segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O Morro dos Ventos Uivantes, Cap XlX

Uma carta tarjada de negro anunciou o dia em que o patrão chegaria. Isabella tinha morrido e ele me escre­veu, dizendo-me que providenciasse roupas de luto para a filha e arranjasse um quarto e outras acomodações para o sobrinho. Catherine ficou louca de alegria ante a idéia de receber de volta o pai; e pôs-se a imaginar, entusiasmada, as inúmeras e maravilhosas qualidades do seu "verdadeiro" primo. O dia da tão esperada chegada veio, por fim. Desde manhã cedo, ela estivera arrumando as suas coisinhas; e, metida no seu novo vestido preto — pobrezinha! a morte da tia não lhe causara muita dor —, obrigara-me, à força de tanto insistir, a descer com ela ao parque, para espe­rá-los.
— Linton é apenas seis meses mais novo do que eu — disse, enquanto caminhávamos sob a sombra das gran­des árvores. — Que bom vai ser brincar com ele. Tia Isabella mandou a papai um lindo cacho do cabelo dele, mais claro do que o meu: mais louro mas igualmente fino. Guardei-o numa caixinha de vidro e muitas vezes pensei como seria maravilhoso conhecer o seu dono. Estou tão feliz. . . e o meu paizinho, o meu querido pai! Venha, Ellen, vamos correr! Corra!
Correu e voltou e correu de novo muitas vezes, antes que os meus passos adultos alcançassem a porteira, e de­pois sentou-se na grama, à beira do caminho, e fez o possível por esperar pacientemente; mas era impossível, ela não podia ficar um minuto sossegada.
— Como estão demorando! — exclamou. — Estou vendo uma poeira na estrada. . . serão eles? Não! Quando será que eles chegam? Não podemos adiantar-nos um pou­co?. . . só meia milha, Ellen, só meia milha! Deixe só até aquele bosquezinho, ali na curva!
Neguei-me peremptoriamente. Por fim, a sua impa­ciência terminou: a carruagem surgiu à vista. Cathy gritou de alegria e estendeu os braços, tão logo distinguiu o rosto do pai olhando pela janela. Ele desceu, quase tão ansioso de abraçá-la quanto ela, e um intervalo considerável se passou, antes que pudessem deixar de pensar em si próprios. Enquanto trocavam carinhos, olhei para dentro, à procura de Linton. Estava adormecido a um canto, embrulhado num capote forrado com pele, como se fosse inverno. Era um rapazinho pálido, delicado, pouco varonil, que podia passar por irmão mais novo do meu patrão, tão grande era a semelhança; mas havia nele um ar doentio e capri­choso que Edgar Linton nunca tivera. Percebeu que eu estava olhando para o sobrinho e, depois de me apertar a mão, disse-me que fechasse a porta da carruagem e não o acordasse, pois a viagem fatigara-o muito. Cathy gostaria de ter dado uma olhadela, mas o pai chamou-a e ambos subiram juntos o parque, enquanto eu me apressava a ir preparar os criados.
— Escute, minha querida — disse o Sr. Linton, diri­gindo-se à filha, ao pararem junto aos degraus da frente —, seu primo não é tão forte nem tão alegre como você, pois perdeu a mãe, lembra-se? faz muito pouco tempo; portanto, não espere que ele comece logo a correr e a brincar com você. E não o importune falando demais: pelo menos esta noite, deixe-o sossegado, está bem?
— Está bem, papai — respondeu Catherine. — Mas eu quero vê-lo; ele nem pôs a cabeça de fora.
A carruagem parou diante da casa e, como Linton acordasse, o tio pegou nele e depositou-o no chão.
— Esta é sua prima Cathy, Linton — disse, unindo as mãos de ambos. — Ela já lhe tem muito carinho; por favor, não a apoquente chorando esta noite. Você tem de fazer força para mostrar-se alegre; a viagem terminou e você não tem mais nada para fazer senão descansar e se distrair como quiser.
— Deixe-me ir para a cama, então — replicou o garoto, afastando-se do abraço de Catherine e levando as mãos aos olhos, como para enxugar lágrimas incipientes.
— Vamos, vamos — sussurrei, fazendo-o entrar. — Você vai acabar fazendo-a chorar também. . . veja como ela está triste por sua causa!
Não sei se ela estava mesmo triste por ele, mas sei que o rosto dela ficou tão triste quanto o dele e voltou para junto do pai. Os três entraram e subiram para a biblioteca, onde o chá já estava servido. Tratei de remover o gorro e o capote de Linton e coloquei-o numa cadeira, à mesa; mas, mal se sentou, ele começou de novo a chorar. Meu amo perguntou qual a razão.
— Não me posso sentar numa cadeira — soluçou o garoto.
— Então sente-se no sofá, que Ellen lhe servirá o chá — respondeu o tio, pacientemente.
Vi logo que ele devia ter feito uma viagem horrível, com aquele rapazinho choramingas e caprichoso. Linton arrastou-se para fora da mesa e deitou-se no sofá. Cathy levou um banquinho e a xícara para junto dele. A princí­pio ficou sentada em silêncio, mas isso não durou muito: resolvera transformar o primo no objeto dos seus mimos e começou a acariciar-lhe os cabelos, a beijar-lhe as faces e a oferecer-lhe colherinhas do seu chá, como se ele fosse um bebê. Aquilo agradou a Linton, que pouco mais era, mentalmente, do que um nenê: enxugou os olhos e esboçou um sorriso.
— Ele vai se dar muito bem — disse-me o patrão, após vê-los. — Muito bem, até, se pudermos ficar com ele, Ellen. A companhia de uma criança da sua idade vai lhe instilar um novo ânimo e isso lhe dará novas forças.
"Sim, se pudermos ficar com ele!", pensei com os meus botões, pressentindo que poucas esperanças se po­deriam ter disso. Mas, pensei, como iria aquele garoto fraco e mimado viver no Morro dos Ventos Uivantes? Entre o pai e Hareton, que educação iria ele receber! Nos­sas dúvidas tiveram logo um fim — antes, mesmo, do que esperávamos. Eu tinha acabado de levar as crianças para cima, depois do chá, e de esperar que Linton adormecesse — pois ele não me deixou sair enquanto acordado. Des­cera e estava acendendo um castiçal para o Sr. Edgar levar para o quarto, quando uma criada veio me dizer que Jo­seph, o criado do Sr. Heathcliff, estava à porta e desejava falar com o patrão.
— Vou perguntar primeiro o que ele quer — disse eu, tomada de grande agitação. — Esta não é hora de vir incomodar as pessoas, principalmente sabendo que aca­bam de chegar de uma longa viagem. Não creio que o patrão possa recebê-lo.
Joseph entrara pela cozinha e apresentou-se no vestíbulo, onde eu estava. Vestia o seu traje domingueiro, combinando-o com um rosto beato e severo, e, segurando numa mão o chapéu e na outra a bengala, pôs-se a limpar os pés no capacho.
— Boa noite, Joseph — cumprimentei, friamente. — Que o traz até aqui a estas horas?
— É com o patrão que eu preciso falar — respondeu ele, desdenhosamente.
— O Sr. Linton está se preparando para se deitar; a menos que você tenha algo de especial a lhe dizer, tenho a certeza de que não o receberá a estas horas. Acho melhor você se sentar aí e dar-me o recado.
— Onde que fica o quarto dele? — teimou o velho, olhando para a fila de portas fechadas.
Compreendi que ele se recusava a aceitar a minha mediação e, muito a contragosto, subi à biblioteca e anun­ciei a inconveniente visita, sugerindo que o Sr. Linton a adiasse para o dia seguinte. Mas o Sr. Linton não teve tem­po para aquiescer, pois Joseph subiu logo atrás de mim e, irrompendo na biblioteca, plantou-se no outro extremo da secretária, os punhos cerrados sobre o castão da bengala, e declarou, num tom de voz elevado, como se antecipasse oposição:
— Heathcliff falou pra eu vir apanhar o garoto e não vou voltar sem ele.
Edgar Linton ficou um momento calado, com uma expressão de tristeza no rosto: tinha pena da criança por ela própria e, ao recordar as esperanças e os temores de Isabella, seu ansioso desejo de que o filho fosse criado por ele, com todo o cuidado e carinho, sofria terrivelmente ante a idéia de entregá-lo ao pai, e procurava um pretexto para evitá-lo. Mas nenhum plano se lhe afigurava: a sim­ples indicação de que desejava ficar com ele tornaria a intimação mais peremptória. Apenas não iria acordá-lo.
— Diga ao Sr. Heathcliff — respondeu calmamente
que seu filho irá amanhã para o Morro. Agora está
deitado e demasiado cansado para fazer essa viagem. Tam­bém lhe pode dizer que a mãe desejaria que ele ficasse sob a minha guarda e que, presentemente, a saúde dele é muito precária.
— Ora! — exclamou Joseph, batendo com a ben­gala no chão e assumindo um ar autoritário. — Ora! Isso não quer dizer nada. Heathcliff não está ligando para o que a mãe queria, nem para ninguém. Ele quer o garoto e eu vou levar ele!
— Esta noite não vai, não! — respondeu Linton. — Desça imediatamente e repita para o seu amo o que eu lhe disse. Ellen, acompanhe-o.
E, pegando no indignado velho por um braço, livrou-se da presença dele e fechou a porta.
— Está bem! — gritou Joseph, enquanto descia a escada. — Amanhã Heathcliff vai vir ele mesmo e só quero ver se vão ter coragem de expulsar ele!

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