segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O Morro dos Ventos Uivantes, Cap l

1801

Acabei de chegar de uma visita ao meu senhorio — o único vizinho que me poderá incomodar. Que bela re­gião, esta! Em toda a Inglaterra, acho que não poderia ter encontrado um lugar tão completamente afastado da sociedade humana. Um perfeito paraíso para os misantropos; eu e o Sr. Heathcliff formamos um par bem ade­quado para dividi-lo entre ambos. Grande sujeito! Não deve ter suspeitado de como simpatizei com ele, assim que vi os seus olhos negros recolherem-se, desconfiados, sob as sobrancelhas, à medida que eu me aproximava, e os seus dedos afundarem ainda mais, com ciumenta determi­nação, no seu colete, quando anunciei quem era.
— Sr. Heathcliff? — disse eu. A resposta foi um aceno.
— Sou Lockwood, o seu novo inquilino. Tenho a honra de vir falar com o senhor logo após a minha che­gada, para dizer-lhe que espero não o ter importunado com a minha insistência em solicitar a ocupação da Granja Thrushcross; ouvi dizer, ontem, que o senhor tinha pen­sado . . .
— A Granja Thrushcross pertence-me — interrom­peu ele secamente. — Não iria permitir que ninguém me importunasse e, se pudesse me opor a isso. . . Entre!
Esse "entre" foi dito entre dentes e no tom de quem diz: "Vá para o diabo!" Até mesmo a cancela em que ele se apoiava não fez qualquer movimento para acom­panhar as suas palavras, e acho que foi precisamente isso que me levou a aceitar o convite: sentia-me interessado por aquele homem, cuja misantropia parecia ainda maior do que a minha.
Quando ele viu o meu cavalo empurrar a porteira, estendeu a mão para abri-la e precedeu-me, soturnamente, ordenando, ao entrarmos no pátio: — Joseph, leve o cavalo do Sr. Lockwood; e traga-nos vinho.
"Eis aí toda a criadagem", pensei, ao ouvir aquela dupla ordem. "Não espanta que a grama cresça entre as pedras do caminho e o gado seja o único jardineiro."
Joseph era um homem de idade, ou melhor, um autên­tico velho; muito velho, talvez, embora saudável e enérgico. — Deus nos acuda! — murmurou com evidente desprazer, enquanto me desembaraçava do cavalo, e ao mesmo tempo me olhava com ar tão sombrio, que eu caridosamente conjeturei que talvez ele precisasse do socorro divino para digerir o seu almoço e sua piedosa exclamação nada tivesse que ver com a minha inesperada visita.
A propriedade do Sr. Heathcliff chama-se, adequada­mente, Wuthering Heights (O Morro dos Ventos Uivantes, N. do E.), sendo wuthering um significa­tivo adjetivo provinciano para designar o tumulto atmos­férico ao qual ela está sujeita em tempo tempestuoso. De fato, ali sempre sopra um ar puro e estimulante; pode-se imaginar a fúria do vento do norte soprando sobre a pro­priedade, pela excessiva inclinação de alguns enfezados abetos plantados na extremidade da casa e por uma fila de esquálidos espinheiros, todos estendendo os seus mem­bros na mesma direção, como se pedindo esmolas ao sol. Felizmente, o arquiteto cuidou de fazê-la forte: as janelas, estreitas, estão bem embutidas na parede, e os cantos são defendidos por grandes pedras salientes.
Antes de atravessar a soleira, parei para admirar uma quantidade de grotescos entalhes espalhados sobre a fa­chada e, principalmente, à volta da porta, por cima da qual, entre uma orgia de grifos semi-esboroados e menininhos despudorados, detectei a data 1500 e o nome Hareton Earnshaw. Tive vontade de fazer alguns comentários e pedir ao proprietário que me fornecesse um breve histórico do lugar, mas a sua atitude parecia exigir que eu entrasse sem mais delongas ou então partisse, e não quis aumentar-lhe a irritação antes de ter entrado.
Um passo e estávamos na sala, sem qualquer vestíbulo ou corredor introdutório; aqui, dão à sala o nome de "casa", e geralmente serve de cozinha e de sala de estar. Mas creio que no Morro dos Ventos Uivantes a cozinha fora forçada a retirar-se para outros quartéis; pelo menos, distingui um barulho de tenazes e utensílios culinários vindo de dentro da casa, e não vi sinais de assados ou cozidos na enor­me lareira, nem brilho de caçarolas de cobre ou passadores de lata nas paredes. Numa extremidade da sala, porém, a luz e o calor do fogo se refletiam esplendidamente em filas de imensos pratos de estanho, entremeados de canecas e jarras de prata, que se erguiam, sobre um vasto aparador de carvalho, como uma torre, até o teto. Este nunca fora tapado: toda a sua anatomia estava à vista, exceto onde uma prateleira, cheia de bolos de aveia, pedaços de pernas de bois e de carneiros, pernis e presuntos, a escondia. Sobre a lareira viam-se várias armas de fogo antigas, de aspecto terrível, e um par de enormes pistolas, além de três caixas de folhas para chá pintadas com cores vivas e dispostas, à guisa de ornamento, ao longo da beirada da lareira. o chão era de pedra branca e lisa; as cadeiras, primitivas e de espaldar alto, pintadas de verde; uma ou duas, mais pesadas e negras, entreviam-se na penumbra. Sob um arco, debaixo do aparador, repousava uma gran­de cadela pointer, vermelho-escura e rodeada por uma porção de barulhentos cachorrinhos. Outros cães perambulavam de um lado para outro.
O aposento e a sua decoração não teriam nada de extraordinário se pertencessem a um pacato fazendeiro local, de aspecto teimoso e membros rijos, realçados por calções até os joelhos e polainas. Um tal fazendeiro, sen­tado na sua poltrona, caneca de cerveja espumejando sobre uma mesa redonda à sua frente, é coisa que se vê em qual­quer passeio de cinco ou seis milhas por estas colinas, desde que se faça a visita a uma hora certa, logo depois do almoço. Mas o Sr. Heathcliff contrasta singularmente com a casa em que mora e o seu estilo de vida. Na apa­rência, é um autêntico cigano de pele escura; no trajar e nas maneiras, um cavalheiro — isto é, um cavalheiro como o são tantos fidalgos do interior: bastante desalinhado, talvez, mas não desagradavelmente, graças à sua silhueta esbelta e ereta, e também bastante arisco. Possivelmente algumas pessoas veriam orgulho nele; eu tenho com ele uma afinidade que me diz não ser nada disso; sei, por instinto, que a sua reserva vai desde uma aversão às de­monstrações ostensivas de sentimentos até as manifesta­ções mútuas de gentileza. Deve amar e odiar igualmente, em silêncio, e achar uma espécie de impertinência no fato de ser amado e odiado. Não, estou me precipitando, atri­buindo-lhe demasiadamente a minha própria maneira de ser. O Sr. Heathcliff talvez tenha razões inteiramente dife­rentes das minhas para não estender a mão ao fazer um novo conhecimento. Suspeito que o meu temperamento seja quase peculiar; a minha querida mãe costumava dizer que eu nunca teria um verdadeiro lar, e ainda no verão passado provei ser completamente indigno de o possuir.
Ao gozar um mês de bom tempo à beira-mar, conheci uma criatura fascinante: uma verdadeira deusa para os meus olhos, enquanto não reparou em mim. Nunca lhe con­fessei verbalmente o meu amor; mas, se é certo que os olhares falam, o mais completo idiota teria percebido que eu estava apaixonado. Por fim, ela o entendeu e lançou-me também um olhar — o mais doce dos olhares. E que foi que eu fiz? Confesso-o, envergonhado — recolhi-me a mim mesmo, qual um caramujo; a cada olhar dela, mais eu me encolhia, maior frieza aparentava; até que, final­mente, a pobre começou a duvidar dos seus próprios sen­tidos e, cheia de confusão pelo suposto engano, convenceu a mãe de que deviam partir. Graças a essa estranha mu­dança de atitude, ganhei a reputação de ser uma pessoa desumana; quão pouco a mereço, só eu o sei.
Tomei assento a uma das extremidades da lareira, em frente ao meu senhorio, e tentei preencher um intervalo de silêncio acariciando a cadela, que deixara a sua ninhada e se esgueirava por trás das minhas pernas, o focinho arreganhado e as brancas presas como que se preparando para morder. A minha carícia provocou um rosnar longo e gutural.
— É melhor deixar a cadela em paz — rosnou tam­bém o Sr. Heathcliff, evitando maiores demonstrações com um pontapé. — Ela não está acostumada a mimos... não a tratamos como um animal de estimação. — E, diri­gindo-se para uma porta lateral, gritou, uma vez mais: — Joseph!
Joseph respondeu qualquer coisa dos fundos da adega, mas não deu sinal de subir, de modo que o amo mergu­lhou ao encontro dele, deixando-me vis-à-vis com a terrí­vel cadela e um par de felpudos cães pastores, que com ela mantinham uma zelosa guarda sobre os meus movi­mentos. Não desejando entrar em contato com as suas presas, conservei-me quieto; mas, imaginando que eles por certo não entenderiam insultos implícitos, tive a triste idéia de me pôr a piscar e a fazer caretas para o trio, e não sei que contorção da minha fisionomia irritou a madame, que de repente se atirou sobre mim, furiosa. Repeli-a e apressei-me a interpor a mesa entre nós. Esse procedimento excitou toda a matilha: meia dúzia de demônios de quatro patas, de vários tamanhos e idades, saíram de diversos esconderijos e pularam para cima de mim. Senti os calca­nhares e as abas do casaco serem atacados; e, afastando os combatentes maiores da melhor maneira possível, com o atiçador, vi-me obrigado a pedir, em voz alta, que alguém da casa me ajudasse a restabelecer a paz.
O Sr. Heathcliff e o seu criado subiram a escada da adega com irritante calma; não creio que se movessem um segundo mais depressa do que de hábito, embora a sala fosse um verdadeiro pandemônio de gritos e latidos. Felizmente, alguém da cozinha apressou-se um pouco mais: uma robusta senhora, com o vestido arregaçado, braços nus e faces avermelhadas pelo fogo, correu para onde estávamos, brandindo uma frigideira; e tal uso fez dessa arma e da sua língua, que a tempestade amainou magicamente, e só ela ficou ali, ofegando como o mar após um vendaval, quando o seu patrão entrou em cena.
— Que diabo está acontecendo aqui? — perguntou ele, olhando-me de maneira que eu mal podia suportar, após tão inóspito tratamento.
— Que diabo, realmente! — resmunguei. — Uma vara de porcos danados não poderia ter piores instintos do que esses seus cães. É quase a mesma coisa que deixar um estranho com um bando de tigres!
— Eles não se metem com pessoas que não mexem em nada — observou ele, colocando a garrafa diante de mim e devolvendo a mesa ao seu lugar. — Os cães fazem bem em ser vigilantes. Aceita um copo de vinho?
— Não, muito obrigado.
— Não foi mordido, foi?
— Se tivesse sido, teria deixado o meu sinete no animal.
O rosto de Heathcliff abriu-se numa espécie de sor­riso.
— Ora, ora — disse —, o senhor está nervoso, Sr. Lockwood. Vamos, tome um copo de vinho. As visitas são de tal modo raras nesta casa, que eu e os meus cães, devo confessá-lo, mal sabemos como recebê-las. À sua saúde!
Curvei-me e brindei à saúde dele, começando a per­ceber que seria idiota ficar ofendido pelo mau procedi­mento de meia dúzia de cães; além disso, não queria pro­porcionar mais motivo para diversão, pois era isso o que estava acontecendo. Quanto a ele, provavelmente movido pela prudente lembrança de que era loucura ofender um bom inquilino, abandonou um pouco o lacônico estilo de economizar nos pronomes e nos verbos auxiliares e iniciou o que supunha ser um assunto de interesse para mim: uma dissertação sobre as vantagens e as desvantagens do meu novo lugar de retiro. Achei-o muito inteligente nos tópicos que tocamos; e, antes de me despedir, senti-me encorajado a dizer que voltaria amanhã. Evidentemente, ele não queria nova intrusão. Mesmo assim, irei. É espantoso como pareço sociável, se comparado com ele.

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