segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O Morro dos Ventos Uivantes, Cap XXl

Tivemos um bocado de trabalho com Cathy nesse dia; ela acordou animadíssima, ansiosa por ir ter com o primo, e tanto chorou e se lamentou ao saber da sua parti­da, que o próprio pai foi obrigado a consolá-la, afirmando-lhe que em breve ele voltaria; acrescentou, contudo: "Se eu conseguir trazê-lo" — e não havia esperanças disso. Essa promessa foi-lhe de pouca valia; mas o tempo é o melhor remédio e, embora de vez em quando ela ainda perguntasse ao pai quando Linton voltaria, antes que o revisse esqueceria as suas feições de tal maneira que não mais o reconheceria.
Quando, por acaso, eu encontrava a governanta do Morro, nas minhas idas a Gimmerton, costumava pergun­tar como ia o patrãozinho, pois ele vivia quase tão recluso quanto Catherine e nunca o víamos. Por ela, concluí que continuava com pouca saúde e insuportavelmente capri­choso. Ela me disse que o Sr. Heathcliff parecia detestá-lo cada vez mais, embora se esforçasse por escondê-lo: antipatizava com o som da voz dele e não podia ficar muito tempo sentado na mesma sala que ele. Quase não falavam: Linton estudava as suas lições e passava as tardes numa pequena sala, ou então ficava na cama o dia todo, pois estava sempre pegando tosses e resfriados e queixando-se de dores de todos os tipos.
— Nunca vi criatura tão piegas — acrescentou a mulher — nem tão cheia de cuidados consigo mesma. Se eu deixo a janela aberta de noite, o que ele fala! E faz questão de ter a lareira acesa, no auge do verão; e não suporta o cachimbo de Joseph; e tem de ter sempre doces e petiscos, e sempre leite. .. sem se importar com os ou­tros; fica sentado, junto à lareira, embrulhado num capote de peles, sempre com uma torrada e chá ou outra qual­quer bebida quente para ir bebendo aos pouquinhos. Quan­do Hareton, por pena, vem conversar com ele (Hareton não é mau rapaz, embora seja bruto), já se sabe que vão acabar zangados, um praguejando e o outro chorando. Acho que o patrão gostaria de ver Earnshaw dar-lhe uma surra, se não fosse seu filho; e estou certa de que acabaria expulsando-o de casa, se soubesse das exigências dele. Mas foge bem à tentação: nunca entra na saleta e, quando Linton começa a fazer das suas diante dele, manda-o logo para cima.
Adivinhei, por aquela descrição, que um ambiente de antipatia tinha tornado o jovem Heathcliff egoísta e desa­gradável, se é que ele já não era assim por natureza; e, conseqüentemente, o meu interesse por ele decaiu, apesar de eu ainda sentir pena da sua sorte e desejar que ele tivesse ficado conosco. O Sr. Edgar pedia-me que lhe obti­vesse informações sobre o sobrinho; pensava muito nele, creio, e não se importaria de arriscar-se para poder vê-lo. Certa vez, pediu-me que perguntasse à governanta se ele nunca ia ao povoado. Ela respondeu que só fora duas vezes, a cavalo, acompanhando o pai, e que ambas as vezes queixara-se de exaustão nos três ou quatros dias sub­seqüentes. Se não me engano, a governanta deixou o em­prego dois anos após a chegada do jovem Linton; outra, que eu não conhecia, tomou-lhe o lugar e ainda continua lá.
O tempo correu, na granja, de maneira agradável, até a menina Cathy completar dezesseis anos. Nunca festejá­vamos o dia do seu aniversário, pois era também a data em que sua mãe morrera. O Sr. Edgar invariavelmente passava esse dia sozinho, na biblioteca, apenas saindo, à noitinha, a caminho do cemitério de Gimmerton, de onde só voltava geralmente depois da meia-noite. Catherine fi­cava, assim, entregue a si mesma. Aquele 20 de março era um belo dia de primavera e, assim que seu pai se fechou na biblioteca, Cathy desceu, toda pronta para sair, e disse-me que pedira licença ao pai para ir dar um passeio pela charneca comigo; e que o Sr. Linton lhe dera licença, contanto que não fôssemos longe e voltássemos dentro de uma hora.
— Por isso apresse-se, Ellen! — exclamou ela. — Sei aonde quero ir: é onde está um bando de galinholas Quero ver se já fizeram os seus ninhos.
— Isso deve ser bem longe — respondi. — Não fazem os ninhos na beira da charneca.
— Não é longe, não — respondeu ela. — Cheguei bem perto delas com meu pai.
Coloquei o chapéu e saí, sem pensar mais no assunto. Cathy pulava à minha frente, como um jovem galgo, e a princípio gostei muito de ouvir as cotovias cantando e de sentir o calorzinho do sol, enquanto a via correr, os cachos dourados esvoaçando, o rosto suave e puro como uma rosa silvestre e os olhos radiantes de alegria. Ela era uma cria­tura feliz, um anjo, naquele tempo. Pena que nunca se sentisse satisfeita.
— Bem — perguntei —, onde estão as suas galinho­las, menina? Já devíamos estar perto delas: o portão do parque da granja já está muito longe.
— E só mais um pouco além, só mais um pouco, Ellen — respondia sempre ela. — É só subir aquela colina, atravessar aquele baixio, e quando você chegar ao outro lado eu já terei descoberto as galinholas.
Mas havia tantas colinas para subir e tantos baixios para atravessar que comecei a ficar cansada e disse-lhe que tínhamos de parar e voltar para trás. Mas ela me ultra­passara de muito e tive de gritar: ou não me ouviu, ou fingiu não fazê-lo, pois continuou a correr, obrigando-me a segui-la. Finalmente afundou numa vertente; e, antes que eu pudesse fazê-la parar, estava duas milhas mais próxima do Morro do que da sua própria casa e vi duas pessoas agarrando-a, uma das quais tive a certeza de ser o Sr. Heathcliff.
Cathy fora apanhada roubando ninhos ou, pelo menos, procurando-os. O Morro era propriedade de Heath­cliff e ele estava passando uma descompostura nela.
— Não peguei nem sequer descobri nenhum ninho — afirmava ela, gesticulando. — Não queria pegar as aves; papai disse-me que havia muitas aqui e quis ver os ovos.
Heathcliff olhou para mim com um sorriso maligno que bem demonstrava saber de quem se tratava, e pergun­tou quem era "papai".
— O Sr. Linton, da Granja Thrushcross — respondeu ela. — Logo vi que o senhor não me conhecia, ou não me haveria falado dessa maneira.
— Quer dizer que você pensa que o seu pai é muito estimado e respeitado? — volveu ele, em tom sarcástico.
— E quem é você? — quis saber Catherine, com olhar curioso. — Esse rapaz, eu já vi antes. É seu filho?
Apontou para Hareton, a outra pessoa, que em nada mais progredira senão na altura e na força: parecia tão desajeitado e bruto como antes.
— Srta. Cathy — interrompi —, já vai fazer três horas, em vez de uma, que estamos longe de casa. Temos de voltar.
— Não, este rapaz não é meu filho — respondeu Heathcliff, empurrando-me para o lado. — Mas eu tenho um filho e você também já o viu. Acho que, embora a sua governanta esteja com pressa, seria boa idéia descansarem um pouco. Por que não caminhar mais um pouco e vir até a minha casa? Uma vez repousadas, o caminho de volta lhes parecerá mais curto; e serão bem recebidas.
Sussurrei ao ouvido de Catherine que de nenhuma maneira aceitasse aquela oferta, que era totalmente despro­positada.
— Por quê? — perguntou ela, em voz alta. — Estou cansada de correr e a terra está úmida: não posso sentar-me nela. Vamos, Ellen. Além disso, ele diz que eu já vi o seu filho. Acho que está enganado, mas creio que sei onde ele mora: na fazenda onde uma vez entrei, ao vir de Peniston Crag. Não é lá?
— É. Venha, Nelly, e não resmungue... ela vai gostar de nos fazer uma visita. Hareton, vá à frente com a menina. Você vem comigo, Nelly.
— Não, ela não vai a nenhum lugar! — gritei, debatendo-me para soltar o braço, que ele tinha agarrado. Mas ela já estava quase à porta, correndo a toda velocidade. Hareton não fingiu, sequer, acompanhá-la: entrou por um atalho e desapareceu.
— Sr. Heathcliff, o que está fazendo é muito mal­feito — continuei. — O senhor sabe disso. Ela vai ver Linton e contar tudo tão logo voltarmos a casa; e eu terei a culpa.
— Quero que ela veja Linton — respondeu ele. — Está com melhor aspecto estes últimos dias. . . e não é sempre que isso acontece. Nós a convenceremos a guardar segredo da visita; que mal há nisso?
— O mal está em que o pai dela vai me odiar se descobrir que a deixei entrar na sua casa; e estou conven­cida de que os seus desígnios não são bons — respondi.
— Os meus desígnios são tão honestos quanto pos­sível, você vai ver — retrucou ele. — A minha intenção é que os primos se apaixonem e acabem casando. Como vê, estou agindo generosamente para com o seu patrão: a filha dele não tem esperanças de herdar nada e, se ela reagir como desejo, passará a herdeira, conjuntamente com Linton.
— Se Linton morresse — falei —, e a sua vida pare­ce precária, Catherine seria a única herdeira.
— Nada disso — replicou ele. — Não há nenhuma cláusula, no testamento, que diga isso: a propriedade dele passaria a mim. Mas, para evitar disputas, desejo que eles se unam e estou decidido a propiciar esse casamento.
— Pois eu estou decidida a não deixá-la mais apro­ximar-se desta casa — respondi, ao chegarmos ao portão, onde Cathy já nos esperava.
Heathcliff mandou-me calar e, precedendo-nos, apressou-se a nos abrir a porta. A minha jovem patroa deu-lhe várias olhadelas, como se não soubesse o que pen­sar dele; mas ele sorria sempre que dava com os olhos dela e amaciava a voz ao falar-lhe — e eu fui suficien­temente idiota para imaginar que a lembrança da mãe dela pudesse fazê-lo desistir de lhe desejar mal. Linton estava de pé junto à lareira. Devia estar voltando de um passeio pelos campos, pois ainda tinha o boné na cabeça e estava chamando Joseph para lhe levar sapatos secos. Era alto para a idade, dezesseis anos incompletos. Seus traços conti­nuavam corretos e tinha a pele e os olhos mais brilhantes do que outrora, embora fosse apenas um brilho temporá­rio, obra dos bons ares e do sol.
— Quem é aquele? — perguntou o Sr. Heathcliff, voltando-se para Cathy. — Será que você sabe?
— Seu filho? — retrucou ela, após examinar pri­meiro um e depois o outro.
— Isso mesmo — respondeu ele. — Mas é a pri­meira vez que você o vê? Pense! Oh, como você tem pouca memória! Linton, você não se lembra de sua prima, que antigamente tanto nos pedia para ver?
— O quê, esse é Linton! — exclamou Cathy, toma­da de alegre surpresa. — É este o pequeno Linton? Está mais alto do que eu! Você é mesmo Linton?
O rapaz aproximou-se. Cathy beijou-o fervorosamente e olharam um para o outro, admirados com a mudança que o tempo operara. Catherine atingira o máximo de sua altura; sua silhueta era ao mesmo tempo roliça e esbelta, elástica e flexível, e toda ela resplandecia de saúde e ani­mação. O aspecto e os movimentos de Linton eram muito lânguidos e seu físico demasiado franzino; mas havia nele uma graça de maneiras que mitigava esses defeitos e lhe dava um ar agradável. Após trocar várias demonstrações de carinho com ele, Cathy avançou para o Sr. Heathcliff, que estava à porta, dividindo a sua atenção entre o que se passava dentro e o que se desenrolava lá fora — fingindo preocupar-se mais com o exterior, quando na verdade ob­servava o que acontecia na sala.
— Então o senhor é meu tio! — disse ela, alteando-se para beijá-lo. — Achei-o logo simpático, embora o senhor a princípio estivesse zangado. Por que não costuma ir à granja com Linton? Viver todos estes anos tão perto de nós e nunca nos ter ido visitar é estranho; qual a razão disso?
— Fui à granja vezes demais, antes de você nascer — respondeu ele. — Pare com isso! Se você quer beijar alguém, beije Linton: eu não sou homem para beijos.
— Ellen, sua perversa! — exclamou Catherine, atirando-se sobre mim aos beijos. — Sua má! Não querer que eu entrasse! Doravante vou vir até aqui todas as ma­nhãs . . . posso, tio? E, de vez em quando, vou trazer o meu pai. O senhor não gostaria disso?
— Claro que gostaria! — replicou ele, mal contendo uma careta, resultante da sua profunda aversão pela idéia. — Mas escute... — continuou, voltando-se para a meni­na. — Pensando bem, acho melhor contar-lhe. O seu pai tem má vontade contra mim; brigamos, há anos atrás, bri­gamos seriamente; e se você lhe disser que veio aqui ele vai proibi-la de voltar. Portanto você não deve dizer-lhe nada, a menos que não queira nunca mais ver o seu primo: pode vir, se quiser, mas não de maneira que ele saiba disso.
— Por que foi que brigaram? — perguntou Cathe­rine, desanimada.
— Ele achava que eu era demasiado pobre para me casar com a irmã dele — respondeu Heathcliff — e não me desculpou, quando consegui conquistá-la. O seu amor-próprio ficou ferido.
— Ele procedeu mal! — exclamou a menina. — Um dia ainda hei de lhe dizer isso. Mas Linton e eu nada temos com a briga. Está bem, não virei aqui; ele irá me visitar na granja.
— É longe demais para mim — murmurou o jovem. — Caminhar quatro milhas daria cabo de mim. Não, venha você aqui de vez em quando; não todas as manhãs, mas uma ou duas vezes por semana.
O pai lançou-lhe um olhar de fuzilante desprezo.
— Receio, Nelly, estar perdendo o meu tempo — resmungou ele. — A Srta. Catherine, como o pobre-diabo a chama, vai acabar descobrindo o que ele é e mandando-o plantar batatas. Se, em vez dele, fosse Hareton! Sabe que, vinte vezes por dia, eu cobiço Hareton, com toda a sua degradação? Se ele fosse filho de outro, acho que o amaria. Mas acho também que ele está a salvo do amor dela. Vou colocá-lo contra aquela mesquinha criatura, a não ser que ela se remexa demasiado. Calculamos que ele mal chegará aos dezoito anos. Veja que vergonha! Está tão absorto em mudar de sapatos que não olha para ela. Linton!
— O que é, pai? — respondeu o rapaz.
— Você não tem nada para mostrar à sua prima? Nem um ninho de coelhos? Leve-a ao jardim antes de trocar de sapatos; ou à cavalariça, para ver o seu cavalo.
— Será que você não prefere ficar aqui? — pergun­tou Linton, dirigindo-se a Cathy num tom que bem expres­sava a sua relutância em sair de onde estava.
— Não sei — respondeu ela, deitando uma olhadela para a porta e evidentemente ansiosa por sair.
Ele se manteve sentado e aproximou-se mais do fogo. Heathcliff levantou-se, encaminhando-se para a cozinha e dali para o pátio, chamando por Hareton. O rapaz respon­deu e dali a pouco os dois voltaram. Via-se que o jovem se lavara, pelo rubor das faces e o molhado dos cabelos.
— Deixe-me perguntar-lhe, tio — exclamou Cathy, lembrando-se do que a governanta lhe tinha dito. — Esse aí não é meu primo, é?
— É — respondeu ele. — É sobrinho de sua mãe. Você não gosta dele?
Catherine torceu o nariz.
— Não o acha bonito? — continuou o Sr. Heathcliff. A impudente criaturinha ergueu-se nas pontas dos pés
e sussurrou qualquer coisa ao ouvido do tio. Ele riu, mas Hareton fechou a cara: percebi que era muito suscetível a pressupostas ofensas e tinha, evidentemente, noção da sua inferioridade. Mas o seu amo ou guardião fez com que ele desfranzisse a testa, dizendo-lhe:
— Você parece ser o favorito, Hareton! Ela diz que você é um. . . Que foi que ela disse? Bem, algo muito agradável. Vá você mostrar-lhe a fazenda. E porte-se co­mo um cavalheiro, hein? Não diga palavrões, não olhe para a mocinha quando ela não estiver olhando para você, e nem quando ela estiver; e quando falar pronuncie bem as palavras e conserve as mãos fora dos bolsos. Vamos, mos­tre-se gentil para com ela.
Ficou observando o par, que passava por baixo da janela. Earnshaw olhava para o lado oposto à sua com­panheira. Parecia contemplar a paisagem tão conhecida com o interesse de um artista e de um forasteiro. Catherine olhava disfarçadamente pala ele, com ar de admiração. Vendo que ele não falava, voltou a sua atenção para outras coisas e começou a cantarolar, a fim de compensar a falta de conversa.
— Dobrei-lhe a língua — observou Heathcliff. — Ele não ousará pronunciar uma única sílaba! Nelly, você se recorda de mim com a idade dele. . . não, alguns anos mais moço. Alguma vez eu pareci tão estúpido, tão "burro", como diz Joseph?
— Pior, até — respondi —, porque mais recalcado.
— Sinto prazer em vê-lo — continuou ele, como se pensasse em voz alta. — Satisfez as minhas expectativas. Se tivesse nascido idiota, eu não gostaria tanto. Mas ele não é idiota e compreendo bem os seus sentimentos, pois já foram os meus. Sei o que ele está sofrendo agora, por exemplo: e sei que é apenas o começo do que há de so­frer; e que ele nunca será capaz de emergir da sua crosta de rudeza e ignorância. Consegui mantê-lo mais depen­dente do que o canalha do pai dele me mantinha, e mais inferiorizado, pois ele se orgulha da sua animalidade. En­sinei-o a desprezar tudo quanto não é animalesco como coisas bobas e fracas. Não acha que Hindley ficaria orgu­lhoso do filho se o pudesse ver? Quase tão orgulhoso quanto eu estou do meu. Mas há uma diferença: um é ouro empregado para revestir o chão, o outro é latão lustrado a fim de parecer prata. O meu não tem por onde se possa pegar nele, mas eu hei de ter o mérito de esporeá-lo até onde ele possa ir. O dele tinha qualidades de primeira, que se perderam: embotei-as completamente. Eu nada tenho a lastimar; ele teria muito. E o melhor da festa é que Hareton gosta tanto de mim! Você há de convir que nisso eu ganhei de Hindley. Se o patife se erguesse do túmulo para me censurar pelos prejuízos causados ao filho, eu teria o di­vertimento de ver o filho voltar-se contra ele, indignado por ousar atacar o seu único amigo neste mundo!
Heathcliff soltou uma risada diabólica ao pensar na­quilo. Eu não fiz comentários, pois vi que ele não os esperava. Entretanto, o nosso jovem companheiro de sala, que estava sentado longe demais para poder ouvir o que se dizia, começou a mostrar sinais de impaciência, pro­vavelmente arrependido de se ter privado da companhia de Catherine por excesso de comodismo. O pai reparou nos olhares ansiosos que ele dirigia para a janela e na mão que se estendia, irresolutamente, para o boné.
— Levante-se, seu preguiçoso! — exclamou, fingin­do entusiasmo. — Corra atrás deles! Estão bem ali no canto, junto das colméias.
Linton reuniu forças e saiu de perto da lareira. A gelosia estava aberta e, quando ele saiu, ouvi Cathy per­guntar ao seu insociável acompanhante o que queria dizer a inscrição por cima da porta. Hareton olhou para cima e coçou a cabeça, igual a um palhaço.
— É qualquer coisa — respondeu. — Não consigo ler.
— Não consegue ler? — exclamou Catherine. — Pois eu posso: está escrito em inglês. Só quero saber por que está aí.
Linton riu — pela primeira vez, para mim.
— Ele não conhece nem as letras — disse para a prima. — Não é de espantar que exista alguém tão burro?
— Ele é normal? — perguntou Cathy, com ar sério. — Ou será débil mental? Perguntei-lhe duas vezes e ele fez uma cara tão estúpida, que acho que não me entendeu. Quanto a mim, mal posso entendê-lo!
Linton riu de novo e olhou provocadoramente para Hareton, que naquele momento parecia estar entendendo muito bem.
— Não há nada com ele, a não ser preguiça; não é, Earnshaw? Minha prima pensa que você é idiota. Aí tem você a conseqüência do seu desprezo pelo "estudo", como você diz. Já reparou, Catherine, no horrível sotaque dele?
— Ora, que diabo tem isso? — rosnou Hareton, mais habituado a responder ao seu companheiro de todos os dias. Ia falar mais, mas os dois primos explodiram num ataque de riso, a minha jovem ama encantada de descobrir que poderia transformar aquela estranha pronúncia num motivo de divertimento.
— Que é que o Diabo tem a ver nessa frase? — retrucou Linton. — Papai disse-lhe para não usar pala­vrões, mas você dá sempre um jeito de praguejar. Tente comportar-se como um cavalheiro, vamos!
— Se você não fosse um maricas, juro que agorinha mesmo lhe esborrachava a cara! — respondeu o furioso rapaz, retirando-se com o rosto em fogo de raiva e vergo­nha, pois tinha consciência de haver sido insultado.
Tendo, como eu, ouvido a conversa, o Sr. Heathcliff sorriu ao ver a reação de Hareton; mas logo a seguir lançou um olhar de singular aversão ao jovem par, que continua­va a conversar junto à porta — o rapaz, todo animado a comentar os defeitos e as deficiências de Hareton e a contar anedotas baseadas nele; e a moça rindo do que ele dizia, sem pensar na maldade que demonstrava. Comecei a sentir mais repulsa do que compaixão por Linton e a desculpar, até certo ponto, o pai por lhe ter desprezo.
Ficamos no Morro até a tarde: não pude arrancar Cathy dali senão quando ela se resolveu a ir embora; feliz­mente, porém, o meu patrão não saíra do seu quarto e não notara a nossa prolongada ausência. A caminho de casa, tentei esclarecer Cathy sobre a verdadeira natureza das pessoas que acabávamos de deixar, mas ela meteu na ca­beça que eu tinha algo contra elas.
— Ora — exclamou —, você se põe do lado de papai, Ellen, você é parcial; senão, nunca me haveria en­ganado, durante anos, dizendo-me que Linton morava muito longe daqui. Estou muito zangada com você; só que, por outro lado, estou tão feliz, que nem posso ficar zan­gada! Mas você não deve dizer nada contra meu tio: ele é meu tio, lembre-se; e eu vou ralhar com papai por ter brigado com ele.
E assim por diante, até eu me convencer de que não adiantava dizer-lhe que se enganava. Ela não falou da visita essa mesma noite, porque não viu o Sr. Linton. Mas no dia seguinte contou-lhe tudo, para minha tristeza; se bem que eu sentisse um certo alívio, pois achava que o pai seria capaz de orientá-la e preveni-la melhor do que eu. Mas ele relutou em dar-lhe motivos satisfatórios para que ela evitasse manter relações com a casa do Morro, e Catherine gostava de boas razões para todas as objeções às suas vontades de menina mimada.
— Papai! — exclamou, logo de manhã. — Imagine quem eu vi ontem, ao passear pela charneca! Papai, você estremeceu! Consciência pesada, não é? Eu vi. . . mas vou lhe contar como foi que eu descobri. . . e como descobri que Ellen me enganou, embora fingisse ter pena de mim, quando eu esperava que Linton voltasse!
E contou em detalhes o desenrolar do passeio e suas conseqüências. Embora me lançasse mais de um olhar de reprovação, meu patrão nada disse até ela terminar. Puxou-a, então, para ele e perguntou-lhe se sabia por que razão lhe tinha ocultado a proximidade de Linton. Pensa­ria ela que fora para negar-lhe um prazer que ela pudesse ter sem contratempos?
— Foi porque você não gosta do Sr. Heathcliff — respondeu ela.
— Nesse caso, você pensa que eu me importo mais com os meus próprios sentimentos do que com os seus, não é, Cathy? — disse ele. — Não; não foi porque eu não gostasse do Sr. Heathcliff, mas porque ele não gosta de mim; e porque é um homem diabólico, cuja maior alegria é desgraçar e arruinar as pessoas a quem odeia, se elas lhe derem a menor oportunidade. Sabia que você não poderia manter relações com seu primo sem entrar em contato com ele; e sabia que ele a detestaria por minha causa; por isso, para o seu bem, e nada mais, tomei precauções para evitar que você voltasse a ver Linton. Pensava explicar-lhe isso quando você fosse mais velha, e me arrependo agora de não o ter feito antes.
— Mas o Sr. Heathcliff foi muito simpático, papai — objetou Catherine, nada convencida. — E não pôs obstáculos a que eu e Linton voltássemos a ver-nos; disse que eu podia ir lá quando quisesse, mas que eu não lhe devia dizer, porque você brigara com ele e não lhe per­doava ter casado com a tia Isabella. E é verdade. Você é que tem a culpa: ele, pelo menos, quer que eu e Linton sejamos amigos. Você, não.
Vendo que ela não acreditava no que ele lhe dizia sobre a perversidade do tio, o meu amo delineou rapida­mente a conduta dele para com Isabella e a maneira pela qual se apossara do Morro dos Ventos Uivantes. Não agüentava falar muito desse assunto, pois ainda sentia o mesmo horror e a mesma repulsa pelo antigo inimigo que sentia desde a morte da Sra. Linton. "Ela ainda poderia estar viva, se não fosse por ele!", era o seu constante e amar­go pensamento; e, a seus olhos, Heathcliff aparecia como um assassino. Cathy — que não conhecia más ações, exce­to as suas pequenas desobediências, injustiças e demonstra­ções de cólera, baseadas na sua educação mimada e no seu temperamento apaixonado, de que se arrependia assim que as cometia — ficou espantada com a existência de um espírito capaz de passar anos arquitetando vinganças e levá-las a cabo sem o mínimo remorso. Tão impressionada e chocada ficou ante aquela nova visão da natureza huma­na — até então excluída de todos os seus estudos e pensa­mentos — que seu pai achou desnecessário continuar. Acrescentou, apenas:
— Mais tarde você saberá, minha querida, por que motivo eu não quero que você freqüente a casa ou a famí­lia dele; agora volte às suas ocupações e não pense mais neles.
Catherine beijou o pai e, durante duas horas, dedi­cou-se sossegadamente às lições, conforme era costume; depois acompanhou-o no seu passeio e o dia se passou como de hábito; mas à noite, quando subi ao quarto para ajudá-la a despir-se, encontrei-a chorando, ajoelhada à bei­ra da cama.
— Deixe disso, bobinha! — exclamei. — Se você tivesse sofrimentos reais, teria vergonha de gastar uma lá­grima sequer por causa de uma pequena contrariedade. Você nunca teve um sofrimento real, Catherine. Suponha, por um minuto, que seu pai e eu morrêssemos e você ficas­se sozinha no mundo: como se sentiria, então? Compare o seu atual aborrecimento com uma aflição dessas e agra­deça a Deus pelos amigos que tem em vez de querer ter mais.
— Não estou chorando por mim, Ellen — retrucou ela —, e sim por ele. Esperava que eu fosse lá amanhã e ficará tão desapontado! Esperará por mim e eu não irei!
— Bobagem — retruquei. — Você julga que ele tem pensado tanto em você quanto você nele? Acaso não tem Hareton para lhe fazer companhia? Ninguém chora por perder um parente que só viu duas vezes. Linton ima­ginará o que aconteceu e não pensará mais em você.
— Mas será que não posso escrever-lhe um bilhete, dizendo-lhe por que não posso ir lá? — perguntou ela, pondo-se de pé — e mandar-lhe os livros que lhe prometi emprestar? Os livros dele não são tão bons quanto os meus e ele ficou interessadíssimo em que eu os emprestasse a ele. Não posso, Ellen?
— Não, não pode! — respondi categoricamente. — Ele depois lhe escreveria e a correspondência nunca mais teria fim. Não, as relações entre vocês dois têm de termi­nar completamente; é isso que seu pai espera e o que será feito.
— Mas como é que um bilhetinho de nada. . . — insistiu ela, com ar de súplica.
— Silêncio! — atalhei. — Nada de bilhetinhos. Vá Para a cama.
Ela me lançou um olhar furioso, tão furioso, que a princípio me recusei a beijá-la; cobria-a e fechei a porta, aborrecida; mas, arrependendo-me, voltei pé ante pé ao quarto e, para meu espanto, dei com ela de pé junto à escrivaninha, com um pedaço de papel em branco à sua frente e um lápis na mão, que ela tratou de esconder ao me ver entrar.
— Você não arranjará ninguém para mandar bilhete algum, Catherine — falei —, mesmo que o escreva; e vou apagar a vela.
Coloquei o extintor sobre a chama, recebendo, ao fazê-lo, uma palmada na mão e um atrevido "mulher hor­rível!" Saí de novo do quarto e ela passou o ferrolho na porta, num dos seus piores acessos de má-criação. A carta foi concluída e entregue ao destinatário por um jovem leiteiro do povoado; mas isso eu só vim a saber mais tarde. O tempo foi se passando e Cathy recobrando o bom hu­mor, embora desse para se meter pelos cantos e de vez em quando, se eu chegasse perto quando ela estava lendo, a visse estremecer e curvar-se sobre o livro, como se o qui­sesse esconder, e percebesse beiradas de papel solto apa­recendo por entre as páginas. Ela também passara a descer bem cedo, de manhã, e a ficar na cozinha, como se esti­vesse à espera de algo; e tinha urna pequena gaveta, numa escrivaninha da biblioteca, onde remexia horas seguidas e cuja chave tinha o cuidado de guardar.
Um dia em que ela examinava a gaveta, observei que as coisas que anteriormente guardava nela haviam sido substituídas por pedaços de papel dobrado. Minha curio­sidade e minhas suspeitas foram logo despertadas e decidi ver quais seriam os seus misteriosos tesouros. À noite, tão logo ela e o patrão subiram para os seus aposentos, procurei, entre as chaves da casa, uma que servisse na fe­chadura da gaveta. Uma vez aberta, esvaziei todo o seu conteúdo para o meu avental e levei-o comigo, a fim de passá-lo calmamente em revista no meu quarto. Embora suspeitasse, ainda assim fiquei surpresa ao descobrir que havia um monte de cartas — quase uma por dia — de Linton Heathcliff, respostas a missivas enviadas por ela. As mais antigas eram curtas e escritas num tom embaraça­do; aos poucos, porém, tinham se transformado em copiosas cartas de amor, ridículas, como era natural devido a idade, mas, aqui e ali, com passagens que me pareciam tiradas de alguma fonte mais experiente. Algumas me im­pressionaram como estranhas misturas de ardor e prosaísmo, começando num tom sincero e concluindo no estilo afetado, palavroso, que um colegial usaria ao se dirigir a uma amada imaginária, incorpórea. Não sei se Cathy se satisfazia com aquilo; a mim pareciam boas para se jogar no lixo. Após ter lido algumas, amarrei-as num lenço e co­loquei-as de lado, voltando a fechar a chave a gaveta vazia.
Seguindo o seu costume, na manhã seguinte Cathy desceu bem cedo e foi logo para a cozinha: vi-a dirigir-se para a porta, ao ver chegar um rapazinho que vendia leite no povoado; e, enquanto lhe enchiam as vasilhas, ela en­fiou algo no bolso do casaco dele, ao mesmo tempo que retirava alguma coisa. Dei a volta ao jardim e fiquei à espera do garoto, que lutou valentemente em defesa do que lhe havia sido confiado. Derramamos metade do leite, mas consegui tirar-lhe a carta de Cathy e, ameaçando-o de sérias conseqüências se ele não fosse direto para o povoa­do, desdobrei-a e ali mesmo me pus a lê-la. Era bem mais simples e eloqüente do que a correspondência do primo, num estilo bonito e igualmente idiota. Abanei a cabeça e entrei, pensativa, em casa. Como o dia estava chuvoso, ela não podia sair a passear pelo parque e, ao terminar o estudo matinal, correu para a sua gaveta. Seu pai estava lendo à sua mesa de trabalho e eu, propositadamente, en­tregara-me ao conserto de umas franjas meio rotas na cor­tina da janela, de onde podia observar tudo o que ela fazia. Jamais uma ave, voltando ao ninho em que deixara os filhotes, e encontrando-o destruído, expressou um deses­pero tão completo em piados e angustiado bater de asas, do que ela num único "oh!" e na mudança que transfigu­rou o seu rosto, ultimamente rosado e feliz. O Sr. Linton ergueu os olhos.
— Que foi, meu amor? Você se machucou? — per­guntou ele.
O seu olhar e a sua pergunta asseguraram-lhe que não fora ele quem descobrira as cartas.
— Não, papai! — respondeu ela. — Ellen, Ellen! Suba, por favor. . . Estou enjoada! — Obedeci e subi com ela.
— Ellen, você tirou as cartas — começou ela ime­diatamente, pondo-se de joelhos, mal ficamos a sós. —. Pelo amor de Deus, dê-as para mim e prometo-lhe que nunca, mas nunca, voltarei a escrever! Não conte nada ao meu pai. Você não contou, não foi, Ellen? Diga que não! Fui muito desobediente, mas juro que nunca mais escre­verei!
Com ar severo e grave, mandei-a levantar-se.
— Pois é! — exclamei. — Srta. Catherine, pode se envergonhar dessas cartas! Em bela coisa você ocupa as suas horas de folga! Essa correspondência do seu primo merecia ser publicada! E que é que você acha que seu pai vai pensar, quando eu a mostrar a ele? Ainda não o fiz, mas não julgue que não vou colocá-lo a par dos seus ridí­culos segredos. Que vergonha! E você é que deve ter come­çado, aposto, a escrever tais absurdos: tenho a certeza de que ele nem sequer pensaria nisso.
— Não fui eu! Não fui eu! — soluçou Cathy. — Eu não pensei em amá-lo, até que.. .
Amá-lo! — repeti, em tom de desprezo. — Amá-lo! Onde já se viu dizer tal coisa! Era como se eu dissesse que amava o moleiro que vem uma vez por ano comprar o nosso milho. Que belo amor! As duas vezes em que você viu Linton não perfazem sequer quatro horas da sua vida! Aqui estão as ridículas cartas. Vou levá-las para a biblio­teca e veremos o que seu pai dirá a respeito desse amor.
Ela pulou para salvar as suas preciosas missivas, mas eu as ergui acima da minha cabeça. Ela, então, suplicou-me que as queimasse, que fizesse o que quisesse, menos mostrá-las ao pai. E, tendo tanta vontade de rir quanto de a repreender — pois achava tudo aquilo coisa de criança —, acabei cedendo, com uma condição!
— Se eu consentir em queimá-las, você me promete nunca mais mandar nem receber carta alguma, nem livros (pois vejo que lhe mandou livros), nem cachos de cabelo, nem anéis, nem bugigangas?
— Nunca nos mandamos bugigangas! — replicou Catherine, o orgulho vencendo a vergonha.
— Nem nada de nada, então. A menos que você prometa, entregarei as cartas a seu pai.
— Prometo, Ellen! — gritou ela, agarrando-me o vestido. — Jogue-as já na lareira!
Mas, quando me viu remexer as brasas, o sacrifício pareceu-lhe demasiado difícil de suportar e suplicou-me que lhe poupasse uma ou duas cartas.
— Só uma ou duas, Ellen, para me lembrar de Linton! Desatei o lenço e comecei a jogar as cartas no fogo.
— Vou salvar uma, mulher cruel! — gritou ela, en­fiando a mão no fogo e tirando para fora alguns pedaços meio queimados, com risco para os dedos.
— Muito bem. . . e eu terei alguma coisa para mos­trar a seu pai! — respondi, levantando-me e dirigindo-me para a porta.
Ela jogou imediatamente os pedaços de carta nas cha­mas e fez-me sinal para terminar com a imolação. Remexi as cinzas e enterrei-as sobre uma pazada de carvões, en­quanto ela se retirava, muda e com uma expressão de injustiçada, para os seus aposentos. Desci para informar o pa­trão de que o mal-estar da filha estava passando, mas que julgara melhor mandá-la repousar um pouco. Cathy não desceu para o almoço, mas apareceu à hora do chá, pálida e com os olhos vermelhos, mas extraordinariamente sos­segada em aparência. Na manhã seguinte, respondi à carta do primo com um recado em que dizia: O jovem Sr. Heathcliff não deve mandar mais bilhetes para a Srta. Linton, pois não lhe serão entregues. E, desse dia em dian­te, o rapazinho nunca mais trouxe nada.

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