segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O Morro dos Ventos Uivantes, Cap XX

A fim de evitar que essa ameaça fosse cumprida, o Sr. Linton encarregou-me de levar o garoto, de manhã bem cedo, no pônei de Catherine e acrescentou: — Como não teremos mais influência sobre ele, você não deve dizer à minha filha para onde ele foi; ela não poderá, doravante, dar-se com ele e é melhor que ignore a sua proximidade, pois do contrário tenho a certeza de que ficaria ansiosa por ir ao Morro. Diga-lhe apenas que o pai dele mandou buscá-lo e que ele foi obrigado a nos deixar.
Linton relutou muito em sair da cama às cinco da manhã e ficou espantado ao saber que se deveria preparar para nova viagem; mas eu tentei dourar a pílula, dizendo-lhe que iria passar algum tempo com o pai, o Sr. Heath­cliff, o qual estava tão desejoso de vê-lo, que nem queria esperar que ele se refizesse da grande viagem.
— Meu pai! — exclamou o garoto, perplexo. — Mamãe nunca me disse que eu tinha pai. Onde é que ele vive? Preferia ficar com meu tio.
— Vive a pouca distância daqui — respondi —, atrás daqueles morros. Tão perto que você poderá vir a pé até aqui, quando ficar mais forte. E você deveria estar feliz por ir para casa e por conhecê-lo. Deve fazer o possível por amá-lo, como amava a sua mãe. . . e ele o amará também.
— Mas por que nunca ouvi falar dele? — perguntou Linton. — Por que é que ele e mamãe não viviam juntos como as outras pessoas?
— Ele tinha os seus negócios aqui no norte — res­pondi — e a saúde de sua mãe obrigava-a a viver no sul.
— Mas por que é que ela não me falava dele? — persistiu o menino. — Falava muito do meu tio e há muito tempo que o amo. Como é que eu vou amar o meu pai? Não o conheço!
— Ora, todas as crianças amam seus pais — falei. — Talvez sua mãe pensasse que, se falasse muito nele, você iria preferir a sua companhia à dela. Bem, temos que nos apressar. Um passeio a cavalo, numa manhã tão linda como esta, é muito melhor do que mais uma hora de sono.
Ela vai conosco? — quis ele saber. — A menina que eu vi ontem?
— Agora não — respondi.
— E o meu tio?
— Também não. Eu é que vou com você. Linton deixou-se cair outra vez na almofada.
— Sem o meu tio, não vou! — exclamou. — Não sei para onde é que você quer me levar.
Tentei convencê-lo de que não devia mostrar relu­tância em conhecer o pai, mas ele se negou obstinadamente a vestir-se e tive de chamar o meu amo para ajudar-me a tirá-lo da cama. O pobrezinho deixou-se, finalmente, per­suadir, após várias ilusórias promessas de que a sua ausên­cia seria curta, de que Cathy e o tio iriam visitá-lo e outras agradáveis e mentirosas perspectivas, que fui inventando e reiterando durante o caminho. O ar puro e perfumado, o sol brilhante e o passo dócil de Minny não tardaram a lhe aliviar o desânimo. Começou a fazer perguntas sobre a nova casa e os seus habitantes, com maior interesse e animação.
— O Morro dos Ventos Uivantes é um lugar tão agradável quanto a granja? — perguntou, voltando-se para olhar pela última vez o vale, de onde subia uma névoa leve, que logo formou uma nuvem fofa no azul do céu.
— Não é tão rodeado de árvores — respondi — e nem tão grande, mas pode-se ver toda a região à volta . . . tem uma vista linda. E o ar é mais saudável para você: mais fresco e seco. Talvez a princípio ache a casa velha e escura, embora seja a melhor das redondezas, depois da granja. E vai dar tantos passeios pela charneca! Hareton Earnshaw (o outro primo de Cathy e seu também, de certo modo) vai lhe mostrar os lugares mais bonitos. Você vai poder sentar-se ao ar livre e ler um livro, nos dias bons; e, de vez em quando, poderá dar um passeio com seu tio. Ele muitas vezes sobe até os morros.
— E meu pai, como é que ele é? — perguntou. — Jovem e bonito como o meu tio?
— É jovem como ele — respondi —, mas tem ca­belos e olhos negros e ar mais severo; é mais alto e mais forte. A princípio, talvez não lhe pareça tão meigo quanto seu tio, mas procure ser franco e cordial com ele, e, natu­ralmente, ele gostaria mais de você do que qualquer tio, pois você é seu filho.
— Olhos e cabelos pretos! — repetiu Linton. — Não posso imaginá-lo. Quer dizer que eu não sou parecido com ele, não é?
— Não muito — respondi. "Nem um pouco", pensei, olhando com pena para a pele branca, o aspecto frágil e os enormes e lânguidos olhos do meu companheiro — os olhos da mãe, só que, a menos que momentaneamente to­cados por uma sensibilidade mórbida, não possuíam sequer um vestígio do espírito dos dela.
— Que estranho ele nunca nos ter ido visitar! — murmurou. — Alguma vez me viu? Se viu, deve ter sido quando eu ainda era bebê. Não me lembro nada dele!
— Ora, menino — retruquei —, trezentas milhas é uma grande distância e dez anos parecem muito menos, para um adulto, dc que para uma criança. É provável que o Sr. Heathcliff tenha pensado em ir visitá-los, verão após verão, mas nunca tenha encontrado uma oportunidade; e agora é demasiado tarde. Não lhe faça perguntas sobre o assunto; só vai aborrecê-lo.
O rapazinho fez o restante da viagem absorto nos seus pensamentos, até que paramos diante da cancela do jar­dim. Tentei ler as reações no seu rosto. Olhou para a facha­da esculpida e para as gelosias baixas, para os arbustos desordenados e os abetos retorcidos com uma atenção so­lene e depois abanou a cabeça: via-se que desaprovava inteiramente o exterior da sua nova moradia, mas teve a sensatez de não se lamentar — talvez lá dentro houvesse compensações. Antes que ele desmontasse, adiantei-me e abri a porta. Eram seis e meia; a família acabara de tomar o desjejum e a empregada estava tirando a mesa. Joseph, de pé junto à cadeira do patrão, contava-lhe uma história relacionada com um cavalo manco. Hareton preparava-se para o trabalho nos campos.
— Olá, Nelly! — saudou o Sr. Heathcliff, assim que me viu. — Temia ter de descer o morro e ir eu próprio buscar o que me pertence. Você o trouxe, não foi? Veja­mos o que podemos fazer dele.
Levantou-se e dirigiu-se para a porta. Hareton e Jo­seph seguiram-no, boquiabertos de curiosidade, enquanto o pobre Linton olhava, assustado, para os três.
— Não tem dúvida — decretou Joseph, após uma grave inspeção. — Não tem dúvida de que ele não tem nadinha do patrão!
Após ter embaraçado o filho, olhando-o fixamente, Heathcliff soltou uma risada de desprezo.
— Deus, que beleza, que coisinha encantadora! — exclamou. — Aposto como ele foi criado a cremes e sopinhas, Nelly! Oh, com os diabos, é muito pior do que eu esperava. . . e Deus sabe que eu não estava nada entu­siasmado!
Disse a Linton, que tremia, para descer do pônei e entrar. Ele não compreendera o significado do que o pai dissera, nem que aquilo tivesse sido dirigido a ele; na verdade, não tinha sequer a certeza de que aquele desco­nhecido de rosto sarcástico fosse seu pai. Mas agarrou-se a mim com crescente agitação e, quando o Sr. Heathcliff, sentando-se, lhe disse para se aproximar, escondeu o rosto no meu ombro e desatou a chorar.
— Calma, calma! — falou Heathcliff, estendendo a mão e puxando-o rudemente para junto dele, agarrando-lhe depois a cabeça pelo queixo. — Nada de bobagens! Nós não o vamos comer, Linton. . . não é esse o seu nome? Você parece filho só da sua mãe. Onde está a minha marca, rapazinho?
Tirou o boné do filho e pôs-lhe para trás os grossos cachos louros, apalpou-lhe os braços finos e os dedos estreitos. Durante esse exame, Linton parou de chorar e ergueu os seus grandes olhos azuis para inspecionar o examinador.
— Você me conhece? — perguntou Heathcliff, após ter constatado que todo ele era fraco e franzino.
— Não — respondeu Linton, com olhar medroso.
— Mas já ouviu falar de mim, não foi?
— Não — respondeu novamente o rapaz.
— Não! Que vergonha a sua mãe nunca lhe ter fala­do do pai! Fique sabendo que você é meu filho; e que sua mãe não prestava, já que nunca lhe falou do pai. Não precisa franzir a testa nem ficar vermelho. . . embora já seja alguma coisa ver que você não tem sangue branco. Seja um bom rapazinho e terá tudo de mim. Nelly, se você está cansada, pode se sentar; se não está, vá embora. Ima­gino que irá contar o que vir e ouvir, lá na granja; e não podemos falar à vontade com você aqui.
— Bem — retruquei —, espero que trate bem o garo­to, Sr. Heathcliff, ou não ficará muito tempo com ele; e ele é a única família que o senhor tem no mundo, lembre-se disso.
— Vou tratá-lo muito bem, não precisa ter medo — falou ele, rindo. — Só que ninguém mais deve se preocupar com ele: quero monopolizar todo o seu afeto. Para come­çar, Joseph, traga algo para o rapazinho comer. Hareton, seu vadio, já para o trabalho! Sim, Nelly — acrescentou, assim que os outros saíram —, o meu filho é herdeiro da propriedade onde você mora e eu não gostaria de que ele morresse enquanto não tivesse a certeza de ser seu suces­sor. Além do mais, ele é meu filho e eu sonho com o triunfo de ver o meu filho senhor das propriedades deles, pagando aos filhos deles para cultivarem as terras do seu pai. Esse é o único motivo capaz de me fazer suportar o garoto: desprezo-o pelo que ele é e odeio-o pelas recor­dações que ele me traz! Mas essa razão é suficiente: será tratado tão bem quanto o seu patrão trata a filha. Já tenho um quarto lá em cima preparado para ele, mobiliado num estilo agradável; contratei um professor para vir três vezes por semana, de uma distância de vinte milhas, a fim de lhe ensinar o que ele quiser aprender. Dei ordem a Hareton para lhe obedecer; arranjei tudo de modo a fazer com que ele se sinta acima dos que o rodeiam, um verdadeiro senhor. Lamento, contudo, que ele pouco mereça tanto trabalho: se algo eu desejava deste mundo era que ele fosse um digno objeto do meu orgulho; estou desapontado ao vê-lo tão mimado e chorão!
Enquanto ele falava, Joseph voltava com uma tigela de mingau de aveia, que colocou diante de Linton. O rapaz olhou para a papa com ar de aversão e declarou que não era capaz de comê-la. Reparei que o velho criado também desprezava o garoto, embora não ousasse demonstrá-lo, pois Heathcliff exigia que os serviçais o respeitassem.
— Não é capaz? — repetiu o velho, olhando para Linton e abaixando a voz, com medo de ser ouvido. — Mas o menino Hareton nunca comia outra coisa quando era garoto; e o que era bom pra ele também é bom pra você, eu acho!
Não vou comer isso! — respondeu Linton, irri­tado. — Pode levar a tigela de volta.
Joseph pegou no mingau, indignado, e colocou-o diante dos nossos olhos.
— Tem alguma coisa nesse mingau? — perguntou.
— O que é que havia de ter? — retrucou Heathcliff.
— Ora — respondeu Joseph —, esse menino fino aí diz que não é capaz de comer ele. Também, não é para espantar! A mãe dele era igualzinha.
— Não mencione a mãe dele diante de mim — orde­nou Heathcliff, furioso. — Traga alguma coisa que ele possa comer e nada mais. Que é que ele costuma tomar, Nelly?
Sugeri chá com leite e a governanta logo recebeu instruções para o preparar. "Afinal", refleti, "o egoísmo do pai talvez contribua para que o filho seja bem tratado. Percebe que ele é de constituição delicada e que há neces­sidade de lhe dar um tratamento especial. Isso será um consolo para o Sr. Edgar."
Não tendo mais desculpa para permanecer ali, saí sem ser notada, enquanto Linton repelia timidamente as demonstrações de amizade de um cão pastor. Mas ele esta­va demasiado alerta para poder ser enganado; eu estava fechando a porta, quando ouvi um grito frenético e repetido:
— Não vá embora! Não quero ficar aqui! Não quero ficar aqui!
Mas logo passaram o ferrolho, com medo de que ele tentasse sair. Montei em Minny e parti a trote, terminando assim a minha breve custódia.

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