segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O Morro dos Ventos Uivantes, Cap XXll

O verão chegou ao fim, dando lugar ao princípio do outono, mas a colheita estava atrasada aquele ano, e alguns dos nossos campos ainda tinham gente trabalhando. O Sr. Linton e sua filha iam ver o trabalho e muitas vezes fica­vam até a noitinha. Como o tempo estivesse frio e úmido, o meu amo apanhou um forte resfriado, que lhe atacou os pulmões, obrigando-o a ficar todo o inverno confinado ao seu quarto, quase sem sair.
A pobre Cathy, desde o término do seu pequeno ro­mance, perdera muito da sua alegria e boa disposição, e seu pai insistia para que ela lesse menos e fizesse mais exercício. Já não tinha a companhia dele e eu achava ser meu dever substituí-lo, no que fosse possível, com a minha
— substituição pouco satisfatória, pois só podia tirar duas ou três horas da minhas várias ocupações diárias para acompanhá-la, e a minha companhia era bem menos apre­ciada do que a dele.
Numa tarde de outubro ou do começo de novembro
— uma tarde fresca e úmida, em que a grama e os cami­nhos se cobriam de folhas secas e molhadas e o céu azul e frio estava semi-escondido pelas nuvens: enormes nuvens escuras, correndo rapidamente de oeste e prenunciando chuvas abundantes — pedi à minha jovem ama que desis­tisse de sair, pois estava certa de que ia chover. Ela recusou, forçando-me a vestir uma capa e a pegar no meu guarda-chuva, a fim de acompanhá-la num passeio até o fundo do parque, um passeio tradicional, que ela geralmente fazia quando deprimida — como ela estava sempre que o Sr. Linton passava pior do que de costume, coisa que ele nunca dizia, mas que tanto eu como ela adivinhávamos, pelo seu silêncio e pela melancolia em seu rosto. Cathy caminhava tristemente: nada de correrias nem saltos, embora o vento frio pudesse lhe ter dado vontade de correr. De vez em quando, pelo canto do olho, eu a via levantando a mão e limpando algo da face. Olhei em volta, à procura de algu­ma coisa que lhe distraísse o pensamento. A um lado da estrada havia uma pequena elevação, onde algumas aveleiras e carvalhos retorcidos, com as raízes meio expostas, a custo se seguravam: o solo era demasiado solto; os últi­mos e fortes ventos tinham tornado alguns quase horizon­tais. No verão, Catherine adorava subir pelos troncos e sentar-se nos galhos, balançando-se sete metros acima do chão, enquanto eu, satisfeita de ver a sua agilidade e o seu espírito ainda infantil, ainda assim achava conve­niente ralhar com ela, por trepar tão alto, embora ela sou­besse que não havia necessidade de descer. Desde o fim do almoço até a hora do chá, ela ficava no seu berço ni­nado pela brisa, sem fazer nada a não ser cantar velhas canções — que eu lhe ensinara —, ou ver os passarinhos alimentando os filhotes e ensinando-os a voar; ou ani­nhar-se com as pálpebras cerradas, meio a pensar, meio a sonhar, numa felicidade inexprimível.
— Veja, senhorita! — exclamei, apontando para um lugar debaixo das raízes de uma das árvores retorcidas. — O inverno ainda não chegou. Ainda há uma florzinha, ali, daquelas campânulas que em julho cobriam a relva de uma colcha lilás. Que tal subir lá e colhê-la, para mostrá-la a seu pai?
Cathy olhou durante algum tempo para a flor soli­tária, que estremecia ao vento, e por fim respondeu:
— Não, não vou apanhá-la; mas o seu aspecto é me­lancólico, não é, Ellen?
— É, sim — falei —, quase tanto como o seu; suas faces estão sem cor; que tal darmos as mãos e corrermos? Você está tão embaixo que talvez eu possa acompanhá-la.
— Não — repetiu ela, e continuou a avançar, pa­rando de vez em quando para contemplar um pedaço de musgo, um tufo de relva ressecada pelo frio ou um cogu­melo que espalhava a sua cor de laranja por entre os mon­tes de folhagem castanha, e, também de vez em quando, erguendo a mão ao rosto.
— Catherine, por que é que você está chorando, meu bem? — perguntei, aproximando-me e pondo-lhe a mão no ombro. — Você não precisa chorar só porque seu pai tem um resfriado; dê graças a Deus por não ser algo pior.
Ela não conteve mais as lágrimas; os soluços sufo­caram-na.
— Sim, mas vai piorar — chorou ela. — E que será de mim quando você e papai morrerem e eu ficar sozinha? Não posso esquecer as suas palavras, Ellen; estão sempre nos meus ouvidos. Como a minha vida vai mudar, como vai ser horrível o mundo, quando você e papai se forem!
— Ninguém pode garantir que você não morra antes de nós — repliquei. — Não se devem antecipar desgraças. Devemos é esperar que ainda faltem muitos anos para o nosso dia: seu pai é jovem, eu sou forte e tenho apenas quarenta e cinco anos. Minha mãe chegou aos oitenta, cheia de energia até o fim. E se o Sr. Linton viver até os sessenta ainda terá de vida mais do que os anos que você tem agora. Não acha bobagem estar chorando por algo que talvez só aconteça daqui a vinte anos?
— Mas a tia Isabella era mais jovem do que papai — observou ela, erguendo os olhos numa esperança tímida de consolação.
— Sua tia não tinha a você nem a mim para tomar conta dela — respondi. — Não era feliz como o seu pai: não tinha muita coisa que a prendesse à vida. O que você precisa fazer é cuidar bem do seu pai e animá-lo, mostrando-se animada. Evite dar-lhe preocupações, sejam quais forem; lembre-se disso, Cathy! Não duvido de que você pudesse matá-lo de desgosto, sendo insensata e desobediente, nutrindo um sentimento louco, imaginário, pelo fi­lho de uma pessoa cujo maior prazer seria vê-lo morto e permitindo-lhe descobrir que sofreu com a separação que ele achou necessário efetuar.
— Nada me faz sofrer, neste mundo, senão a doença de papai — respondeu Cathy. — Nada me importa, em comparação com papai. E nunca. . . nunca, nunca. . . en­quanto estiver no meu juízo, farei ou direi algo que lhe cause preocupação. Amo-o mais do que a mim mesma, Ellen, e tenho a certeza por isto: todas as noites rezo para que Deus me leve depois dele, pois prefiro sofrer com a falta dele a ele sofrer com a minha perda. Isso prova que o amo mais do que a mim mesma.
— Belas palavras — retruquei. — Mas é preciso prová-lo também por ações. Depois que seu pai ficar bom, não se esqueça das decisões tomadas num momento de medo.
Enquanto falávamos, aproximamo-nos de uma cancela que se abria para a estrada; e a minha jovem ama, nova­mente alegre, subiu por ela e sentou-se no topo do muro, estendendo os braços para colher uns frutos silvestres, os quais se destacavam, escarlates, nos galhos mais al­tos das roseiras bravas que ensombreciam o caminho; os frutos mais baixos tinham desaparecido, mas só os pás­saros podiam alcançar aqueles, ou então Cathy, no lugar onde se encontrava. Ao estender o braço, porém, o cha­péu caiu-lhe da cabeça; e, como a cancela estivesse tran­cada, resolveu descer para apanhá-lo. Pedi-lhe que tomas­se cuidado para não cair e ela desapareceu agilmente. Mas a volta não foi tão fácil: as pedras do muro eram lisas e bem cimentadas e as roseiras e espinheiros não a ajuda­vam a subir. Como uma boba, não me lembrei disso, até que a ouvi rindo e exclamando:
— Ellen, você vai ter de ir buscar a chave da cancela ou eu terei de dar a volta até a casa do guarda. Não posso subir o muro por este lado!
— Fique onde está — respondi. — Tenho o meu molho de chaves no bolso: talvez consiga abrir. Senão irei buscar a chave.
Catherine, para passar o tempo, pôs-se a dançar de um lado para outro, diante da cancela, enquanto eu expe­rimentava todas as chaves. Por fim, vi que nenhuma servia e, repetindo-lhe que ficasse ali, à espera, ia correr para casa a fim de apanhar a chave, quando o trotar de um cavalo me fez parar. Cathy parou também de dançar.
— Quem é? — sussurrei.
— Ellen, oxalá você pudesse abrir a cancela — res­pondeu, num murmúrio aflito, a minha jovem ama.
— Olá, Srta. Linton! — gritou uma voz profunda (a do cavaleiro). — Ainda bem que a encontro. Não te­nha pressa de entrar, pois quero lhe perguntar uma coisa.
— Não lhe responderei, Sr. Heathcliff — replicou Catherine. — Papai diz que o senhor é um homem per­verso e que nos odeia, a mim e a ele. . . e Ellen diz o mesmo.
— Isso não vem ao caso — disse Heathcliff. (Era ele.) — Certamente não odeio o meu filho e é a respeito dele que quero falar com a senhorita. Sim, você tem motivo para corar. Há dois ou três meses atrás, você costumava escrever a Linton. . . cartinhas de amor? Tanto você co­mo ele mereciam umas boas palmadas! Você principalmen­te, a mais velha e menos sensível, ao que parece. Tenho as suas cartas em meu poder e, se você me vier com impertinências, juro que as enviarei a seu pai. Suponho que se tenha cansado da brincadeira e resolvido não mais escre­ver, não foi? Pois bem, com esse seu gesto precipitou Lin­ton num abismo de tristeza. Ele não estava brincando; estava realmente apaixonado, E agora você pode ter a certeza de que ele está morrendo por sua causa, com o coração partido pela sua leviandade. Embora Hareton tro­ce dele e eu tenha tomado medidas mais sérias e tentado meter-lhe medo para tirá-lo da sua idiotice, ele piora de dia para dia; e, a menos que você faça alguma coisa, re­pousará debaixo da terra antes do verão!
— Como pode o senhor mentir tão descaradamente para a pobre menina? — exclamei, do outro lado do muro. — Pelo amor de Deus, continue o seu caminho! Como é possível que o senhor diga, deliberadamente, tais falsida­des? Srta. Cathy, vou partir a tranca com uma pedra e peço-lhe que não acredite em tão vil absurdo. Pense em como é impossível alguém morrer pelo amor de uma des­conhecida.
— Não sabia que havia bisbilhoteiros à escuta — resmungou o vilão. — Cara Sra. Dean, simpatizo com a senhora, mas não gosto das suas maquinações — acres­centou, em voz alta. — Como é que a senhora pode mentir tão descaradamente, a ponto de afirmar que eu odiava a "pobre menina" e inventar histórias da carochinha para afastá-la da minha porta? Catherine Linton (só o nome já me faz bem), minha menina bonita, ficarei toda esta semana fora de casa; vá até lá e veja se não falei a ver­dade: vá, peço-lhe! Imagine o seu pai no meu lugar e Linton no seu: pense como você ficaria decepcionada se a pessoa a quem você amasse se negasse a dar um passo para confortá-la, quando o seu próprio pai lhe houvesse suplicado que fosse; e não caia no mesmo erro, por pura estupidez. Juro, pela minha salvação, que ele está morren­do e que ninguém, a não ser você, pode salvá-lo! A fechadura cedeu e eu saí.
— Juro que Linton está morrendo — repetiu Heath­cliff, olhando firme para mim. — A dor e a desilusão estão apressando a sua morte. Nelly, se você não a quiser deixar ir, pode ir você mesma. Mas eu não voltarei até a próxima semana; e pense que nem o seu amo objetaria a que ela fosse visitar o primo!
— Entre — disse eu, pegando em Cathy pelo braço e quase forçando-a a entrar, pois ela se demorava, estu­dando, com olhar preocupado, o rosto do seu interlocutor, demasiado grave para demonstrar o logro a que a induzia.
Aproximou mais o cavalo e, inclinando-se, comentou:
— Catherine, confesso que tenho pouca paciência com Linton. . . Hareton e Joseph ainda têm menos. Con­fesso que ele, conosco, está mal servido. Precisa de meiguice, além de amor; uma palavra meiga que você lhe dissesse seria o melhor remédio para ele. Não ligue para as cruéis instigações da Sra. Dean; seja generosa e procure ir vê-lo. Ele sonha com você noite e dia e não se convence de que você não o odeia, já que não escreve nem o visita.
Fechei o portão e rolei uma pedra, para ajudar a fe­char a porta; abri o meu guarda-chuva e tratei de cobrir a minha menina, pois a chuva começava a cair por entre os gementes galhos das árvores, prevenindo-nos para que não demorássemos a entrar. A pressa fez com que não comen­tássemos o encontro com Heathcliff, a caminho de casa; mas adivinhei, instintivamente, que o coração de Cathe­rine estava agora duplamente pesado. Tinha o rosto tão triste, que não parecia a mesma; evidentemente, acreditava em tudo o que ouvira.
O meu amo subira para descansar, antes da nossa chegada. Cathy entrou no quarto dele, para saber como o pai estava; ele adormecera. Pediu-me, então, que lhe fizes­se companhia na biblioteca. Tomamos o chá juntas e de­pois ela se deitou no tapete e pediu-me que não falasse, pois estava cansada. Peguei num livro e fingi ler. Tão logo ela me julgou distraída, recomeçou a chorar em silêncio: aquilo parecia ser, no momento, o seu divertimento predi­leto. Deixei-a chorar à vontade por algum tempo, mas de­pois achei conveniente intervir, ridicularizando tudo o que o Sr. Heathcliff dissera a respeito do filho, como se esti­vesse certa de que ela concordaria comigo. Infelizmente, não consegui contrabalançar o efeito que as suas palavras tinham produzido: ao contrário, fiz o jogo dele.
— Talvez você tenha razão, Ellen — replicou ela —, mas eu não sossegarei enquanto não tiver certeza. E tenho de dizer a Linton que não foi por minha culpa que não lhe escrevi e convencê-lo de que meus sentimentos não mudaram.
De que me adiantou zangar-me e protestar contra a sua tola credulidade? Separamo-nos, nessa noite, hostis; mas, no dia seguinte, lá fui eu a caminho do Morro dos Ventos Uivantes, ao lado do pônei da minha jovem e ca­prichosa ama. Não podia ver o seu sofrimento, contemplar o seu rosto pálido e infeliz, os seus olhos pisados; e cedi, na débil esperança de que o próprio Linton provasse, ao receber-nos, quão pouco verdadeira era a história que seu pai nos contara.

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