segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O Morro dos Ventos Uivantes, Cap XVlll

Os doze anos — continuou a Sra. Dean — que se seguiram a esse triste período foram os mais felizes da minha vida: minhas maiores preocupações foram causa­das pelas doencinhas da nossa menina, doencinhas de crianças, sejam elas ricas ou pobres. Quanto ao resto, após os primeiros seis meses, ela foi crescendo como uma plantinha e, antes que a urze florisse uma segunda vez sobre o pó da Sra. Linton, já sabia andar e falar à sua maneira. Era a coisinha mais bonita que Deus poderia ter mandado para trazer alegria a uma casa desolada: uma beleza au­têntica, com os grandes olhos escuros dos Earnshaw, mas com a pele clara, o cabelo louro e as feições delicadas dos Linton. Tinha um temperamento apaixonado, mas não ás­pero, ajudado por um coração sensível e afetuoso. A sua capacidade de se dedicar intensamente fazia-me lembrar a mãe; entretanto não se parecia a ela, pois podia ser suave e meiga como uma pomba e tinha uma voz macia e uma expressão pensativa. Quando se zangava, nunca se enfu­recia; seu amor jamais era dominador, e sim terno e pro­fundo. Contudo, a par dessas qualidades, também tinha os seus defeitos. Um deles era uma inclinação para o atrevi­mento; outro, uma certa perversidade, que as crianças mi­madas sempre adquirem, sejam de temperamento fácil ou difícil. Se, por acaso, um criado a contrariava, ela amea­çava logo: — Vou dizer ao papai! — E quando este a censurava, mesmo que apenas com um olhar, parecia até o fim do mundo: acho que ele nunca lhe disse uma palavra mais dura. Tomou a educação e a instrução da filha intei­ramente a seu cargo, fazendo disso uma distração. Feliz­mente, a curiosidade e um intelecto bem-dotado garantiam à menina um aprendizado rápido, que muito gratificava e honrava o pai.
Até chegar aos treze anos, ela nunca saíra sozinha dos limites do parque. Em raras ocasiões, o Sr. Linton levava-a com ele até cerca de uma milha fora da granja, mas não a confiava a ninguém. Gimmerton, aos ouvidos dela, era um nome que nada evocava; e a capela, o único lugar do qual se aproximara ou onde entrara, à exceção da sua própria casa. O Morro dos Ventos Uivantes e o Sr. Heathcliff não existiam, para ela: era uma perfeita reclusa, e parecia com­pletamente satisfeita com isso. Às vezes, porém, ao olhar da janela do seu quarto, perguntava:
— Ellen, quando é que eu vou poder subir ao alto daqueles morros? Que será que há do outro lado. . . O mar?
— Não, Srta. Cathy — respondia eu. — São outros morros, semelhantes a esses.
— E como são aquelas rochas douradas, quando a gente fica debaixo delas? — perguntou certa vez.
A abrupta inclinação de Peniston Crag era o que mais a atraía; principalmente quando o sol poente brilhava nas suas alturas e todo o resto da paisagem ficava na sombra. Expliquei-lhe que eram rochedos nus, com escassa terra nos topos, que apenas permitia o crescimento de algumas árvores raquíticas.
— Por que é que continuam brilhantes muito depois de já estar escuro aqui? — insistiu ela.
— Porque estão a uma altura muito maior do que a nossa — repliquei. — Você não poderia subir lá em cima, os rochedos são demasiado altos e íngremes. No inverno, a neve chega lá muito antes de cair aqui; e, bem no meio do verão, descobri neve debaixo daquele buraco negro, na vertente leste!
— Oh, quer dizer que você já subiu lá! — exclamou ela, entusiasmada. — Então eu também poderei subir quando for mulher. Papai já foi lá, Ellen?
— Seu pai lhe dirá, menina — respondi, apressada­mente —, que não vale a pena ir até lá. As charnecas por onde você passeia com ele são muito mais agradáveis; e o Parque Thrushcross é o mais belo lugar do mundo.
— Mas o parque eu conheço, e não conheço aqueles penhascos — murmurou consigo mesma. — Como gosta­ria de subir ao ponto mais alto e olhar em volta! Meu pônei Minny ainda me levará até lá!
O fato de uma das empregadas mencionar a Caverna das Fadas fez com que ela só pensasse em realizar esse projeto: passou a atormentar o Sr. Linton para que a deixasse ir até lá e ele lhe prometeu que iria quando fosse maior. Mas Catherine media a sua idade por meses e a toda hora perguntava: — Então, já tenho idade para subir a Peniston Crag? — A estrada que levava até lá passava perto do Morro dos Ventos Uivantes. Edgar não tinha co­ragem para aproximar-se e por isso a resposta era sempre a mesma: — Ainda não, meu amor; ainda não.
Eu disse que a Sra. Heathcliff viveu mais de doze anos após ter deixado o marido. Sua família era toda de constituição delicada: nem ela nem Edgar tinham a saúde o a resistência que geralmente se encontram nessa região. Não sei ao certo do que foi que ela morreu, mas acho que ambos foram vítimas da mesma doença, uma espécie de febre, a princípio lenta, mas incurável e devoradora. Escre­veu para informar o irmão do provável fim de uma doença que já durava havia quatro meses e pediu-lhe que a fosse ver, se possível, pois tinha muito o que tratar e desejava despedir-se dele e confiar-lhe Linton. Sua esperança era que Linton pudesse viver com ele, como vivera com ela, porquanto achava que o pai não desejava assumir o encargo de sustentá-lo ou educá-lo. Meu patrão não hesitou em satifazer-lhe o pedido: embora relutasse em sair de casa, voou ao encontro dela, entregando Catherine à minha especial vigilância, com repetidas ordens de que, na sua ausência, não saísse para além do parque, mesmo na minha companhia — pois não lhe passava sequer pela cabeça que ela pudesse sair sozinha.
Esteve ausente durante três semanas. Os dois primei­ros dias, a minha menina passou-os sentada a um canto da biblioteca, demasiado triste para ler ou brincar. Nesse es­tado de espírito, eu pouco tinha com que me preocupar; mas acontece que ele foi seguido por um intervalo de im­paciência, em que ela não podia parar quieta; e, como eu então estivesse por demais ocupada e já demasiado velha para correr de um lado para outro atrás dela, tratei de descobrir um sistema pelo qual pudesse distrair-se. Come­cei a mandá-la excursionar pela granja — ora a pé, ora montada num pônei — e depois ouvia pacientemente, quando ela voltava, todas as suas aventuras, reais ou ima­ginárias.
O verão estava no auge e ela gostava tanto daqueles passeios solitários, que muitas vezes ficava fora desde a manhã até a hora do chá; e os serões eram passados con­tando as suas histórias fantasiosas. Eu não temia que ela ultrapassasse os limites da granja porque as porteiras esta­vam geralmente trancadas e, mesmo que estivessem abertas, eu pensava que dificilmente ela se aventuraria a sair sozi­nha. Infelizmente, a minha confiança provou ser infun­dada. Uma bela manhã, às oito horas, Catherine infor­mou-me de que naquele dia ela era um mercador árabe, que ia atravessar o deserto com a sua caravana e que, por isso, eu lhe devia dar uma grande provisão de víveres, não só para ela como para os seus animais: um cavalo e três camelos, representados por um grande galgo e um par de perdigueiros. Juntei uma porção de comida num cesto, que pendurei na sela, e ela montou, alegre como uma fada, protegida do forte sol de julho por um chapéu de aba larga e véu de gaze, partindo a trote com um riso feliz e troçando dos meus conselhos de que evitasse galopar e voltasse cedo. À hora do chá, nada de ela voltar. Apenas um via­jante, o galgo, já velho e amante dos confortos, regressou; nem Cathy, nem o pônei, nem os dois perdigueiros eram visíveis fosse por onde fosse: mandei criados à procura deles, nesta e naquela direção, até que por fim eu própria fui em sua busca. Havia um trabalhador consertando uma cerca à volta de uma plantação, nos limites da granja. Per­guntei-lhe se tinha visto a pequena Catherine.
— Vi ela de manhã — respondeu ele. — Pediu para eu cortar um galho de aveleira e depois pulou com o pônei dela por cima daquela sebe, ali, onde que ela é mais baixa, e foi embora no galope.
O senhor pode calcular o que senti ao ouvir aquilo. Imaginei logo que ela tivesse rumado para Peniston Crag. — Que há de ser dela? — exclamei, passando por uma abertura na cerca que o homem estava consertando e dirigindo-me para a estrada principal. Caminhei como se esti­vesse querendo ganhar uma aposta, milha após milha, até chegar a uma curva de onde se via o Morro dos Ventos Uivantes; mas nada de Catherine. Peniston Crag fica a cerca de milha e meia da propriedade do Sr. Heathcliff, ou seja, a quatro milhas da granja, de modo que comecei a temer que a noite caísse antes que eu lá chegasse. "E se ela escorregou ao tentar escalá-lo?", pensei. "Pode ter morrido ou quebrado alguma coisa!" A minha apreensão era tremenda; por isso, foi com grande alívio que vi, ao passar pela casa da fazenda, Charlie, o mais atirado dos perdigueiros, deitado debaixo de uma janela, a cabeça inchada e a orelha sangrando. Abri a porteira e corri para a porta da casa, batendo freneticamente para que me abris­sem. Atendeu uma mulher que eu conhecia e que antes morava em Gimmerton: desde a morte do Sr. Earnshaw trabalhava no Morro como criada.
— Ah! — disse ela. — Você vem à procura da sua patroazinha! Não se preocupe, ela está aqui. Ainda bem que não é o patrão!
— Quer dizer que ele não está em casa? — perguntei, ofegante da caminhada e de medo.
— Não, não — respondeu ela. — Tanto ele quanto Joseph saíram e acho que não vão voltar tão cedo. Entre e descanse um pouco.
Entrei e vi a minha ovelhinha tresmalhada sentada à lareira, numa cadeirinha de balanço que fora da mãe, em criança. Tirara o chapéu e parecia perfeitamente à vonta­de, rindo e falando, na maior das animações, com Hareton — agora, um rapagão de dezoito anos —, o qual olhava para ela com grande curiosidade e espanto, pois compreen­dia muito pouco da sucessão de perguntas e comentários que ela ia desfiando.
— Muito bem, menina! — exclamei, escondendo a minha alegria por trás de uma cara zangada. — Esta é a última vez que você sai a cavalo, até que seu pai volte. Nunca mais confiarei em você, menina desobediente!
— Ora, Ellen! — disse ela, alegremente, correndo para junto de mim. — Esta noite vou ter muita coisa para lhe contar. Você já esteve aqui alguma vez?
— Ponha o seu chapéu e vamos já para casa — res­pondi. — Estou muito triste com você. Agora não adianta fazer beicinho e chorar: isso não compensará o trabalho que tive procurando-a por todos os lados. Pensar que o Sr. Linton me encarregou de não deixar você sair. . . e você me foge assim! Isso mostra que é uma menina matreira, em quem não se pode confiar.
— Que foi que eu fiz? — soluçou ela. — Papai não me proibiu nada; ele não se vai zangar comigo, Ellen . . . nunca ralha comigo como você!
— Vamos, vamos! — repeti. — Deixe que eu amarro o laço. Agora, pare com isso! Que vergonha! Já com treze anos e parecendo um bebê!
Essa última exclamação foi causada pelo fato de ela tirar novamente o chapéu e recuar para junto da chaminé, como se quisesse fugir-me.
— Não ralhe assim com a menina, Sra. Dean — disse a empregada. — Nós é que a fizemos entrar: queria voltar para casa, com medo de que a senhora ficasse aflita. Hare­ton ofereceu-se para ir com ela e eu achei que ele devia fazê-lo: a estrada é perigosa por esses morros acima.
Durante a conversa, Hareton ficou de mãos nos bol­sos, demasiado encabulado para falar, embora não pare­cesse gostar da minha intromissão.
— Quanto tempo vou ter que esperar? — continuei, ignorando a interferência da mulher. — Daqui a dez mi­nutos, já vai ser noite. Onde está o pônei, Cathy? E onde está Phoenix? Se você não se apressar, deixo-a aqui, de modo que faça como quiser.
— O pônei está no terreiro — respondeu ela — e Phoenix está aqui. Foi mordido. . . Charlie também. Eu ia contar-lhe tudo, mas você está de mau humor e não merece ouvir nada.
Peguei no chapéu dela e aproximei-me, para recolo­cá-lo; mas, percebendo que a gente da casa estava do lado dela, Cathy começou a correr à volta da sala; e, vendo-me atrás dela, esgueirou-se como um camundongo por baixo e para trás dos móveis, tornando ridícula a minha perse­guição. Hareton e a mulher riram e ela se juntou a eles, tornando-se ainda mais impertinente, até que eu gritei, irritadíssima:
— Cathy, se você soubesse de quem é esta casa, tra­taria de sair logo.
— É do seu pai, não é? — perguntou ela, voltando-se para Hareton.
— Não — respondeu ele, pondo os olhos no chão e enrubescendo.
— De quem é, então. . . do seu patrão? — voltou
ela.
Ele ficou ainda mais vermelho, resmungou uma praga e virou-se de costas.
— Quem é o patrão dele? — continuou a indiscreta garota, dirigindo-se a mim. — Falou em "nossa casa" e em "nós". Pensei que fosse o filho do proprietário. E não me disse "senhorita". Devia ter dito, não é, já que é um criado?
Hareton ficou negro de raiva, ao ouvi-la falar assim. Sacudi silenciosamente a menina e consegui, finalmente, prepará-la para partir.
— Vá buscar o meu pônei — disse ela, dando ordens ao seu desconhecido parente, como se ele fosse um dos cavalariços da granja. — E pode vir comigo. Quero ver onde é que aparece o caçador de duendes, na charneca, e ouvir você falar das "fadinhas", como você diz. Mas apres­se-se! Vá buscar o meu pônei, já disse!
— Raios te partam, se eu banco o teu criado! — grunhiu o rapaz.
— Raios o quê? — perguntou Catherine, espantada.
— Te partam. . . sua bruxa! — respondeu ele.
— Está vendo, Cathy? Está vendo em que companhia você se foi meter? — falei. — Linda maneira de falar com uma senhorita! Por favor, não discuta com ele. Vamos buscar Minny e voltar para casa.
— Mas, Ellen — exclamou ela, encarando-me espantadíssima —, como é que ele ousa falar-me desse jeito? Você não acha que ele tem de me obedecer? Criatura horrorosa, vou contar a meu pai o que você falou.
Hareton não pareceu assustado com a ameaça e ela pôs-se a chorar de indignação. — Traga-me o pônei — ordenou, voltando-se para a mulher — e solte imediata­mente o cachorro.
— Calma, menina — respondeu a criada. — Nada se perde com boas maneiras. Embora o Sr. Hareton não seja filho do patrão, ele é seu primo; e eu não sou sua empregada.
Ele, meu primo! — exclamou Cathy, com uma risada de desprezo.
— É, juro — retrucou a mulher.
— Oh, Ellen, não os deixe dizer essas coisas — im­plorou Cathy, agitada. — Papai foi buscar o meu primo em Londres: meu primo é um rapaz educado. Esse aí, meu. . . — o choro impediu-a de continuar, tal a sua consternação ante a simples idéia de ser parente de uma criatura daquelas.
— Calma! — sussurrei. — As pessoas podem ter muitos primos e de todos os tipos, sem que isso as preju­dique; o que não precisam é dar-se com eles se forem desagradáveis e mal-educados.
— Ele não pode ser. . . ele não é meu primo, Ellen! — insistiu ela, atirando-se nos meus braços, como que a buscar refúgio.
Fiquei muito aborrecida com ela e com a criada por terem ambas feito aquelas revelações indiscretas, pois não tinha dúvida de que a próxima chegada de Linton seria comunicada ao Sr. Heathcliff pela empregada, e de que a primeira coisa que Catherine faria, quando o seu pai voltasse, seria pedir-lhe uma explicação quanto à afirma­ção de que aquele rapaz tão malcriado era seu parente. Recuperando-se do seu desgosto em ter sido tomado por um criado, Hareton parecia comovido pelo choro dela; e, após ter trazido o pônei, foi ao canil buscar um cachorrinho terrier e colocou-o nas mãos dela, pedindo-lhe que parasse de chorar, pois não devia ligar para as suas pala­vras. Cathy olhou para ele com um misto de espanto e horror e recomeçou a chorar.
A custo reprimi um sorriso ao ver a antipatia suscitada pelo pobre rapaz, que era um jovem atlético, bonito, alto e saudável, mas metido em roupas adequadas às suas ocupações diárias de trabalho na fazenda e caçadas aos coelhos na charneca. Apesar disso, achei que podia detec­tar, na sua fisionomia, melhores qualidades mentais do que seu pai jamais possuíra. Boas qualidades perdidas em meio a um matagal de ervas daninhas, cuja exuberância ultra­passava de muito o seu desordenado crescimento; prova, contudo, de um bom solo, que bem poderia produzir, em circunstâncias favoráveis, colheitas invejáveis. O Sr. Heath­cliff, creio eu, não o tinha tratado fisicamente mal, graças à destemida natureza do rapaz, que não suscitava esse tipo de opressão; não tinha nada da tímida suscetibilidade que, no juízo de Heathcliff, seria de molde a provocar-lhe um mau tratamento. Aparentemente, devotara a sua malevolência a embrutecê-lo: Hareton nunca aprendera a ler ou a escrever; nunca fora censurado por nenhum hábito que não aborrecesse o seu guardião; nunca lhe haviam ensinado o que era a virtude, nem o haviam prevenido contra o vício. E, pelo que ouvia dizer, Joseph contribuía em muito para essa deterioração, mediante uma parcialidade estú­pida, que o levara a lisonjear e mimar o rapaz, quando garoto, só por ser o chefe da velha família do Morro. E, da mesma maneira com que acusava Catherine Earnshaw e Heathcliff, em criança, de acabarem com a paciência do seu amo e o levarem a procurar consolo na bebida, pre­sentemente punha toda a culpa dos defeitos de Hareton no usurpador da sua propriedade. Quando o rapaz prague­java, ele não o corrigia, como não o censurava por pior que ele se comportasse. Parecia tirar uma estranha satis­fação desse procedimento. Dizia que nada mais havia a fazer, que a alma dele estava perdida, mas acrescentava que Heathcliff teria de pagar por isso; e esse pensamento parecia dar-lhe um imenso consolo. Joseph instilara no rapaz o orgulho do seu nome, da sua ascendência; teria, se não fosse tão covarde, alimentado o ódio entre ele e o atual dono do Morro; mas o seu medo do proprietário chegava quase a ser supersticioso e ele limitava os seus sentimentos a insinuações resmungadas e ameaças priva­das. Não pretendo conhecer intimamente o modo de vida nesse tempo reinante na casa do Morro: falo apenas por ouvir dizer. A gente do povoado afirmava que o Sr. Heath­cliff era um senhorio duro e cruel para os seus rendeiros; mas a casa, por dentro, retomara o antigo ar de conforto, sob a direção das criadas, e as terríveis cenas, comuns no tempo de Hindley, já não se repetiam entre as suas pare­des. O amo era demasiado sombrio para procurar a com­panhia de gente, fosse ela boa ou má; e continua a sê-lo. Mas não estou avançando na minha história. A me­nina rejeitou a oferenda de paz do terrier e pediu que lhe trouxessem os seus cães, Charlie e Phoenix. Os dois vieram mancando e de cabeças pendentes, e pusemo-nos a cami­nho da granja, nós e eles cabisbaixos. Não consegui fazer com que Cathy me contasse como passara o dia, exceto que, conforme eu imaginara, a meta da sua peregrinação fora Peniston Crag, e que chegara sem problemas ao por­tão da casa principal, justamente quando Hareton estava saindo, acompanhado de alguns cães, que tinham atacado os dois cachorros. O fato de terem de separar os respectivos animais fora como que uma apresentação. Catherine disse­ra a Hareton quem era e para onde ia, pedindo-lhe que lhe mostrasse o caminho e, finalmente, fazendo com que ele a acompanhasse. Desvendara-lhe os mistérios da Caverna das Fadas e de outros vinte lugares mágicos. Mas, tendo eu caído em desgraça, ela não me descreveu as coisas inte­ressantes que vira. Pude concluir, porém, que o seu guia fora muito apreciado até ela lhe ter ferido o orgulho ao tratá-lo como um criado — e a criada ter ferido o orgulho dela ao dizer que eram primos. Depois, o linguajar que ele usara chocara-a horrivelmente; ela, que na granja era sempre chamada de "amor", "querida", "princesa" e "anjo", ser insultada daquela maneira por um desconheci­do! Não compreendia aquilo e tive um trabalho enorme em fazer com que ela prometesse nada contar ao pai. Expli­quei-lhe que ele não queria que nos déssemos com a gente do Morro e que ficaria muito zangado se soubesse que ela tinha estado lá; mas principalmente frisei que, se lhe reve­lasse a minha negligência, ele talvez me despedisse; e Cathy não podia sequer pensar nisso: jurou nada dizer e cumpriu a palavra, por minha causa. No fundo, ela era uma menina muito amorosa.

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