quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Rangers - A Ordem dos Arqueiros!

Genteee, esse livro eu estou lendo e é muito bom!!!!

Em questão de 3 dias eu já li 2 livros e meio.... vale muito a pena....

O primeiro é: Ruinas de Gorlan

Sinopse:
Durante a vida inteira, o pequeno e frágil Will sonhou em ser um forte e bravo guerreiro, como o pai, que ele nunca conheceu.
Por isso, ficou arrasado quando não conseguiu entrar para a Escola de Guerra. A partir daí, sua vida tomou um rumo inesperado:
ele se tornou o aprendiz de Halt, o misterioso arqueiro, que muitos acreditam ter habilidades que só podem ser resultado de alguma
feitiçaria. Relutante, Will aprendeu a usar as armas secretas dos arqueiros: o arco, a flecha, uma capa manchada e... um pequeno
pônei muito teimoso. Podem não ser a espada e o cavalo que ele desejava, mas foi com eles que Will e Halt partiram em uma
perigosa missão: impedir o assassinato do rei. Essa será uma viagem de descobertas e aventuras fantásticas,
na qual Will aprenderá que as armas dos arqueiros são muito mais valiosas do que ele imaginava.

Indicação!!!

As outras duas indicações, são as sequencias do mesmo livro...

A FURIA DOS REIS - LIVRO 2
, As Cronicas de Gelo e Fogo

Sinopse:
Em A fúria dos Reis, o segundo livro da aclamada série As crônicas de gelo e fogo, George R. R. Martin segue a épica aventura nos Sete Reinos, onde muitos perigos e disputas ainda estão por vir. Além dos combates que se estendem por todos os lados, o perigo agora também chega pelo céu, quando um cometa vermelho como sangue surge ameaçadoramente. Uma terra onde irmão luta contra irmão e a morte caminha na noite fria, nada é o que parece ser, e inocência é uma palavra que não existe. Quando os reis estão em guerra, a terra toda treme!


E a terceira sequencia...

TORMENTA DE ESPADAS, A - LIVRO 3- As Cronicas de Gelo e Fogo

Sinopse:
Enquanto os Sete Reinos estremecem com a chegada dos temíveis selvagens pela Muralha, gigantes e terríveis bestas, Jon Snow, o Bastardo de Winterfell, que se encontra entre eles, divide-se entre sua consciência e o papel que é forçado a desempenhar. Robb Stark, o Jovem Lobo, vence todas as suas batalha. Arya continua a caminho de Correrrio. Na corte de Joffrey, em Porto Real, Tyrion luta pela vida. No Leste, Daenerys Targaryen navega em direção às terras da sua infância, mas antes ela precisará aportar às desprezíveis cidades dos esclavagistas. Mas a menina indefesa agora é uma mulher poderosa.


Indicação!!!

Pessoal, estava olhando a lista dos livros mais vendidos, não li essa sequencia ainda, mas tenho uma amiga que assiste o seriado e adoooora!!!

A primeira indicação de hoje é ...

A GUERRA DOS TRONOS - LIVRO 1,As Crônicas de Gelo e Fogo, que deu origem a série na HBO com o nome de Game of Thrones.

Sinopse:
Em A guerra dos tronos, o primeiro livro da aclamada série As crônicas de gelo e fogo, George R. R. Martin considerado o Tolkien americano cria uma verdadeira obra de arte, trazendo o melhor que o gênero pode oferecer. Uma história de lordes e damas, soldados e mercenários, assassinos e bastardos, que se juntam em um tempo de presságios malignos. Cada um esforçando-se para ganhar este conflito mortal: a guerra dostronos. Mistério, intriga, romance e aventura encherão as páginas deste livro.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O Morro dos Ventos Uivantes, Cap l

1801

Acabei de chegar de uma visita ao meu senhorio — o único vizinho que me poderá incomodar. Que bela re­gião, esta! Em toda a Inglaterra, acho que não poderia ter encontrado um lugar tão completamente afastado da sociedade humana. Um perfeito paraíso para os misantropos; eu e o Sr. Heathcliff formamos um par bem ade­quado para dividi-lo entre ambos. Grande sujeito! Não deve ter suspeitado de como simpatizei com ele, assim que vi os seus olhos negros recolherem-se, desconfiados, sob as sobrancelhas, à medida que eu me aproximava, e os seus dedos afundarem ainda mais, com ciumenta determi­nação, no seu colete, quando anunciei quem era.
— Sr. Heathcliff? — disse eu. A resposta foi um aceno.
— Sou Lockwood, o seu novo inquilino. Tenho a honra de vir falar com o senhor logo após a minha che­gada, para dizer-lhe que espero não o ter importunado com a minha insistência em solicitar a ocupação da Granja Thrushcross; ouvi dizer, ontem, que o senhor tinha pen­sado . . .
— A Granja Thrushcross pertence-me — interrom­peu ele secamente. — Não iria permitir que ninguém me importunasse e, se pudesse me opor a isso. . . Entre!
Esse "entre" foi dito entre dentes e no tom de quem diz: "Vá para o diabo!" Até mesmo a cancela em que ele se apoiava não fez qualquer movimento para acom­panhar as suas palavras, e acho que foi precisamente isso que me levou a aceitar o convite: sentia-me interessado por aquele homem, cuja misantropia parecia ainda maior do que a minha.
Quando ele viu o meu cavalo empurrar a porteira, estendeu a mão para abri-la e precedeu-me, soturnamente, ordenando, ao entrarmos no pátio: — Joseph, leve o cavalo do Sr. Lockwood; e traga-nos vinho.
"Eis aí toda a criadagem", pensei, ao ouvir aquela dupla ordem. "Não espanta que a grama cresça entre as pedras do caminho e o gado seja o único jardineiro."
Joseph era um homem de idade, ou melhor, um autên­tico velho; muito velho, talvez, embora saudável e enérgico. — Deus nos acuda! — murmurou com evidente desprazer, enquanto me desembaraçava do cavalo, e ao mesmo tempo me olhava com ar tão sombrio, que eu caridosamente conjeturei que talvez ele precisasse do socorro divino para digerir o seu almoço e sua piedosa exclamação nada tivesse que ver com a minha inesperada visita.
A propriedade do Sr. Heathcliff chama-se, adequada­mente, Wuthering Heights (O Morro dos Ventos Uivantes, N. do E.), sendo wuthering um significa­tivo adjetivo provinciano para designar o tumulto atmos­férico ao qual ela está sujeita em tempo tempestuoso. De fato, ali sempre sopra um ar puro e estimulante; pode-se imaginar a fúria do vento do norte soprando sobre a pro­priedade, pela excessiva inclinação de alguns enfezados abetos plantados na extremidade da casa e por uma fila de esquálidos espinheiros, todos estendendo os seus mem­bros na mesma direção, como se pedindo esmolas ao sol. Felizmente, o arquiteto cuidou de fazê-la forte: as janelas, estreitas, estão bem embutidas na parede, e os cantos são defendidos por grandes pedras salientes.
Antes de atravessar a soleira, parei para admirar uma quantidade de grotescos entalhes espalhados sobre a fa­chada e, principalmente, à volta da porta, por cima da qual, entre uma orgia de grifos semi-esboroados e menininhos despudorados, detectei a data 1500 e o nome Hareton Earnshaw. Tive vontade de fazer alguns comentários e pedir ao proprietário que me fornecesse um breve histórico do lugar, mas a sua atitude parecia exigir que eu entrasse sem mais delongas ou então partisse, e não quis aumentar-lhe a irritação antes de ter entrado.
Um passo e estávamos na sala, sem qualquer vestíbulo ou corredor introdutório; aqui, dão à sala o nome de "casa", e geralmente serve de cozinha e de sala de estar. Mas creio que no Morro dos Ventos Uivantes a cozinha fora forçada a retirar-se para outros quartéis; pelo menos, distingui um barulho de tenazes e utensílios culinários vindo de dentro da casa, e não vi sinais de assados ou cozidos na enor­me lareira, nem brilho de caçarolas de cobre ou passadores de lata nas paredes. Numa extremidade da sala, porém, a luz e o calor do fogo se refletiam esplendidamente em filas de imensos pratos de estanho, entremeados de canecas e jarras de prata, que se erguiam, sobre um vasto aparador de carvalho, como uma torre, até o teto. Este nunca fora tapado: toda a sua anatomia estava à vista, exceto onde uma prateleira, cheia de bolos de aveia, pedaços de pernas de bois e de carneiros, pernis e presuntos, a escondia. Sobre a lareira viam-se várias armas de fogo antigas, de aspecto terrível, e um par de enormes pistolas, além de três caixas de folhas para chá pintadas com cores vivas e dispostas, à guisa de ornamento, ao longo da beirada da lareira. o chão era de pedra branca e lisa; as cadeiras, primitivas e de espaldar alto, pintadas de verde; uma ou duas, mais pesadas e negras, entreviam-se na penumbra. Sob um arco, debaixo do aparador, repousava uma gran­de cadela pointer, vermelho-escura e rodeada por uma porção de barulhentos cachorrinhos. Outros cães perambulavam de um lado para outro.
O aposento e a sua decoração não teriam nada de extraordinário se pertencessem a um pacato fazendeiro local, de aspecto teimoso e membros rijos, realçados por calções até os joelhos e polainas. Um tal fazendeiro, sen­tado na sua poltrona, caneca de cerveja espumejando sobre uma mesa redonda à sua frente, é coisa que se vê em qual­quer passeio de cinco ou seis milhas por estas colinas, desde que se faça a visita a uma hora certa, logo depois do almoço. Mas o Sr. Heathcliff contrasta singularmente com a casa em que mora e o seu estilo de vida. Na apa­rência, é um autêntico cigano de pele escura; no trajar e nas maneiras, um cavalheiro — isto é, um cavalheiro como o são tantos fidalgos do interior: bastante desalinhado, talvez, mas não desagradavelmente, graças à sua silhueta esbelta e ereta, e também bastante arisco. Possivelmente algumas pessoas veriam orgulho nele; eu tenho com ele uma afinidade que me diz não ser nada disso; sei, por instinto, que a sua reserva vai desde uma aversão às de­monstrações ostensivas de sentimentos até as manifesta­ções mútuas de gentileza. Deve amar e odiar igualmente, em silêncio, e achar uma espécie de impertinência no fato de ser amado e odiado. Não, estou me precipitando, atri­buindo-lhe demasiadamente a minha própria maneira de ser. O Sr. Heathcliff talvez tenha razões inteiramente dife­rentes das minhas para não estender a mão ao fazer um novo conhecimento. Suspeito que o meu temperamento seja quase peculiar; a minha querida mãe costumava dizer que eu nunca teria um verdadeiro lar, e ainda no verão passado provei ser completamente indigno de o possuir.
Ao gozar um mês de bom tempo à beira-mar, conheci uma criatura fascinante: uma verdadeira deusa para os meus olhos, enquanto não reparou em mim. Nunca lhe con­fessei verbalmente o meu amor; mas, se é certo que os olhares falam, o mais completo idiota teria percebido que eu estava apaixonado. Por fim, ela o entendeu e lançou-me também um olhar — o mais doce dos olhares. E que foi que eu fiz? Confesso-o, envergonhado — recolhi-me a mim mesmo, qual um caramujo; a cada olhar dela, mais eu me encolhia, maior frieza aparentava; até que, final­mente, a pobre começou a duvidar dos seus próprios sen­tidos e, cheia de confusão pelo suposto engano, convenceu a mãe de que deviam partir. Graças a essa estranha mu­dança de atitude, ganhei a reputação de ser uma pessoa desumana; quão pouco a mereço, só eu o sei.
Tomei assento a uma das extremidades da lareira, em frente ao meu senhorio, e tentei preencher um intervalo de silêncio acariciando a cadela, que deixara a sua ninhada e se esgueirava por trás das minhas pernas, o focinho arreganhado e as brancas presas como que se preparando para morder. A minha carícia provocou um rosnar longo e gutural.
— É melhor deixar a cadela em paz — rosnou tam­bém o Sr. Heathcliff, evitando maiores demonstrações com um pontapé. — Ela não está acostumada a mimos... não a tratamos como um animal de estimação. — E, diri­gindo-se para uma porta lateral, gritou, uma vez mais: — Joseph!
Joseph respondeu qualquer coisa dos fundos da adega, mas não deu sinal de subir, de modo que o amo mergu­lhou ao encontro dele, deixando-me vis-à-vis com a terrí­vel cadela e um par de felpudos cães pastores, que com ela mantinham uma zelosa guarda sobre os meus movi­mentos. Não desejando entrar em contato com as suas presas, conservei-me quieto; mas, imaginando que eles por certo não entenderiam insultos implícitos, tive a triste idéia de me pôr a piscar e a fazer caretas para o trio, e não sei que contorção da minha fisionomia irritou a madame, que de repente se atirou sobre mim, furiosa. Repeli-a e apressei-me a interpor a mesa entre nós. Esse procedimento excitou toda a matilha: meia dúzia de demônios de quatro patas, de vários tamanhos e idades, saíram de diversos esconderijos e pularam para cima de mim. Senti os calca­nhares e as abas do casaco serem atacados; e, afastando os combatentes maiores da melhor maneira possível, com o atiçador, vi-me obrigado a pedir, em voz alta, que alguém da casa me ajudasse a restabelecer a paz.
O Sr. Heathcliff e o seu criado subiram a escada da adega com irritante calma; não creio que se movessem um segundo mais depressa do que de hábito, embora a sala fosse um verdadeiro pandemônio de gritos e latidos. Felizmente, alguém da cozinha apressou-se um pouco mais: uma robusta senhora, com o vestido arregaçado, braços nus e faces avermelhadas pelo fogo, correu para onde estávamos, brandindo uma frigideira; e tal uso fez dessa arma e da sua língua, que a tempestade amainou magicamente, e só ela ficou ali, ofegando como o mar após um vendaval, quando o seu patrão entrou em cena.
— Que diabo está acontecendo aqui? — perguntou ele, olhando-me de maneira que eu mal podia suportar, após tão inóspito tratamento.
— Que diabo, realmente! — resmunguei. — Uma vara de porcos danados não poderia ter piores instintos do que esses seus cães. É quase a mesma coisa que deixar um estranho com um bando de tigres!
— Eles não se metem com pessoas que não mexem em nada — observou ele, colocando a garrafa diante de mim e devolvendo a mesa ao seu lugar. — Os cães fazem bem em ser vigilantes. Aceita um copo de vinho?
— Não, muito obrigado.
— Não foi mordido, foi?
— Se tivesse sido, teria deixado o meu sinete no animal.
O rosto de Heathcliff abriu-se numa espécie de sor­riso.
— Ora, ora — disse —, o senhor está nervoso, Sr. Lockwood. Vamos, tome um copo de vinho. As visitas são de tal modo raras nesta casa, que eu e os meus cães, devo confessá-lo, mal sabemos como recebê-las. À sua saúde!
Curvei-me e brindei à saúde dele, começando a per­ceber que seria idiota ficar ofendido pelo mau procedi­mento de meia dúzia de cães; além disso, não queria pro­porcionar mais motivo para diversão, pois era isso o que estava acontecendo. Quanto a ele, provavelmente movido pela prudente lembrança de que era loucura ofender um bom inquilino, abandonou um pouco o lacônico estilo de economizar nos pronomes e nos verbos auxiliares e iniciou o que supunha ser um assunto de interesse para mim: uma dissertação sobre as vantagens e as desvantagens do meu novo lugar de retiro. Achei-o muito inteligente nos tópicos que tocamos; e, antes de me despedir, senti-me encorajado a dizer que voltaria amanhã. Evidentemente, ele não queria nova intrusão. Mesmo assim, irei. É espantoso como pareço sociável, se comparado com ele.

O Morro dos Ventos Uivantes, Cap ll

A tarde de ontem foi fria e enevoada. Estava com vontade de passá-la à beira da lareira, no meu escritório, em vez de atravessar urzes e lama até o Morro dos Ven­tos Uivantes. Entretanto, logo depois do almoço (N.B. — almoço entre o meio-dia e uma hora, pois a gover­nanta, uma senhora matronal, que recebi junto com a casa, não pode ou não quer compreender o meu pedido de ser servido às cinco), ao subir a escada com essa pre­guiçosa intenção e entrar no escritório, dei com uma em­pregada de joelhos, rodeada de vassouras e baldes de carvão e levantando um pó infernal, ao tentar extinguir as chamas da lareira com montes de cinzas. Aquele espe­táculo fez-me logo recuar; peguei no chapéu e, após ca­minhar umas quatro milhas, cheguei ao portão do jardim de Heathcliff bem a tempo de escapar aos primeiros flocos de uma nevasca.
No alto daquele desolado morro, a terra estava co­berta de uma geada dura e enegrecida e o vento fazia-me tiritar. Não conseguindo remover a corrente, pulei por cima da cancela e, correndo pelo caminho empedrado e ladeado por groselheiras, bati em vão à porta, até os nós dos dedos me doerem e os cães começarem a uivar.
"Gente desgraçada!", invectivei mentalmente. "Vocês merecem viver eternamente isolados, pela falta de hospita­lidade que demonstram. Eu, pelo menos, não trancaria as minhas portas durante o dia. Não importa — hei de entrar!" Assim decidido, agarrei a tranca e sacudi-a com toda a força. Não tardou para que o rosto azedo de Joseph surgisse a uma das janelas redondas do celeiro.
— Que é que o senhor quer? — gritou ele. — O patrão está lá embaixo, no curral. Pode dar a volta pela ponta do lago, se quiser falar com ele.
— Não há ninguém em casa para me abrir a porta? — gritei também.
— Não tem ninguém, só a patroa; mas ela não vai abrir, nem que o senhor continue martelando a porta até de noite.
— Por quê? Você não lhe pode dizer quem sou, Joseph?
— Eu, não! Não quero me meter nisso! — resmun­gou ele, tirando a cabeça da janela.
A neve começou a cair com força. Agarrei a tranca para fazer outra tentativa, quando um jovem sem casaco, levando ao ombro uma forquilha, apareceu no pátio. Dis­se-me para segui-lo, e, após atravessarmos uma lavandaria e uma área empedrada, contendo um depósito de carvão, uma bomba e um pombal, entramos no enorme e quente aposento em que da primeira vez fora recebido. Um fogo imenso, alimentado com carvão, turfa e lenha, tornava-o ainda mais acolhedor; e perto da mesa, posta para um abundante chá, tive o prazer de ver a "patroa", pessoa de cuja existência até ali nem sequer suspeitara. Inclinei a cabeça, em cumprimento, esperei que ela me convidasse a tomar assento. Mas ela olhou para mim, reclinada na sua cadeira, e continuou imóvel e muda.
— Tempo horrível! — comentei. — Sinto muito, Sra. Heathcliff, mas a culpa é dos seus criados; quase tive de arrombar a porta para que eles me ouvissem.
Ela permaneceu calada. Olhei-a bem nos olhos — ela também me fitou; pelo menos manteve os olhos em mim, de uma maneira fria, indiferente, por demais embaraçosa e desagradável.
— Sente-se — disse o jovem, com secura. — Ele não demora.
Obedeci. Pigarreei e chamei a terrível Juno, que se dignou, naquele segundo encontro, agitar a extremidade da cauda, em sinal de reconhecimento.
— Lindo animal! — recomecei. — Pretende dar os filhotes?
— Não são meus — replicou a simpática anfitrioa, de maneira ainda mais cortante do que Heathcliff teria respondido.
— Ah, os seus favoritos são, então, aqueles? — pros­segui, apontando para uma almofada cheia de algo pa­recido com gatos.
— Estranho favoritismo, esse! — observou ela, com desdém.
Infelizmente, aquilo era um monte de coelhos mortos. Pigarreei outra vez e aproximei-me da lareira, repetindo o meu comentário a respeito do mau tempo.
— O senhor não deveria ter saído de casa — disse ela, levantando-se e tirando duas das latas pintadas que havia em cima da lareira.
Sentada como estava antes, contra a luz, não se podia vê-la bem. Agora, porém, o fogo iluminava-a toda. Era esbelta e aparentemente mal saída da adolescência. Tinha uma silhueta impecável e o mais belo rostinho que eu já tivera o prazer de contemplar: feições pequenas e har­moniosas; cachos louros ou, melhor, dourados, caindo so­bre o seu pescoço delicado; e olhos que teriam sido irre­sistíveis, se a sua expressão fosse agradável; felizmente para o meu suscetível coração, o único sentimento que eles revelavam hesitava entre o desprezo e algo assim como um desespero estranho e fora do natural. As latas estavam difíceis de alcançar; fiz um gesto para ajudá-la. Ela se voltou para mim como um avarento se voltaria se alguém tentasse ajudá-lo a contar o seu ouro.
— Não quero a sua ajuda — falou. — Posso apa­nhá-las sozinha.
— Mil perdões! — apressei-me a responder.
— O senhor foi convidado para o chá? — perguntou, atando um avental por cima do seu elegante vestido preto e segurando uma colher de chá sobre a chaleira.
— Gostaria muito de tomar uma xícara — respondi.
— Foi convidado? — repetiu ela.
— Não — disse eu, quase a sorrir. — Mas a senhora e a pessoa indicada para me convidar.
Ela pôs o chá de volta na lata e voltou para a sua cadeira, a testa enrugada e o lábio inferior espichado, como uma criança prestes a chorar.
Entretanto, o jovem jogara sobre si uma jaqueta de­cididamente gasta, e, erguendo-se diante do fogo, olhou para mim com o canto do olho, como se entre nós hou­vesse uma rivalidade mortal. Comecei a pensar que ele talvez não fosse um empregado; a sua roupa e a sua ma­neira de falar eram ambas grosseiras, sem qualquer traço da superioridade comum ao Sr. e à Sra. Heathcliff; seu cabelo, grosso e castanho, era maltratado, as suíças espa­lhavam-se desordenadamente pelas suas bochechas, e tinha as mãos encardidas como as de um serviçal. Mas os seus modos eram livres, quase arrogantes, e ele não mostrava servilismo perante a dona da casa. Na ausência de provas claras, achei melhor abster-me de reparar na sua curiosa conduta; e, cinco minutos depois, a chegada de Heathcliff veio, de certo modo, aliviar-me da desconfortável posição em que me encontrava.
— Como vê, aqui estou eu, conforme prometi! — exclamei, adotando um ar alegre. — E acho que vou ter que ficar aqui mais meia hora, se o senhor me puder abri­gar durante esse tempo.
— Meia hora? — repetiu ele, sacudindo os flocos de neve dos seus trajes. — Não posso compreender por que razão o senhor foi escolher uma tempestade de neve para andar por aí. Sabe que corre o perigo de se perder nos pântanos? As pessoas que os conhecem bem muitas vezes se perdem, em tardes como essa. E digo-lhe que o tempo não vai mudar.
— Talvez algum dos seus rapazes me possa guiar e pernoitar na granja. Pode ceder-me alguém?
— Não, não posso.
— Oh, bem, então tenho de confiar no meu sentido de orientação.
— Hum!
— Vai fazer o chá ou não vai? — perguntou o da jaqueta andrajosa, desviando o olhar feroz de mim para a jovem.
Ele vai tomar chá? — perguntou ela, por sua vez, dirigindo-se a Heathcliff.
— Faça logo o chá! — foi a resposta, dita num tom tão furioso que estremeci, pois revelava uma péssima na­tureza. Já não me sentia inclinado a considerar Heathcliff um grande sujeito. Quando o chá ficou pronto, ele me convidou com: — Vamos, chegue a sua cadeira. — E todos nós, inclusive o jovem rústico, nos aproximamos da mesa, à volta da qual se instalou um desconfortável silên­cio.
Pensei que, uma vez que o causara, fosse meu dever esforçar-me por dissipá-lo. Não era possível que todos os dias se sentassem para tomar chá num ambiente tão taciturno; e tampouco era possível que, por pior gênio que tivessem, aquelas caras fechadas fossem a sua expressão cotidiana.
— É estranho — comecei, entre uma xícara e outra —, é estranho como o hábito pode moldar os nossos gos­tos e as nossas idéias. Muita gente não imaginaria que poderia haver felicidade numa vida de completo exílio do mundo, como é a sua, Sr. Heathcliff; e, contudo, ouso dizer que, rodeado da sua família e com a sua encantadora se­nhora presidindo em seu lar e em seu coração. . .
— Minha encantadora senhora! — interrompeu ele, com uma expressão quase diabólica. — Onde está ela. . . a minha encantadora senhora?
— Refiro-me à Sra. Heathcliff, sua esposa.
— Oh, sim. . . Pelo visto, o senhor insinua que o seu espírito assumiu a forma de anjo da guarda, velando pela felicidade do Morro dos Ventos Uivantes mesmo depois da morte. É isso?
Percebendo que tinha cometido uma gafe, tentei cor­rigi-la. Devia ter visto que havia demasiada disparidade entre as idades de ambos para que se pudesse pensar neles como marido e mulher. Ele devia andar pelos quarenta anos, uma idade de vigor mental, em que os homens rara­mente acalentam a ilusão de que as jovens se casam com eles por amor — esse sonho é reservado ao consolo dos anos de declínio. Quanto a ela, talvez não tivesse sequer dezessete anos.
Ocorreu-me, então: "Essa rude criatura a meu lado, tomando chá numa caneca e comendo pão sem lavar as mãos, deve ser o marido dela: Heathcliff Junior, sem dú­vida. Eis a conseqüência de se deixar enterrar em vida: uma moça tão bonita desperdiçada com esse rapaz horrível, só por não conhecer ninguém melhor! Uma pena — tenho de ter cuidado para não a fazer lastimar a sua escolha". Essa última reflexão podia parecer convencimento, mas não era. O meu vizinho de mesa era quase repulsivo; quan­to a mim, sabia, por experiência, que era um tanto atraente.
— A Sra. Heathcliff é minha nora — informou Heathcliff, corroborando a minha suposição. Ao falar, lançou-lhe um olhar peculiar: um olhar de ódio; a menos que tenha um jogo especial de músculos faciais, que, ao contrário das outras pessoas, não interprete o que lhe vai na alma.
— Ah, sim, agora entendo: o senhor é o feliz pos­suidor da bela fada — comentei, virando-me para o meu vizinho.
Foi pior a emenda do que o soneto: o jovem ficou escarlate e fechou o punho, dando-me a impressão de que me ia esmurrar. Mas logo pareceu dominar-se, e, contro­lando-se brutalmente, resmungou qualquer coisa para mim, que procurei ignorar.
— O senhor não tem sorte nas suas conjeturas — observou o meu anfitrião. — Nenhum de nós dois tem o privilégio de ser possuidor da sua bela fada; o marido dela morreu. Disse-lhe que ela era minha nora, de modo que é fácil deduzir que casou com meu filho.
— Mas esse jovem não é. . .
— Não é meu filho, claro!
Heathcliff sorriu de novo, como se fosse uma piada de péssimo gosto atribuir-lhe a paternidade daquele urso.
— Meu nome é Hareton Earnshaw — grunhiu o outro. — Aconselho você a respeitá-lo!
— Não me parece que o tenha desrespeitado — re­pliquei, rindo interiormente da dignidade com que ele se anunciara.
Fixou em mim um olhar que eu procurei não devol­ver, por medo de não resistir à tentação de esbofeteá-lo ou então de rir em voz alta. Começava a sentir-me incon­fundivelmente mal e deslocado naquele agradável círculo familiar. O horrível ambiente vencia e mais que neutrali­zava o conforto físico que me rodeava, e resolvi tomar mais cuidado antes de aventurar-me uma terceira vez sob aquele teto.
Terminada a ocupação de comer e como ninguém pronunciasse uma só palavra de palestra social, aproxi­mei-me de uma janela para ver como estava o tempo. O que vi foi desanimador: a escuridão da noite caía prema­turamente e o céu e as colinas se confundiam num remoinho de vento e de neve.
— Não acho que vá poder chegar a casa sem um guia — exclamei. — As estradas já devem estar cobertas de neve; e, mesmo que não estejam, mal vou conseguir ver onde ponho os pés.
— Hareton, toque aquela dúzia de carneiros para o andar de cima do celeiro. Vão ficar enregelados se os dei­xarem no curral toda a noite. E ponha uma tábua à frente deles — disse Heathcliff.
— Que hei de fazer? — insisti, com crescente irri­tação.
Não tive resposta. Olhando em volta, vi apenas Jo­seph, trazendo um balde com mingau para os cães, e a Sra. Heathcliff divertindo-se a acender no fogo um feixe de fósforos que tinham caído do alto da lareira quando ela pusera a lata de chá no seu lugar. Após ter depositado o balde no chão, o velho criado olhou em redor com ar críti­co e, com voz rachada, invectivou:
— Não entendo como é que se pode ficar aí sem fazer nada! Mas não adianta falar, quem é mau já nasce torto e acaba no inferno, igualzinho à mãe!
Por um momento pensei que aquele sermão fosse di­rigido a mim e, suficientemente enraivecido, avancei para o homem, com a intenção de chutá-lo porta afora. Mas a resposta da Sra. Heathcliff deteve-me a tempo.
— Seu velho hipócrita! — replicou ela. — Será que você não tem medo de que o Diabo o carregue, de tanto falar no inferno? Aconselho-o a não me provocar, ou pe­direi ao Maligno que o leve. Espere aí, Joseph — conti­nuou, tirando um livro comprido e escuro da prateleira. — Vou lhe mostrar como progredi na magia negra. Em breve poderei lidar com vocês todos. A vaca vermelha não morreu por acaso e o seu reumatismo não pode ser con­siderado uma bênção dos céus!
— Malvada, malvada! — arquejou o velho. — Que o Senhor nos salve do mal!
— Não, você é um réprobo! Cuidado, ou eu ainda lhes farei muito mal! Tenho vocês todos modelados em cera e barro, e o primeiro que ultrapassar os limites que eu fixar há de. . . não vou dizer, mas vocês vão ver! Agora, fora daqui!
A bruxinha pôs uma expressão diabólica nos seus belos olhos, e Joseph, tremendo de autêntico pavor, saiu correndo, rezando e murmurando "malvada". Achei que a conduta dela devia ser motivada por um estranho senso de humor; e, aproveitando que estávamos sozinhos, tentei interessá-la no meu caso.
— Sra. Heathcliff — disse, sem esconder a minha preocupação —, desculpe-me incomodá-la. Com esse rosto, tenho a certeza de que a senhora possui um bom coração. Diga-me como me poderei orientar para voltar para casa. Não tenho mais idéia de que caminho tomar do que se tivesse de ir agora para Londres!
— Tome o mesmo caminho pelo qual o senhor veio — respondeu ela, aninhando-se numa poltrona, com uma vela e o livro preto aberto à sua frente. — É o melhor conselho que lhe posso dar.
— Quer dizer que, se me encontrarem morto no pân­tano ou caído num poço cheio de neve, a sua consciência não a acusará?
— Por quê? Não posso acompanhá-lo. Não me dei­xariam chegar à ponta do muro do jardim.
A senhora! Eu jamais lhe pediria para pôr o pé fora da casa numa noite destas só por minha causa! — exclamei. — Quero que me diga que caminho tomar, não que o mostre; ou, então, que convença o Sr. Heathcliff a me dar um guia.
— Mas quem? Há ele, Earnshaw, Zillah, Joseph e eu. Qual de nós lhe serviria?
— Não há empregados na fazenda?
— Não; somos só nós.
— Então serei obrigado a pernoitar aqui.
— Isso o senhor pode acertar com o dono da casa. Eu nada tenho com isso.
— Espero que isto o ensine a não se aventurar mais por estes morros — falou a severa voz de Heathcliff, da porta da cozinha. — Quanto a pernoitar aqui, não tenho acomodações para hóspedes; se quiser ficar, terá de par­tilhar uma cama com Hareton ou com Joseph.
— Posso dormir numa poltrona, aqui mesmo na sala _repliquei.
— Não, não! Um estranho é um estranho, seja ele rico ou pobre! Não quero ninguém aqui enquanto estou dormindo! — disse o desgraçado.
Com esse insulto, a minha paciência estava no fim. Murmurei uma expressão de desagrado e precipitei-me pa­ra o pátio, quase dando um encontrão em Earnshaw, na minha pressa. Estava tão escuro, que não conseguia encon­trar a saída. Enquanto a procurava, ouvi mais uma amostra da cordialidade que reinava entre eles. A princípio, o jo­vem parecia estar do meu lado.
— Vou com ele até o parque — anunciou.
— Você vai com ele mas é para o inferno! — excla­mou o patrão ou fosse lá o que fosse. — E quem vai tratar dos cavalos, hein?
— A vida de um homem é mais importante do que deixar uma noite de cuidar dos cavalos. Alguém tem de ir com ele — murmurou a Sra. Heathcliff, para minha sur­presa.
— Não se você mandar! — retrucou Hareton. — Se você simpatizou com ele é melhor ficar calada.
— Pois então espero que o fantasma dele o persiga; e espero que o Sr. Heathcliff nunca mais consiga outro inquilino até que a granja fique em ruínas! — contra-atacou ela, furiosa.
— Escute só, ela está amaldiçoando eles! — mur­murou Joseph, em cuja direção eu me encaminhara.
Estava sentado a pequena distância, ordenhando as vacas à luz de uma lanterna, que apanhei sem cerimônia, dizendo que a devolveria no dia seguinte e encaminhando-me para a porteira mais próxima.
— Patrão, patrão, ele está roubando a lanterna! — gritou o velho, correndo atrás de mim. — Ei, Gnasher! Ei, cachorro! Ei, Lobo, peguem ele! Peguem ele!
Quando abri a porteira, dois monstros peludos pula­ram-me ao pescoço, jogando-me ao chão e apagando a lanterna, enquanto a risada conjunta de Heathcliff e Hare­ton ultrapassava os limites da minha raiva e da minha humilhação. Felizmente, os bichos pareciam mais inclina­dos a esticar as patas, a bocejar e abanar as caudas do que a devorar-me vivo; mas não me deixavam levantar-me, e tive de jazer no chão até que os seus donos se dignaram chamá-los. Sem chapéu e tremendo de fúria, ordenei que me deixassem sair — talvez se arrependessem, se eu ficasse mais um minuto naquela casa — com várias e incoerentes ameaças de vingança, que, na sua virulência, faziam lem­brar o Rei Lear.
A veemência da minha agitação fez-me sangrar copiosamente pelo nariz, aumentando as risadas de Heath­cliff e a minha indignação. Não sei como terminaria aquilo, não fosse a entrada em cena de uma pessoa mais sensata do que eu e mais benévola do que o meu anfitrião: Zillah, a gorda governanta, que acorreu a saber as causas do tu­multo. Pensou que me tivessem atacado e, não ousando voltar-se contra o patrão, assestou a sua artilharia vocal contra o jovem.
— Muito bem, Sr. Earnshaw! — exclamou. — Só quero ver a que ponto o senhor vai chegar! Com certeza vamos matar gente aqui em casa! Estou vendo que esta casa não é para mim. . . vejam só o pobre rapaz, está sufocando-se! Espere aí, o senhor não pode ir embora assim. Entre, que eu lhe curo isso. Fique quietinho!
Assim falando, ela derramou uma vasilha de água gelada pelo meu pescoço abaixo e puxou-me para a co­zinha. O Sr. Heathcliff seguiu-nos, novamente taciturno após aquela acidental explosão de riso.
Sentia-me tonto e fraco, o que me obrigou a aceitar alojamento para a noite. Heathcliff disse a Zillah que me desse um cálice de brandy e depois passou para a sala, enquanto a governanta lamentava o que me acontecera e, após me haver servido a bebida, mostrava-me o caminho do quarto.

O Morro dos Ventos Uivantes, Cap lll

Enquanto me precedia escada acima, Zillah recomen­dou-me que escondesse a vela e não fizesse barulho, pois o patrão tinha uma estranha cisma com o quarto em que ela me ia acomodar e nunca queria que ninguém pernoi­tasse nele. Perguntei-lhe a razão disso. Não sabia, respon­deu; estava naquela casa havia apenas um ou dois anos e tanta coisa esquisita tinha acontecido, que ela não se dava ao trabalho de ser curiosa.
Sem forças nem para ser curioso, tranquei a porta e procurei a cama. Toda a mobília do quarto consistia numa poltrona, num guarda-roupa e num grande armário de carvalho, com aberturas quadradas junto ao alto, seme­lhantes a janelas de carruagem. Aproximei-me, olhei para dentro e vi que era uma espécie de cama antiga, conve­nientemente concebida para proporcionar a cada membro da família dormitório exclusivo. Efetivamente, formava um pequeno compartimento, e o peitoril da janela, que ele abarcava, servia de mesa-de-cabeceira. Pus para baixo os batentes laterais, entrei com a minha vela, fechei nova­mente os batentes e senti-me a salvo da vigilância de Heath­cliff e de qualquer outro.
O peitoril, onde coloquei a vela, tinha, empilhados a um canto, alguns livros embolorados, e a sua pintura estava coberta de escritos, que, examinados de perto, mos­travam ser apenas um nome, repetido em todos os tipos de letras, grandes e pequenas: Catherine Earnshaw, aqui e ali alterado para Catherine Heathcliff, e depois para Catherine Linton.
Entorpecido, apoiei a cabeça no peitoril e continuei a soletrar Catherine Earnshaw. . . Heathcliff. . . Linton, até que os meus olhos se fecharam; mas eles não tinham des­cansado nem cinco minutos, quando um brilho de letras brancas surgiu do escuro, como espectros, enchendo o ar de Catherines. Abrindo os olhos para dissipar aquele no­me, vi que o pavio da vela se encostava num dos volumes embolorados e perfumava o aposento com um cheiro de couro queimado. Soprei o pavio, e, sob a dupla influência do frio e da náusea, sentei-me e abri o volume queimado contra o joelho. Era uma Bíblia, em tipo pequeno e chei­rando horrivelmente a bolor; a folha inicial, em branco, tinha os dizeres Catherine Earnshaw e uma data, aproxi­madamente de há vinte e cinco anos atrás. Fechei o livro e peguei noutro, depois noutro, até ter examinado todos. A biblioteca de Catherine era escolhida e o seu estado mostrava que fora bem manuseada, embora nem sempre para fins de leitura apenas; raro era o capítulo que esca­para a um comentário a tinta — pelo menos, assim pare­cia —, cobrindo todo o espaço em branco que o tipógrafo deixara. Em alguns casos eram frases soltas; em outros assumiam a forma de um diário, escrevinhado numa orto­grafia infantil. No alto de uma página extra (provavelmen­te considerada um tesouro, quando descoberta), dei de cara com uma excelente caricatura do meu amigo Joseph
— pouco mais do que esboçada, mas com talento. Aquilo despertou imediatamente, em mim, um interesse por aquela desconhecida Catherine, e pus-me a tentar decifrar os seus desbotados hieróglifos.
Domingo horrível! — começava o parágrafo abaixo.
Quem dera que meu pai ressuscitasse! Hindley é um detestável substituto. . . a sua conduta para com Heathcliff é atroz... H. e eu vamos rebelar-nos. . . já começamos esta tarde.
A chuva caiu durante todo o dia; não pudemos ir à igreja, de modo que Joseph teve de reunir a sua congre­gação no sótão; e, enquanto Hindley e a mulher ficavam confortavelmente diante do fogo — fazendo tudo menos ler a Bíblia, isso eu garanto —, eu, Heathcliff e o pobre moço do arado fomos obrigados a pegar nos nossos livros de orações e subir; fomos dispostos numa fila, sobre um saco de trigo, resmungando e tiritando e esperando que Jo­seph também tintasse, para não demorar muito com o ser­mão. Vã esperança! O serviço durou exatamente três horas.
Apesar disso, o meu irmão ainda teve a coragem de excla­mar, ao ver-nos descer: "O quê, já acabaram?" Aos do­mingos à noite costumavam deixar-nos brincar, desde que não fizéssemos muito barulho; agora qualquer barulhinho é suficiente para nos colocarem de castigo!
"Vocês se esquecem de que eu estou aqui", disse o tirano. "O primeiro que me irritar vai se arrepender! Faço questão de compostura e silêncio. Ah, foi você? Frances, querida, puxe o cabelo dele: ouvi-o estalar os dedos." Frances puxou-lhe o cabelo com força e depois sentou-se no colo do marido, e os dois ficaram se beijando e falando bobagens — bobagens mesmo, de que nós teríamos ver­gonha. Instalamo-nos o melhor que pudemos debaixo do tampo do aparador. Eu mal acabara de atar os nossos aven­tais e de pendurá-los como se fossem uma cortina, quando Joseph entrou, vindo da cavalariça. Derrubou o meu tra­balho, deu-me um tapa nos ouvidos e grasnou:
"O patrão mal foi sepultado e o domingo ainda não acabou e o Evangelho ainda está nos seus ouvidos e vocês estão de papo pro ar! Que vergonha! Sentados, seus cape­tas! Tanto livro bom para ler! Sentem e pensem nas suas almas!"
Assim dizendo, obrigou-nos a corrigir a nossa posi­ção, de modo a recebermos, do fogo distante, um mínimo de luz que nos iluminasse os livros que ele pôs diante de nós. Não pude suportar aquilo. Peguei no meu volume e joguei-o no canil, dizendo que detestava livros bons. Heath­cliff deu um chute e mandou o dele para o mesmo lugar. Foi um escândalo!
"Patrão Hindley!", gritou o nosso capelão. "Patrão, venha cá! Cathy arrancou a capa do Livro da salvação e Heathcliff estraçalhou a primeira parte do Caminho para a destruição! O patrão não pode deixar eles fazer o que querem. O patrão velho não tinha conversa, dava logo uma surra neles — mas ele já está no Reino do Senhor!"
Hindley deixou o seu paraíso junto à lareira e, agar­rando um de nós pelo colarinho e o outro pelo braço, ati­rou-nos a ambos na despensa, onde, segundo Joseph, "o Capeta" nos iria buscar dali a pouco. Assim confortados, cada qual procurou um canto onde esperar por essa visita. Apanhei este livro e um tinteiro numa prateleira, escancarei a janela para deixar entrar a luz e há vinte minutos que estou escrevendo; mas o meu companheiro está impaciente e sugere que apanhemos a capa da leiteira e demos um pulo até a charneca, debaixo dela. Agradável sugestão — se o velho entrar, vai pensar que a sua profecia se realizou; — e nós certamente não teremos mais frio debaixo da chuva do que aqui.


Suponho que Catherine tenha feito aquilo a que se propunha, pois no parágrafo seguinte o tom era lacrimoso.
Nunca imaginei que Hindley me fosse fazer chorar assim! — escrevia ela. — Minha cabeça dói tanto, que não posso apoiá-la no travesseiro; mas mesmo assim não consigo esquecer. Pobre Heathcliff! Hindley diz que ele é um vagabundo e proibiu-o de sentar-se conosco e de co­mer à mesa; proibiu-nos, também, de brincar juntos, e ameaça expulsá-lo de casa se não lhe obedecermos. Culpa o nosso pai (como é que ele ousa?) por ter tratado H. de­masiado bem; e jura que o vai pôr no seu lugar. . .


Comecei a cochilar: meus olhos vaguearam do ma­nuscrito para o que estava impresso na página. Vi um título ornamentado e vermelho — Setenta vezes sete, e o pri­meiro do septuagésimo primeiro. Sermão feito pelo Reve­rendo Jabes Branderham, na Capela de Gimmerden Sough. Enquanto, ainda semi-inconsciente, eu partia a cabeça ima­ginando o que Jabes Branderham faria com aquele tema, caí de novo na cama e adormeci. Ah, os efeitos de um mau chá e de uma má acolhida! Que outros poderiam ser se­não fazer-me passar uma noite terrível? Não me recordo de outra pior, desde que comecei a ter a capacidade de sofrer.
Mergulhei quase imediatamente no sonho. Era de manhã e eu me pusera a caminho de casa, com Joseph por guia. A neve acumulava-se na estrada e, à medida que avançávamos, o velho aborrecia-me com constantes cen­suras por eu não ter trazido um bastão de peregrino, dizendo-me que sem ele eu nunca poderia entrar em casa e brandindo orgulhosamente um pesado bastão. Por um momento, achei absurdo precisar de uma tal arma para poder entrar na minha própria casa. Mas logo um pensa­mento me ocorreu. Eu não ia para casa: íamos a caminho de ouvir o famoso Jabes Branderham pregar sobre o texto Setenta vezes sete; e um de nós três, Joseph, eu ou o pre­gador, tínhamos cometido o "primeiro do septuagésimo pri­meiro", e ia ser publicamente denunciado e excomungado.
Chegamos à capela. Já passei por ela algumas vezes, duas ou três, creio; fica numa espécie de vale, entre dois morros — um vale elevado, perto da charneca, cuja turfa úmida dizem que embalsama os poucos cadáveres lá de­positados. O telhado tem resistido até aqui; mas, como os estipêndios do pastor são de apenas vinte libras por ano, mais uma casa com duas peças que ameaçam transformar-se numa só, não há quem queira assumir os deveres de pas­tor daquela capela, principalmente quando é voz corrente que o rebanho preferiria deixá-lo morrer de fome a aumen­tar-lhe a receita mediante a contribuição de um só penny. No meu sonho, porém, Jabes tinha uma vasta e atenta congregação; e pregava — Deus do céu! um sermão e tanto: dividido em quatrocentas e noventa partes, cada qual do tamanho de um sermão comum e analisando cada qual um pecado! Onde é que ele encontrava tantos, não sei dizer. Tinha uma maneira toda especial de interpretar o texto, e parecia necessário que o pecador pecasse diferentes pecados em cada ocasião. E havia pecados de todos os tipos: estranhas transgressões, que eu nunca sequer imaginara.
Oh, como eu estava cansado. Como me contorcia e bocejava e cabeceava e despertava, sobressaltado! Como eu me beliscava e esfregava os olhos e me levantava e vol­tava a sentar-me e acotovelava Joseph, para que me disses­se se achava que ele algum dia terminaria. Estava conde­nado a ouvir tudo. Finalmente, ele chegou ao "primeiro do septuagésimo primeiro". Nesse ponto crítico, uma súbita inspiração desceu sobre mim, fazendo com que me levan­tasse e denunciasse Jabes Branderham como culpado do pecado que nenhum cristão precisa perdoar.
— Senhores! — exclamei. — Aqui sentado, entre estas quatro paredes, suportei e perdoei as quatrocentas e noventa partes do sermão do pastor. Sete vezes setenta vezes apanhei o meu chapéu e tive ímpetos de partir . . .
Sete vezes setenta vezes o pastor me obrigou a sentar-me de novo. Sete vezes setenta vezes já é demais. Senhores, meus companheiros de martírio, vamos a ele! Tirai-o do púlpito e dai cabo dele, para que nunca mais nos ator­mente!
— Tu és o Homem! — gritou Jabes, após solene pausa, inclinando-se no púlpito. — Sete vezes setenta ve­zes contorceste o teu rosto, sete vezes setenta vezes con­sultei a minha alma. . . Ora, é apenas uma fraqueza hu­mana; também isso pode ser absolvido! Mas eis que se chega ao primeiro do septuagésimo primeiro. Irmãos, exe­cutai nele a sentença escrita. Honrai todos os seus santos!
Ante essas palavras, toda a congregação, brandindo os seus bastões de peregrinos, formou uma roda à minha volta; e, como eu não tivesse com que me defender, co­mecei a lutar com Joseph, meu mais próximo e feroz ata­cante, tentando apoderar-me do dele. Em meio à confusão, vários bastões se entrecruzaram: golpes destinados a mim caíram sobre outras cabeças. Dali a pouco, toda a capela ressoava paus batendo uns nos outros; cada pessoa se vol­tava contra o vizinho, e Branderham, não desejando ficar parado, derramava o seu zelo numa chuva de batidas nas tábuas do púlpito, com tanto sucesso que, para meu indizível alívio, acabaram me acordando. E o que sugerira o tremendo tumulto? O que fizera o papel de Jabes? Sim­plesmente o galho de um pinheiro que tocava na minha janela, sacudido pelo vento, batendo com as suas pinhas secas contra as vidraças! Escutei atentamente, por um mo­mento; descobri o que perturbava o meu sono, voltei-me para o outro lado, adormeci e sonhei de novo — se pos­sível, um sonho ainda mais desagradável do que o primeiro.
Desta vez, lembrava-me de que estava deitado no compartimento de carvalho e ouvia distintamente a venta­nia e o bater da neve contra o telhado; ouvia, também, o galho de pinheiro roçar contra a vidraça e sabia o que provocava aquele barulho impertinente; mas a tal ponto ele me incomodava, que resolvi silenciá-lo. Levantei-me e tentei abrir a janela. A lingüeta estava soldada, fato que eu observara quando acordado, mas que esquecera. — Tenho de acabar com esse barulho, seja como for! — murmurei, partindo a vidraça com o punho e esticando um braço para agarrar o importuno galho. Em vez disso, porém, os meus dedos pegaram os dedos de uma mão pequenina e gelada! O intenso horror do pesadelo tomou conta de mim: tentei retirar a mão, mas a mãozinha agar­rou-se ainda mais a ela e uma vozinha melancólica solu­çou: — Deixe-me entrar. . . deixe-me entrar! — Quem é você? — perguntei, enquanto lutava por me libertar. — Catherine Linton — respondeu a voz, como se tremesse de frio (por que razão fui pensar em Linton? Tinha lido o nome Earnshaw vinte vezes mais do que Linton). — Voltei. Perdi-me na charneca! — Enquanto ela falava, dis­tingui, na escuridão, um rosto de criança olhando através da janela. O terror tornou-me cruel; e, vendo que era inútil livrar-me da criatura, puxei-lhe o pulso através da vidraça partida, para a frente e para trás, até que o san­gue escorreu e encharcou a roupa de cama. Mesmo assim, a voz continuou a gemer: — Deixe-me entrar! — e a man­ter a mão agarrada à minha, quase me enlouquecendo de pavor. — Como é que eu posso? — consegui, por fim, dizer. — Solte-me, para que eu a possa deixar entrar! — Os dedos relaxaram um pouco a sua pressão. Recolhi de­pressa a minha mão através do buraco, empilhei os livros numa pirâmide, a fim de tapá-lo, e levei as mãos aos ouvi­dos, para não ouvir o lamentoso pedido. Acho que os con­servei fechados mais de um quarto de hora; mas, logo que os destapei, ouvi de novo o triste gemido. — Fora! — gri­tei. — Nunca deixarei você entrar, nem que fique aí pe­dindo durante vinte anos! — Faz mesmo vinte anos — gemeu a voz —, vinte anos. Há vinte anos que ando per­dida! — Ouvi arranhar levemente a vidraça, e a pilha de livros começou a se mexer, como se alguém a empurrasse. Tentei levantar-me, mas não consegui mover-me. . . e então soltei um grito, no auge do pavor. Para meu espanto, passos rápidos aproximaram-se da porta do meu quarto; alguém a escancarou, com um empurrão, e uma luz brilhou através dos quadrados abertos no alto do compartimento. Sentei-me na cama, estremecendo e limpando o suor da testa. O instruso pareceu hesitar e murmurar para si mes­mo. Finalmente, perguntou num sussurro, como se não esperasse resposta: — Há alguém aí? — Achei melhor confessar a minha presença, pois reconheci a voz de Heath­cliff e temia que ele fizesse uma busca, se eu ficasse calado. Assim pensando, abri os batentes da porta. Nunca esque­cerei o efeito que minha ação produziu.
Heathcliff estava junto à entrada, vestido apenas com a camisa e as calças. Uma vela pingava em cima dos seus dedos e o seu rosto estava tão branco quanto a parede atrás dele. O primeiro estalido do carvalho fê-lo estremecer como se fosse um choque elétrico. A vela pulou-lhe da mão para uma distância de alguns metros, e a sua agita­ção era tal, que mal conseguiu apanhá-la.
— Sou eu, o seu hóspede — falei, desejoso de lhe poupar a humilhação de continuar a mostrar-se apavora­do. — Tive a infelicidade de gritar, devido a um terrível pesadelo. Lamento tê-lo acordado.
— Oh, demônios o levem, Sr. Lockwood! Oxalá o senhor vá para o inferno — começou o meu senhorio, pou­sando a vela numa cadeira, porque não podia segurá-la com firmeza. — Quem o trouxe para este quarto? — continuou, ferrando as unhas nas palmas das mãos e rangendo os den­tes para dominar o tremor da sua mandíbula. — Quem foi? Queria expulsar imediatamente desta casa quem fez isso!
— Foi a sua criada Zillah — respondi, pulando da cama e vestindo-me rapidamente. — E acho bom que a expulse, Sr. Heathcliff; ela bem o merece. Suponho que queria ter mais uma prova de que o quarto era mal-assombrado. Pois é mesmo. . . cheio de fantasmas! O senhor tem toda a razão em trancá-lo, garanto-lhe. Ninguém lhe ficará grato por dormir neste antro!
— Que quer dizer com isso? — perguntou Heathcliff. — E que está fazendo? Deite-se e durma o resto da noite, uma vez que já está aqui. Mas, pelo amor de Deus, não repita esse horrível grito; não havia razão para ele, a me­nos que alguém o estivesse degolando!
— Se aquele diabinho tivesse entrado pela janela, provavelmente me haveria estrangulado! — retruquei. — Não pretendo voltar a suportar as perseguições dos seus hospitaleiros ancestrais. O Reverendo Jabes Branderham não seria, por acaso, seu parente, pelo lado materno? E esse diabo de Catherine Linton, ou Earnshaw, ou sei lá como se chamava. . . deve ter sido uma enjeitada; que alminha perversa! Disse-me que havia vinte anos andava penando; sem dúvida uma pena justa para quem muito pe­cou aqui na terra!
Mal pronunciei essas palavras, lembrei-me da asso­ciação, no livro, dos nomes de Heathcliff e Catherine, coisa que me saíra inteiramente da memória. Corei; mas, não querendo mostrar-me consciente da ofensa, apressei-me a acrescentar: — A verdade é que passei a primeira parte da noite. . . — detive-me a tempo; ia dizer "folheando aqueles livros", mas percebi que isso revelaria que eu lera o que estava escrito, e, após uma hesitação, continuei — a repetir o nome escrito no peitoril da janela. Ocupação monótona, destinada a me adormecer, como contar car­neiros, ou. . .
— Que pretende o senhor, falando dessa maneira co­migo? — rugiu Heathcliff, com selvagem veemência. — Como. . . como ousa o senhor, na minha própria casa? . . . Meu Deus, ele deve estar louco, para falar assim! — E ba­teu na testa, enfurecido.
Eu não sabia se devia ofender-me ou prosseguir na minha explicação; mas ele parecia tão perturbado que senti pena e continuei a contar-lhe os meus sonhos, afir­mando que nunca ouvira falar em "Catherine Linton", mas que o fato de ter lido repetidas vezes esse nome me levara a personificá-lo durante o sono. À medida que eu falava, Heathcliff foi-se deixando cair na cama, até ficar quase escondido atrás dela. Contudo, pela sua respiração irregu­lar e entrecortada, percebi que ele se esforçava por vencer um acesso de violenta emoção. Não querendo mostrar-lhe o que notara, prossegui na minha toalete, olhei para o meu relógio e comentei, em voz bem alta: — Ainda não são três horas! Podia jurar que já eram seis. O tempo aqui parece estagnar: devemos ter-nos deitado às oito!
— Sempre às nove, no inverno, e levantamo-nos às quatro — disse o meu anfitrião, contendo um gemido e, a julgar pelo movimento da sombra do seu braço, limpan­do uma lágrima dos olhos. — Sr. Lockwood — acrescen­tou —, o senhor pode ir para o meu quarto; só atrapalharia descendo assim tão cedo. . . e o seu grito infantil tirou-me o sono.
— A mim também — repliquei. — Ficarei no pátio até o dia raiar e depois irei embora; e não precisa recear que eu volte. Fiquei completamente curado da mania de procurar prazer na companhia dos outros, seja no campo ou na cidade. Um homem sensato deve saber encontrar prazer suficiente na própria companhia.
— Ótima companhia! — murmurou Heathcliff. — Leve a vela e vá para onde quiser. Irei ter com o senhor daqui a pouco. Mas não vá para o pátio, pois os cães estão soltos; e nem para a sala. . . Juno está de guarda lá e. . . não, o senhor só pode andar pelas escadas ou pe­los corredores. Mas. . . saia daqui. Irei daqui a dois mi­nutos!
Obedeci, ansioso de sair daquele quarto; mas, igno­rando aonde levariam os estreitos corredores, fiquei parado do lado de fora e testemunhei, involuntariamente, uma de­monstração de superstição da parte do meu senhorio, a qual contradizia, de maneira estranha, a sua aparente sensatez. Subiu na cama e abriu a gelosia, explodindo, ao fazê-lo, numa incontrolável torrente de lágrimas. — Entre! Entre! — soluçou. — Cathy, entre. Oh, venha. . . ve­nha . . . uma vez mais! Oh, minha adorada! Escute-me agora, Catherine, finalmente! — O espectro mostrou um capricho bem digno dos espectros: não deu sinais de vida; mas a neve e o vento entraram à vontade, chegando até onde eu estava e apagando a luz.
Uma tal angústia e dor acompanharam esse delírio que a compaixão fez-me esquecer a sua loucura, e me afastei, quase zangado comigo mesmo por ter contado o meu ridículo pesadelo, uma vez que lhe causara todo aque­le sofrimento — embora eu não pudesse compreender por quê. Desci cautelosamente para o andar de baixo e fui parar nos fundos da cozinha, onde um resto de fogo me permitiu reacender a vela. Nada se mexia, ainda, a não ser um gato rajado, que saiu de entre as cinzas e me saudou com um miado lastimoso.
Dois bancos, colocados em seções de círculo, quase rodeavam a lareira. Estendi-me num deles e o gato subiu para o outro. Estávamos ambos cochilando, quando alguém invadiu o nosso retiro: Joseph, descendo por uma escada de madeira, que desaparecia numa abertura do teto — a entrada para o sótão, creio eu. Deitou um olhar sinistro para a pequena chama que eu espevitara, espantou o gato do seu posto e, instalando-se no lugar vago, iniciou a ope­ração de encher de fumo seu cachimbo de três polegadas. A minha presença no seu santuário era, evidentemente, considerada como por demais impertinente para ser co­mentada: levou silenciosamente o cachimbo aos lábios, cruzou os braços e pôs-se a fumar. Deixei-o gozar à von­tade aquele prazer, e ele, após ter expelido a última bafo­rada e soltado um profundo suspiro, levantou-se e saiu, tão solenemente quanto entrara.
Passos mais elásticos se ouviram a seguir. Abri a boca para dar um bom-dia, mas voltei a fechá-la sem terminar o cumprimento, pois Hareton Earnshaw dizia as suas ora­ções sottovoce, numa série de pragas dirigidas contra todos os objetos em que tocava, enquanto procurava, num can­to, uma pá para remover a neve. Olhou por cima do banco, dilatando as narinas, e cuidou tão pouco de trocar cumpri­mentos comigo quanto com o gato. Percebi, pelos seus preparativos, que já me era permitido sair e, levantando-me da minha dura cama, fiz um movimento para segui-lo. Ele notou isso e apontou para uma porta interior com o cabo da pá, indicando, por meio de um som inarticulado, ser para ali que eu devia ir, se resolvesse mudar de pouso.
A porta abria para a sala, onde as mulheres já esta­vam de pé: Zillah, avivando o fogo com um enorme fole, e a Sra. Heathcliff, ajoelhada à beira da lareira, lendo um livro à luz das chamas. Tinha a mão interposta entre o calor da fogueira e os olhos, e parecia absorta na sua ocupação, deixando-a de lado apenas para repreender a criada por cobri-la de chispas, ou para afastar um cão, que de vez em quando lhe enfiava o focinho no rosto. Fiquei espantado de ver que Heathcliff também já lá estava. De pé, ao lado do fogo, dando-me as costas, acabava de esbra­vejar contra a pobre Zillah, que de quando em quando interrompia o seu trabalho para erguer a ponta do avental e soltar um indignado gemido.
— E você, sua. . . inútil — explodiu ele, quando eu entrei, voltando-se para a nora e empregando um epíteto tão inofensivo quanto pata ou ovelha, mas geralmente re­presentado por reticências. — Lá está você, como sempre fazendo nada! Os outros ganham o seu pão.. . mas você vive às minhas custas! Ponha esse maldito livro de lado e procure alguma coisa para fazer. Tem de me pagar pela maldição de ver você sempre diante de mim. . . Está me ouvindo, diabo?
— Vou pôr o livro de lado, porque o senhor é capaz de me obrigar a isso — respondeu a jovem, fechando o livro e jogando-o numa cadeira. — Mas não farei nada exceto o que eu quiser, mesmo que o senhor fique mudo de tanto praguejar!
Heathcliff ergueu a mão e a jovem pulou para longe, sem dúvida acostumada ao seu peso. Não tendo o menor desejo de presenciar uma luta livre, entrei na sala como se quisesse aquecer-me à lareira e não tivesse visto nada. Ambos tiveram decoro suficiente para suspender as hos­tilidades: Heathcliff colocou as mãos nos bolsos, talvez para fugir à tentação, enquanto ela mantinha a sua pala­vra, ficando imóvel como uma estátua durante o resto da minha estada, que não foi demorada. Recusei o convite para acompanhá-los na primeira refeição e, ao raiar do dia, aproveitei para sair para o ar livre, agora claro e calmo, mas frio de gelo.
O meu senhorio gritou para que eu parasse, antes de chegar ao fundo do jardim, e ofereceu-se para atravessar comigo a charneca. Ainda bem que o fez, porque o outro lado do morro era um autêntico oceano, branco e ondula­do, embora as ondulações não indicassem correspondentes elevações e depressões do terreno; muitos poços estavam cheios até a beira, e montes de pedras, refugo das pedreiras, haviam desaparecido do mapa que a minha caminhada do dia anterior me deixara na memória. Num dos lados da estrada, a intervalos de seis ou sete jardas, tinha reparado numa fileira de pedras postas ao alto e caiadas, de modo a servirem de guias na escuridão ou quando uma nevasca como aquela confundia os profundos valões, a cada mar­gem da estrada, com a terra firme; mas, a não ser um ponto aqui e ali, todos os traços da sua existência tinham desaparecido e o meu companheiro a toda hora se via obrigado a dizer-me que virasse para a esquerda ou para a direita, quando eu pensava que estava seguindo correta­mente as curvas do caminho. Pouco conversamos e ele parou à entrada do Parque Thrushcross, dizendo que dali para diante eu não podia errar. Nossas despedidas limita­ram-se a uma inclinação de cabeça, e depois eu continuei sozinho, entregue aos meus próprios recursos, pois a cabana do guarda ainda está desocupada. A distância do portão até a granja é de duas milhas; creio que consegui trans­formá-las em quatro, de tanto me perder por entre as árvores e afundar até o pescoço na neve, coisa que só quem experimentou pode saber o que é. De qualquer ma­neira, o relógio batia doze horas quando entrei em casa. Gastara exatamente uma hora para cada milha que me separava do Morro dos Ventos Uivantes.
Minha governanta e seus satélites acorreram para me dar as boas-vindas, exclamando que já me tinham dado como perdido. Pedi-lhes que sossegassem, uma vez que estava de volta, e, realmente mais morto do que vivo, arrastei-me escada acima. Depois de ter vestido roupa seca e andado de um lado para outro durante quarenta mi­nutos, a fim de me esquentar, fui para o meu escritório tentar reunir forçar suficientes para gozar o belo fogo e o café fumegante que a criada preparara para me reanimar.