missão e a este caminho. Porque no fim dele havia uma coisa muito importante para mim. Uma coisa da qual eu gostava.
Mas dessa vez, quando cheguei ao fim do pequeno caminho de pedras, descobri que não estava sozinha. Jesse estava ali, olhando para sua própria lápide.
Eu sabia de cor as palavras que ele estava lendo, porque fui eu que, com o padre Dom, tinha supervisionado a gravação delas.
Aqui jaz Hector "Jesse" De Silva, 1830-1850, Irmão, Filho e Amigo Amado.
Jesse ergueu os olhos e eu fui para perto. Sem palavras ele estendeu a mão por cima da lápide. Eu cruzei os dedos com os dele.
- Desculpe - disse ele, com o olhar mais escuro e opaco do que nunca. - Por tudo.
Dei de ombros, mantendo o olhar na terra em volta de sua lápide.
- Entendo, acho. - Mas não entendia. - Quero dizer, você não pode evitar se... não sente o mesmo que eu sinto por você.
Não sei o que me fez dizer isso. No minuto em que as palavras saíram da minha boca, desejei que o túmulo abaixo de nós se abrisse e me engolisse também.
Então você pode imaginar minha surpresa quando Jesse perguntou, numa voz que eu mal reconheci como sua, de tão cheia de emoção represada:
- É isso que você acha? Que eu queria ir embora?
- Não queria? - Encarei-o, completamente pasma. Estava me esforçando muito para ficar friamente distanciada da coisa toda, já que tinha tido o orgulho pisoteado. Mesmo assim meu coração, que eu poderia ter jurado que havia se encolhido e explodido há um ou dois dias, subitamente voltou trêmulo a vida, mesmo eu o alertando para não fazer isso.
- Como eu poderia ficar? – perguntou Jesse. - Depois do que aconteceu entre nós, Suzannah, como eu poderia ficar?
Eu realmente não tinha a menor idéia do que ele estava falando.
- O que aconteceu entre nós? O que você quer dizer?
- Aquele beijo. - Ele soltou minha mão, tão subitamente que eu cambaleei.
Mas não me importei. Não me importei porque ia começando a pensar que alguma coisa maravilhosa estava acontecendo. Uma coisa gloriosa. Pensei nisso ainda mais quando vi Jesse levantar uma das mãos e passar os dedos pelos cabelos, e vi que eles estavam tremendo. Os dedos, quero dizer. Por que os dedos dele estariam tremendo assim?
- Como eu poderia ficar? - perguntou Jesse. - O padre Dominic estava certo. Você precisa estar com alguém que sua família e seus amigos possam ver. Precisa de alguém com quem você possa envelhecer. Precisa de alguém vivo.
De repente tudo estava começando a fazer sentido. Aquelas semanas de silêncio incômodo entre nós. O distanciamento de Jesse. Não era porque ele não me amasse. Não era porque não me amasse, de jeito nenhum.
Balancei a cabeça. Meu sangue, que eu tinha começado a suspeitar de que havia se congelado nas veias nos últimos dias, pareceu subitamente correr de novo. Esperei não estar cometendo outro erro. Esperei que isso não fosse um sonho do qual acordaria logo.
- Jesse - falei, bêbada de felicidade. - Eu não me importo com nada disso. Aquele beijo... aquele beijo foi a melhor coisa que já me aconteceu.
Eu estava simplesmente declarando um fato. Só isso. Um fato que eu tinha certeza de que ele já conhecia.
Mas acho que foi surpresa para ele, porque a próxima coisa que percebi foi que Jesse tinha me puxado para os seus braços e estava me beijando de novo.
E foi como se o mundo que nas últimas semanas tinha estado fora do eixo subitamente se ajeitasse. Eu estava nos braços de Jesse e ele estava me beijando e tudo estava bem. Mais do que bem. Tudo estava perfeito. Porque ele me amava.
E sim, certo, talvez isso significasse que ele precisava se mudar de casa... e sim, havia toda a coisa do Paul. Eu ainda não tinha certeza do que faria a respeito.
Mas qual era a importância de tudo isso? Ele me amava! E dessa vez, quando me beijou, ninguém interrompeu.

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