segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O Morro dos Ventos Uivantes, Cap lll

Enquanto me precedia escada acima, Zillah recomen­dou-me que escondesse a vela e não fizesse barulho, pois o patrão tinha uma estranha cisma com o quarto em que ela me ia acomodar e nunca queria que ninguém pernoi­tasse nele. Perguntei-lhe a razão disso. Não sabia, respon­deu; estava naquela casa havia apenas um ou dois anos e tanta coisa esquisita tinha acontecido, que ela não se dava ao trabalho de ser curiosa.
Sem forças nem para ser curioso, tranquei a porta e procurei a cama. Toda a mobília do quarto consistia numa poltrona, num guarda-roupa e num grande armário de carvalho, com aberturas quadradas junto ao alto, seme­lhantes a janelas de carruagem. Aproximei-me, olhei para dentro e vi que era uma espécie de cama antiga, conve­nientemente concebida para proporcionar a cada membro da família dormitório exclusivo. Efetivamente, formava um pequeno compartimento, e o peitoril da janela, que ele abarcava, servia de mesa-de-cabeceira. Pus para baixo os batentes laterais, entrei com a minha vela, fechei nova­mente os batentes e senti-me a salvo da vigilância de Heath­cliff e de qualquer outro.
O peitoril, onde coloquei a vela, tinha, empilhados a um canto, alguns livros embolorados, e a sua pintura estava coberta de escritos, que, examinados de perto, mos­travam ser apenas um nome, repetido em todos os tipos de letras, grandes e pequenas: Catherine Earnshaw, aqui e ali alterado para Catherine Heathcliff, e depois para Catherine Linton.
Entorpecido, apoiei a cabeça no peitoril e continuei a soletrar Catherine Earnshaw. . . Heathcliff. . . Linton, até que os meus olhos se fecharam; mas eles não tinham des­cansado nem cinco minutos, quando um brilho de letras brancas surgiu do escuro, como espectros, enchendo o ar de Catherines. Abrindo os olhos para dissipar aquele no­me, vi que o pavio da vela se encostava num dos volumes embolorados e perfumava o aposento com um cheiro de couro queimado. Soprei o pavio, e, sob a dupla influência do frio e da náusea, sentei-me e abri o volume queimado contra o joelho. Era uma Bíblia, em tipo pequeno e chei­rando horrivelmente a bolor; a folha inicial, em branco, tinha os dizeres Catherine Earnshaw e uma data, aproxi­madamente de há vinte e cinco anos atrás. Fechei o livro e peguei noutro, depois noutro, até ter examinado todos. A biblioteca de Catherine era escolhida e o seu estado mostrava que fora bem manuseada, embora nem sempre para fins de leitura apenas; raro era o capítulo que esca­para a um comentário a tinta — pelo menos, assim pare­cia —, cobrindo todo o espaço em branco que o tipógrafo deixara. Em alguns casos eram frases soltas; em outros assumiam a forma de um diário, escrevinhado numa orto­grafia infantil. No alto de uma página extra (provavelmen­te considerada um tesouro, quando descoberta), dei de cara com uma excelente caricatura do meu amigo Joseph
— pouco mais do que esboçada, mas com talento. Aquilo despertou imediatamente, em mim, um interesse por aquela desconhecida Catherine, e pus-me a tentar decifrar os seus desbotados hieróglifos.
Domingo horrível! — começava o parágrafo abaixo.
Quem dera que meu pai ressuscitasse! Hindley é um detestável substituto. . . a sua conduta para com Heathcliff é atroz... H. e eu vamos rebelar-nos. . . já começamos esta tarde.
A chuva caiu durante todo o dia; não pudemos ir à igreja, de modo que Joseph teve de reunir a sua congre­gação no sótão; e, enquanto Hindley e a mulher ficavam confortavelmente diante do fogo — fazendo tudo menos ler a Bíblia, isso eu garanto —, eu, Heathcliff e o pobre moço do arado fomos obrigados a pegar nos nossos livros de orações e subir; fomos dispostos numa fila, sobre um saco de trigo, resmungando e tiritando e esperando que Jo­seph também tintasse, para não demorar muito com o ser­mão. Vã esperança! O serviço durou exatamente três horas.
Apesar disso, o meu irmão ainda teve a coragem de excla­mar, ao ver-nos descer: "O quê, já acabaram?" Aos do­mingos à noite costumavam deixar-nos brincar, desde que não fizéssemos muito barulho; agora qualquer barulhinho é suficiente para nos colocarem de castigo!
"Vocês se esquecem de que eu estou aqui", disse o tirano. "O primeiro que me irritar vai se arrepender! Faço questão de compostura e silêncio. Ah, foi você? Frances, querida, puxe o cabelo dele: ouvi-o estalar os dedos." Frances puxou-lhe o cabelo com força e depois sentou-se no colo do marido, e os dois ficaram se beijando e falando bobagens — bobagens mesmo, de que nós teríamos ver­gonha. Instalamo-nos o melhor que pudemos debaixo do tampo do aparador. Eu mal acabara de atar os nossos aven­tais e de pendurá-los como se fossem uma cortina, quando Joseph entrou, vindo da cavalariça. Derrubou o meu tra­balho, deu-me um tapa nos ouvidos e grasnou:
"O patrão mal foi sepultado e o domingo ainda não acabou e o Evangelho ainda está nos seus ouvidos e vocês estão de papo pro ar! Que vergonha! Sentados, seus cape­tas! Tanto livro bom para ler! Sentem e pensem nas suas almas!"
Assim dizendo, obrigou-nos a corrigir a nossa posi­ção, de modo a recebermos, do fogo distante, um mínimo de luz que nos iluminasse os livros que ele pôs diante de nós. Não pude suportar aquilo. Peguei no meu volume e joguei-o no canil, dizendo que detestava livros bons. Heath­cliff deu um chute e mandou o dele para o mesmo lugar. Foi um escândalo!
"Patrão Hindley!", gritou o nosso capelão. "Patrão, venha cá! Cathy arrancou a capa do Livro da salvação e Heathcliff estraçalhou a primeira parte do Caminho para a destruição! O patrão não pode deixar eles fazer o que querem. O patrão velho não tinha conversa, dava logo uma surra neles — mas ele já está no Reino do Senhor!"
Hindley deixou o seu paraíso junto à lareira e, agar­rando um de nós pelo colarinho e o outro pelo braço, ati­rou-nos a ambos na despensa, onde, segundo Joseph, "o Capeta" nos iria buscar dali a pouco. Assim confortados, cada qual procurou um canto onde esperar por essa visita. Apanhei este livro e um tinteiro numa prateleira, escancarei a janela para deixar entrar a luz e há vinte minutos que estou escrevendo; mas o meu companheiro está impaciente e sugere que apanhemos a capa da leiteira e demos um pulo até a charneca, debaixo dela. Agradável sugestão — se o velho entrar, vai pensar que a sua profecia se realizou; — e nós certamente não teremos mais frio debaixo da chuva do que aqui.


Suponho que Catherine tenha feito aquilo a que se propunha, pois no parágrafo seguinte o tom era lacrimoso.
Nunca imaginei que Hindley me fosse fazer chorar assim! — escrevia ela. — Minha cabeça dói tanto, que não posso apoiá-la no travesseiro; mas mesmo assim não consigo esquecer. Pobre Heathcliff! Hindley diz que ele é um vagabundo e proibiu-o de sentar-se conosco e de co­mer à mesa; proibiu-nos, também, de brincar juntos, e ameaça expulsá-lo de casa se não lhe obedecermos. Culpa o nosso pai (como é que ele ousa?) por ter tratado H. de­masiado bem; e jura que o vai pôr no seu lugar. . .


Comecei a cochilar: meus olhos vaguearam do ma­nuscrito para o que estava impresso na página. Vi um título ornamentado e vermelho — Setenta vezes sete, e o pri­meiro do septuagésimo primeiro. Sermão feito pelo Reve­rendo Jabes Branderham, na Capela de Gimmerden Sough. Enquanto, ainda semi-inconsciente, eu partia a cabeça ima­ginando o que Jabes Branderham faria com aquele tema, caí de novo na cama e adormeci. Ah, os efeitos de um mau chá e de uma má acolhida! Que outros poderiam ser se­não fazer-me passar uma noite terrível? Não me recordo de outra pior, desde que comecei a ter a capacidade de sofrer.
Mergulhei quase imediatamente no sonho. Era de manhã e eu me pusera a caminho de casa, com Joseph por guia. A neve acumulava-se na estrada e, à medida que avançávamos, o velho aborrecia-me com constantes cen­suras por eu não ter trazido um bastão de peregrino, dizendo-me que sem ele eu nunca poderia entrar em casa e brandindo orgulhosamente um pesado bastão. Por um momento, achei absurdo precisar de uma tal arma para poder entrar na minha própria casa. Mas logo um pensa­mento me ocorreu. Eu não ia para casa: íamos a caminho de ouvir o famoso Jabes Branderham pregar sobre o texto Setenta vezes sete; e um de nós três, Joseph, eu ou o pre­gador, tínhamos cometido o "primeiro do septuagésimo pri­meiro", e ia ser publicamente denunciado e excomungado.
Chegamos à capela. Já passei por ela algumas vezes, duas ou três, creio; fica numa espécie de vale, entre dois morros — um vale elevado, perto da charneca, cuja turfa úmida dizem que embalsama os poucos cadáveres lá de­positados. O telhado tem resistido até aqui; mas, como os estipêndios do pastor são de apenas vinte libras por ano, mais uma casa com duas peças que ameaçam transformar-se numa só, não há quem queira assumir os deveres de pas­tor daquela capela, principalmente quando é voz corrente que o rebanho preferiria deixá-lo morrer de fome a aumen­tar-lhe a receita mediante a contribuição de um só penny. No meu sonho, porém, Jabes tinha uma vasta e atenta congregação; e pregava — Deus do céu! um sermão e tanto: dividido em quatrocentas e noventa partes, cada qual do tamanho de um sermão comum e analisando cada qual um pecado! Onde é que ele encontrava tantos, não sei dizer. Tinha uma maneira toda especial de interpretar o texto, e parecia necessário que o pecador pecasse diferentes pecados em cada ocasião. E havia pecados de todos os tipos: estranhas transgressões, que eu nunca sequer imaginara.
Oh, como eu estava cansado. Como me contorcia e bocejava e cabeceava e despertava, sobressaltado! Como eu me beliscava e esfregava os olhos e me levantava e vol­tava a sentar-me e acotovelava Joseph, para que me disses­se se achava que ele algum dia terminaria. Estava conde­nado a ouvir tudo. Finalmente, ele chegou ao "primeiro do septuagésimo primeiro". Nesse ponto crítico, uma súbita inspiração desceu sobre mim, fazendo com que me levan­tasse e denunciasse Jabes Branderham como culpado do pecado que nenhum cristão precisa perdoar.
— Senhores! — exclamei. — Aqui sentado, entre estas quatro paredes, suportei e perdoei as quatrocentas e noventa partes do sermão do pastor. Sete vezes setenta vezes apanhei o meu chapéu e tive ímpetos de partir . . .
Sete vezes setenta vezes o pastor me obrigou a sentar-me de novo. Sete vezes setenta vezes já é demais. Senhores, meus companheiros de martírio, vamos a ele! Tirai-o do púlpito e dai cabo dele, para que nunca mais nos ator­mente!
— Tu és o Homem! — gritou Jabes, após solene pausa, inclinando-se no púlpito. — Sete vezes setenta ve­zes contorceste o teu rosto, sete vezes setenta vezes con­sultei a minha alma. . . Ora, é apenas uma fraqueza hu­mana; também isso pode ser absolvido! Mas eis que se chega ao primeiro do septuagésimo primeiro. Irmãos, exe­cutai nele a sentença escrita. Honrai todos os seus santos!
Ante essas palavras, toda a congregação, brandindo os seus bastões de peregrinos, formou uma roda à minha volta; e, como eu não tivesse com que me defender, co­mecei a lutar com Joseph, meu mais próximo e feroz ata­cante, tentando apoderar-me do dele. Em meio à confusão, vários bastões se entrecruzaram: golpes destinados a mim caíram sobre outras cabeças. Dali a pouco, toda a capela ressoava paus batendo uns nos outros; cada pessoa se vol­tava contra o vizinho, e Branderham, não desejando ficar parado, derramava o seu zelo numa chuva de batidas nas tábuas do púlpito, com tanto sucesso que, para meu indizível alívio, acabaram me acordando. E o que sugerira o tremendo tumulto? O que fizera o papel de Jabes? Sim­plesmente o galho de um pinheiro que tocava na minha janela, sacudido pelo vento, batendo com as suas pinhas secas contra as vidraças! Escutei atentamente, por um mo­mento; descobri o que perturbava o meu sono, voltei-me para o outro lado, adormeci e sonhei de novo — se pos­sível, um sonho ainda mais desagradável do que o primeiro.
Desta vez, lembrava-me de que estava deitado no compartimento de carvalho e ouvia distintamente a venta­nia e o bater da neve contra o telhado; ouvia, também, o galho de pinheiro roçar contra a vidraça e sabia o que provocava aquele barulho impertinente; mas a tal ponto ele me incomodava, que resolvi silenciá-lo. Levantei-me e tentei abrir a janela. A lingüeta estava soldada, fato que eu observara quando acordado, mas que esquecera. — Tenho de acabar com esse barulho, seja como for! — murmurei, partindo a vidraça com o punho e esticando um braço para agarrar o importuno galho. Em vez disso, porém, os meus dedos pegaram os dedos de uma mão pequenina e gelada! O intenso horror do pesadelo tomou conta de mim: tentei retirar a mão, mas a mãozinha agar­rou-se ainda mais a ela e uma vozinha melancólica solu­çou: — Deixe-me entrar. . . deixe-me entrar! — Quem é você? — perguntei, enquanto lutava por me libertar. — Catherine Linton — respondeu a voz, como se tremesse de frio (por que razão fui pensar em Linton? Tinha lido o nome Earnshaw vinte vezes mais do que Linton). — Voltei. Perdi-me na charneca! — Enquanto ela falava, dis­tingui, na escuridão, um rosto de criança olhando através da janela. O terror tornou-me cruel; e, vendo que era inútil livrar-me da criatura, puxei-lhe o pulso através da vidraça partida, para a frente e para trás, até que o san­gue escorreu e encharcou a roupa de cama. Mesmo assim, a voz continuou a gemer: — Deixe-me entrar! — e a man­ter a mão agarrada à minha, quase me enlouquecendo de pavor. — Como é que eu posso? — consegui, por fim, dizer. — Solte-me, para que eu a possa deixar entrar! — Os dedos relaxaram um pouco a sua pressão. Recolhi de­pressa a minha mão através do buraco, empilhei os livros numa pirâmide, a fim de tapá-lo, e levei as mãos aos ouvi­dos, para não ouvir o lamentoso pedido. Acho que os con­servei fechados mais de um quarto de hora; mas, logo que os destapei, ouvi de novo o triste gemido. — Fora! — gri­tei. — Nunca deixarei você entrar, nem que fique aí pe­dindo durante vinte anos! — Faz mesmo vinte anos — gemeu a voz —, vinte anos. Há vinte anos que ando per­dida! — Ouvi arranhar levemente a vidraça, e a pilha de livros começou a se mexer, como se alguém a empurrasse. Tentei levantar-me, mas não consegui mover-me. . . e então soltei um grito, no auge do pavor. Para meu espanto, passos rápidos aproximaram-se da porta do meu quarto; alguém a escancarou, com um empurrão, e uma luz brilhou através dos quadrados abertos no alto do compartimento. Sentei-me na cama, estremecendo e limpando o suor da testa. O instruso pareceu hesitar e murmurar para si mes­mo. Finalmente, perguntou num sussurro, como se não esperasse resposta: — Há alguém aí? — Achei melhor confessar a minha presença, pois reconheci a voz de Heath­cliff e temia que ele fizesse uma busca, se eu ficasse calado. Assim pensando, abri os batentes da porta. Nunca esque­cerei o efeito que minha ação produziu.
Heathcliff estava junto à entrada, vestido apenas com a camisa e as calças. Uma vela pingava em cima dos seus dedos e o seu rosto estava tão branco quanto a parede atrás dele. O primeiro estalido do carvalho fê-lo estremecer como se fosse um choque elétrico. A vela pulou-lhe da mão para uma distância de alguns metros, e a sua agita­ção era tal, que mal conseguiu apanhá-la.
— Sou eu, o seu hóspede — falei, desejoso de lhe poupar a humilhação de continuar a mostrar-se apavora­do. — Tive a infelicidade de gritar, devido a um terrível pesadelo. Lamento tê-lo acordado.
— Oh, demônios o levem, Sr. Lockwood! Oxalá o senhor vá para o inferno — começou o meu senhorio, pou­sando a vela numa cadeira, porque não podia segurá-la com firmeza. — Quem o trouxe para este quarto? — continuou, ferrando as unhas nas palmas das mãos e rangendo os den­tes para dominar o tremor da sua mandíbula. — Quem foi? Queria expulsar imediatamente desta casa quem fez isso!
— Foi a sua criada Zillah — respondi, pulando da cama e vestindo-me rapidamente. — E acho bom que a expulse, Sr. Heathcliff; ela bem o merece. Suponho que queria ter mais uma prova de que o quarto era mal-assombrado. Pois é mesmo. . . cheio de fantasmas! O senhor tem toda a razão em trancá-lo, garanto-lhe. Ninguém lhe ficará grato por dormir neste antro!
— Que quer dizer com isso? — perguntou Heathcliff. — E que está fazendo? Deite-se e durma o resto da noite, uma vez que já está aqui. Mas, pelo amor de Deus, não repita esse horrível grito; não havia razão para ele, a me­nos que alguém o estivesse degolando!
— Se aquele diabinho tivesse entrado pela janela, provavelmente me haveria estrangulado! — retruquei. — Não pretendo voltar a suportar as perseguições dos seus hospitaleiros ancestrais. O Reverendo Jabes Branderham não seria, por acaso, seu parente, pelo lado materno? E esse diabo de Catherine Linton, ou Earnshaw, ou sei lá como se chamava. . . deve ter sido uma enjeitada; que alminha perversa! Disse-me que havia vinte anos andava penando; sem dúvida uma pena justa para quem muito pe­cou aqui na terra!
Mal pronunciei essas palavras, lembrei-me da asso­ciação, no livro, dos nomes de Heathcliff e Catherine, coisa que me saíra inteiramente da memória. Corei; mas, não querendo mostrar-me consciente da ofensa, apressei-me a acrescentar: — A verdade é que passei a primeira parte da noite. . . — detive-me a tempo; ia dizer "folheando aqueles livros", mas percebi que isso revelaria que eu lera o que estava escrito, e, após uma hesitação, continuei — a repetir o nome escrito no peitoril da janela. Ocupação monótona, destinada a me adormecer, como contar car­neiros, ou. . .
— Que pretende o senhor, falando dessa maneira co­migo? — rugiu Heathcliff, com selvagem veemência. — Como. . . como ousa o senhor, na minha própria casa? . . . Meu Deus, ele deve estar louco, para falar assim! — E ba­teu na testa, enfurecido.
Eu não sabia se devia ofender-me ou prosseguir na minha explicação; mas ele parecia tão perturbado que senti pena e continuei a contar-lhe os meus sonhos, afir­mando que nunca ouvira falar em "Catherine Linton", mas que o fato de ter lido repetidas vezes esse nome me levara a personificá-lo durante o sono. À medida que eu falava, Heathcliff foi-se deixando cair na cama, até ficar quase escondido atrás dela. Contudo, pela sua respiração irregu­lar e entrecortada, percebi que ele se esforçava por vencer um acesso de violenta emoção. Não querendo mostrar-lhe o que notara, prossegui na minha toalete, olhei para o meu relógio e comentei, em voz bem alta: — Ainda não são três horas! Podia jurar que já eram seis. O tempo aqui parece estagnar: devemos ter-nos deitado às oito!
— Sempre às nove, no inverno, e levantamo-nos às quatro — disse o meu anfitrião, contendo um gemido e, a julgar pelo movimento da sombra do seu braço, limpan­do uma lágrima dos olhos. — Sr. Lockwood — acrescen­tou —, o senhor pode ir para o meu quarto; só atrapalharia descendo assim tão cedo. . . e o seu grito infantil tirou-me o sono.
— A mim também — repliquei. — Ficarei no pátio até o dia raiar e depois irei embora; e não precisa recear que eu volte. Fiquei completamente curado da mania de procurar prazer na companhia dos outros, seja no campo ou na cidade. Um homem sensato deve saber encontrar prazer suficiente na própria companhia.
— Ótima companhia! — murmurou Heathcliff. — Leve a vela e vá para onde quiser. Irei ter com o senhor daqui a pouco. Mas não vá para o pátio, pois os cães estão soltos; e nem para a sala. . . Juno está de guarda lá e. . . não, o senhor só pode andar pelas escadas ou pe­los corredores. Mas. . . saia daqui. Irei daqui a dois mi­nutos!
Obedeci, ansioso de sair daquele quarto; mas, igno­rando aonde levariam os estreitos corredores, fiquei parado do lado de fora e testemunhei, involuntariamente, uma de­monstração de superstição da parte do meu senhorio, a qual contradizia, de maneira estranha, a sua aparente sensatez. Subiu na cama e abriu a gelosia, explodindo, ao fazê-lo, numa incontrolável torrente de lágrimas. — Entre! Entre! — soluçou. — Cathy, entre. Oh, venha. . . ve­nha . . . uma vez mais! Oh, minha adorada! Escute-me agora, Catherine, finalmente! — O espectro mostrou um capricho bem digno dos espectros: não deu sinais de vida; mas a neve e o vento entraram à vontade, chegando até onde eu estava e apagando a luz.
Uma tal angústia e dor acompanharam esse delírio que a compaixão fez-me esquecer a sua loucura, e me afastei, quase zangado comigo mesmo por ter contado o meu ridículo pesadelo, uma vez que lhe causara todo aque­le sofrimento — embora eu não pudesse compreender por quê. Desci cautelosamente para o andar de baixo e fui parar nos fundos da cozinha, onde um resto de fogo me permitiu reacender a vela. Nada se mexia, ainda, a não ser um gato rajado, que saiu de entre as cinzas e me saudou com um miado lastimoso.
Dois bancos, colocados em seções de círculo, quase rodeavam a lareira. Estendi-me num deles e o gato subiu para o outro. Estávamos ambos cochilando, quando alguém invadiu o nosso retiro: Joseph, descendo por uma escada de madeira, que desaparecia numa abertura do teto — a entrada para o sótão, creio eu. Deitou um olhar sinistro para a pequena chama que eu espevitara, espantou o gato do seu posto e, instalando-se no lugar vago, iniciou a ope­ração de encher de fumo seu cachimbo de três polegadas. A minha presença no seu santuário era, evidentemente, considerada como por demais impertinente para ser co­mentada: levou silenciosamente o cachimbo aos lábios, cruzou os braços e pôs-se a fumar. Deixei-o gozar à von­tade aquele prazer, e ele, após ter expelido a última bafo­rada e soltado um profundo suspiro, levantou-se e saiu, tão solenemente quanto entrara.
Passos mais elásticos se ouviram a seguir. Abri a boca para dar um bom-dia, mas voltei a fechá-la sem terminar o cumprimento, pois Hareton Earnshaw dizia as suas ora­ções sottovoce, numa série de pragas dirigidas contra todos os objetos em que tocava, enquanto procurava, num can­to, uma pá para remover a neve. Olhou por cima do banco, dilatando as narinas, e cuidou tão pouco de trocar cumpri­mentos comigo quanto com o gato. Percebi, pelos seus preparativos, que já me era permitido sair e, levantando-me da minha dura cama, fiz um movimento para segui-lo. Ele notou isso e apontou para uma porta interior com o cabo da pá, indicando, por meio de um som inarticulado, ser para ali que eu devia ir, se resolvesse mudar de pouso.
A porta abria para a sala, onde as mulheres já esta­vam de pé: Zillah, avivando o fogo com um enorme fole, e a Sra. Heathcliff, ajoelhada à beira da lareira, lendo um livro à luz das chamas. Tinha a mão interposta entre o calor da fogueira e os olhos, e parecia absorta na sua ocupação, deixando-a de lado apenas para repreender a criada por cobri-la de chispas, ou para afastar um cão, que de vez em quando lhe enfiava o focinho no rosto. Fiquei espantado de ver que Heathcliff também já lá estava. De pé, ao lado do fogo, dando-me as costas, acabava de esbra­vejar contra a pobre Zillah, que de quando em quando interrompia o seu trabalho para erguer a ponta do avental e soltar um indignado gemido.
— E você, sua. . . inútil — explodiu ele, quando eu entrei, voltando-se para a nora e empregando um epíteto tão inofensivo quanto pata ou ovelha, mas geralmente re­presentado por reticências. — Lá está você, como sempre fazendo nada! Os outros ganham o seu pão.. . mas você vive às minhas custas! Ponha esse maldito livro de lado e procure alguma coisa para fazer. Tem de me pagar pela maldição de ver você sempre diante de mim. . . Está me ouvindo, diabo?
— Vou pôr o livro de lado, porque o senhor é capaz de me obrigar a isso — respondeu a jovem, fechando o livro e jogando-o numa cadeira. — Mas não farei nada exceto o que eu quiser, mesmo que o senhor fique mudo de tanto praguejar!
Heathcliff ergueu a mão e a jovem pulou para longe, sem dúvida acostumada ao seu peso. Não tendo o menor desejo de presenciar uma luta livre, entrei na sala como se quisesse aquecer-me à lareira e não tivesse visto nada. Ambos tiveram decoro suficiente para suspender as hos­tilidades: Heathcliff colocou as mãos nos bolsos, talvez para fugir à tentação, enquanto ela mantinha a sua pala­vra, ficando imóvel como uma estátua durante o resto da minha estada, que não foi demorada. Recusei o convite para acompanhá-los na primeira refeição e, ao raiar do dia, aproveitei para sair para o ar livre, agora claro e calmo, mas frio de gelo.
O meu senhorio gritou para que eu parasse, antes de chegar ao fundo do jardim, e ofereceu-se para atravessar comigo a charneca. Ainda bem que o fez, porque o outro lado do morro era um autêntico oceano, branco e ondula­do, embora as ondulações não indicassem correspondentes elevações e depressões do terreno; muitos poços estavam cheios até a beira, e montes de pedras, refugo das pedreiras, haviam desaparecido do mapa que a minha caminhada do dia anterior me deixara na memória. Num dos lados da estrada, a intervalos de seis ou sete jardas, tinha reparado numa fileira de pedras postas ao alto e caiadas, de modo a servirem de guias na escuridão ou quando uma nevasca como aquela confundia os profundos valões, a cada mar­gem da estrada, com a terra firme; mas, a não ser um ponto aqui e ali, todos os traços da sua existência tinham desaparecido e o meu companheiro a toda hora se via obrigado a dizer-me que virasse para a esquerda ou para a direita, quando eu pensava que estava seguindo correta­mente as curvas do caminho. Pouco conversamos e ele parou à entrada do Parque Thrushcross, dizendo que dali para diante eu não podia errar. Nossas despedidas limita­ram-se a uma inclinação de cabeça, e depois eu continuei sozinho, entregue aos meus próprios recursos, pois a cabana do guarda ainda está desocupada. A distância do portão até a granja é de duas milhas; creio que consegui trans­formá-las em quatro, de tanto me perder por entre as árvores e afundar até o pescoço na neve, coisa que só quem experimentou pode saber o que é. De qualquer ma­neira, o relógio batia doze horas quando entrei em casa. Gastara exatamente uma hora para cada milha que me separava do Morro dos Ventos Uivantes.
Minha governanta e seus satélites acorreram para me dar as boas-vindas, exclamando que já me tinham dado como perdido. Pedi-lhes que sossegassem, uma vez que estava de volta, e, realmente mais morto do que vivo, arrastei-me escada acima. Depois de ter vestido roupa seca e andado de um lado para outro durante quarenta mi­nutos, a fim de me esquentar, fui para o meu escritório tentar reunir forçar suficientes para gozar o belo fogo e o café fumegante que a criada preparara para me reanimar.

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