segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O Morro dos Ventos Uivantes, Cap Xlll

Os fugitivos permaneceram dois meses ausentes; nesses dois meses, a Sra. Linton atravessou e venceu a pior crise do que se chamava uma febre cerebral. Nenhuma mãe teria cuidado mais devotadamente de uma filha única do que Edgar cuidou dela. Dia e noite, ele não saía do seu lado, suportando pacientemente todos os caprichos e os aborrecimentos que os seus nervos irritadiços e a sua razão abalada lhe ditavam; e, embora o Dr. Kenneth observasse que o que ele estava salvando lhe iria pagar os cuidados constituindo-se numa fonte de futura e constante preocupa­ção — realmente, a sua saúde e a sua força estavam, sendo sacrificadas para preservar uma simples ruína humana —, ele ficou quase louco de alegria e felicidade quando Cathe­rine foi declarada fora de perigo; hora após hora, ele ficava sentado ao lado dela, vendo o seu corpo voltar ao que era e entretendo a ilusão de que a sua mente acabaria também por recuperar o equilíbrio e de que ela voltaria a ser o que era antes.
A primeira vez em que a Sra. Linton saiu do quarto foi no mês de março seguinte. O Sr. Linton depusera-lhe no travesseiro, logo de manhã, um ramo de flores de açafrão; e os seus olhos, de havia muito alheios a qualquer brilho de prazer, deram com o ramo, ao despertar, e reluziram de satisfação.
— São as primeiras flores da primavera, no Morro — exclamou. — Recordam-me brisas suaves, o sol quente e a neve quase derretida. Edgar, o vento não está soprando do sul e a neve não está quase desaparecendo?
— A neve já desapareceu aqui, querida — respon­deu-lhe o marido. — Só vejo duas manchas brancas em toda a extensão da charneca; o céu está azul, as cotovias cantam e os córregos e os riachos estão transbordando. Catherine, na primavera passada, por esta altura, eu estava ansioso por tê-la aqui, debaixo deste teto, mas agora dese­jaria que você estivesse lá em cima, naqueles morros: o ar sopra tão suavemente ali que tenho a certeza de que você se curaria.
— Nunca mais hei de voltar lá, a não ser para sem­pre — retrucou a enferma —, e então você me deixará lá até a eternidade. Na próxima primavera você desejará no­vamente ter-me aqui, debaixo deste teto. Recordará este dia e achará que era feliz.
Linton prodigalizou-lhe os maiores carinhos e tentou animá-la de todas as maneiras; mas, olhando vagamente para as flores, ela deixou que as lágrimas se juntassem em seus cílios e lhe deslizassem livremente pelas faces. Sabía­mos que ela estava realmente melhor e, conseqüentemente, decidimos que um longo confinamento naquele quarto devia ser responsável por grande parte do seu pessimismo e que talvez melhorasse com uma mudança de ambiente. O Sr. Linton mandou-me acender a lareira na sala há tanto de­serta e colocar uma poltrona ao sol, junto à janela; depois levou-a para baixo, e ela ficou um bom tempo gozando aquele suave calor, reanimada, conforme esperávamos, pe­los objetos que a cercavam, os quais, embora familiares, não lhe traziam as mesmas tristes recordações do seu de­testado quarto de enferma. Ao cair da noite parecia exaus­ta; mas não houve argumentos que a persuadissem a voltar para o quarto e tive de fazer-lhe a cama no sofá da sala, até que se pudesse preparar outro quarto para ela. A fim de poupar-lhe o cansaço de subir e descer a escada, esco­lhemos este, em que o senhor agora está: no mesmo andar da sala; e não tardou que ela estivesse suficientemente forte para andar de um aposento para outro, apoiada ao braço de Edgar. "Ah", pensei, "é bem possível que fique boa, tão bem cuidada está." E havia uma dupla razão para desejar isso, pois da vida dela dependia outra vida: todos nós aca­lentávamos a esperança de que, não demoraria muito, o coração do Sr. Linton teria a grande alegria de constatar que as suas terras não passariam para um estranho, mas continuariam na família, pelo nascimento de um filho.
Devo mencionar que, umas seis semanas após a sua fuga, Isabella enviou ao irmão uma pequena nota, anun­ciando o seu casamento com Heathcliff. A nota parecia seca e fria; mas havia no final, a lápis, um obscuro pedido de desculpa e de reconciliação, caso o seu procedimento o tivesse ofendido, afirmando que na ocasião não o pudera evitar e que, uma vez o fato consumado, não tinha agora poder para voltar atrás. Linton, segundo creio, não res­pondeu; e, uma quinzena depois, recebi uma longa carta, que me pareceu bem estranha para ser de uma noiva recém-saída da lua-de-mel. Vou lê-la, pois ainda a tenho. Todas as relíquias dos mortos são preciosas, quando em vida eles foram estimados.


Querida Ellen,

Cheguei ontem à noite ao Morro dos Ventos Uivan­tes e fiquei sabendo que Catherine esteve, e ainda está, muito doente. Não devo escrever-lhe, creio, e meu irmão está demasiado zangado ou demasiado preocupado para responder ao que lhe mandei. Te­nho, porém, de escrever a alguém, e a única pessoa a quem posso fazê-lo é você.
Diga a Edgar que eu daria a vida para voltar a ver o seu rosto — que o meu coração voltou à Granja Thrushcross vinte e quatro horas depois que a deixei e agora mesmo está aí, cheio de amor por ele e por Catherine! Não posso, porém, seguir o meu coração — estas palavras estão sublinhadas; — não precisam esperar-me e podem tirar as conclusões que quiserem, desde que não ponham as culpas na minha falta de força de vontade ou no meu pouco afeto.
O resto da carta é só para você. Quero lhe fazer duas perguntas. A primeira é: como foi que você con­seguiu preservar os seus sentimentos humanos quando vivia aqui? Não vejo nenhum sentimento naqueles que me rodeiam.
A segunda pergunta interessa-me profundamente; ê a seguinte: o Sr. Heathcliff é um homem? Se é, estará louco? Se não, será um demônio? Não lhe direi as minhas razões para lhe fazer essas perguntas, mas peço-lhe que me explique, se puder, com quem me casei: isto é, quando você vier visitar-me, o que tem de ser breve, Ellen, muito breve. Não escreva, venha e traga-me algo de Edgar.
Agora, vou lhe contar como fui recebida no meu novo lar, o que penso que o Morro dos Ventos Uivan­tes será. Ê só para me distrair que menciono assuntos tais como a falta de conforto material: nunca penso nisso, exceto quando sinto falta dele. Mas cantaria e dançaria de alegria se descobrisse que a sua ausência era a única coisa que me apoquentava e o resto apenas um pesadelo!
O sol se punha por trás da granja, quando parti­mos em direção à charneca; a julgar por isso, creio que eram seis horas. Meu companheiro demorou-se bem uma meia hora a inspecionar o parque, os jar­dins e, provavelmente, a própria casa, o melhor possí­vel, por isso já estava escuro quando desmontamos no pátio da casa do Morro e o seu velho colega, Joseph, saiu para nos receber, à luz de uma candeia. Fê-lo com uma cortesia que honrou a sua reputação. Seu primeiro ato foi levantar a candeia até o meu rosto, semicerrar os olhos malevolamente, espichar o lábio inferior e dar meia-volta. Depois pegou nos dois ca­valos e levou-os para a cavalariça, voltando para tran­car o portão, como se vivêssemos num castelo antigo.
Heathcliff deteve-se a falar com ele e eu entrei na cozinha, um buraco sujo e desarrumado, a tal ponto que aposto que você não a reconheceria, tão mudada está desde quando estava a seu cargo. Ao lado do fogão estava uma criança de má catadura, forte e suja, com algo de Catherine nos olhos e na boca.
"Este é o sobrinho de Edgar", pensei. "Meu so­brinho, até certo ponto. Tenho de lhe dar a mão e, sim, tenho de beijá-lo. Ê bom estabelecer uma boa amizade desde o início."
Aproximei-me e, tentando tomar-lhe a mão gordu­cha, perguntei:
Como vai você, querido?
Ele respondeu num linguajar que não compreendi.
Vamos ser amigos, Hareton? — tentei de novo. Uma praga e uma ameaça de atiçar Throttler contra mim, se eu não "caísse fora", recompensaram a minha perseverança.
Aí, Throttier, pega! — falou a pestezinha, des­pertando um buldogue arraçado que dormia a um canto. — Então, você cai fora ou não cai? — per­guntou-me ele, triunfante.
O instinto de conservação obrigou-me a obedecer. Recuei até a porta, esperando que os outros entrassem. O Sr. Heathcliff não aparecia; e Joseph, a quem segui até a cavalariça e pedi que me acompanhasse, após olhar fixo para mim e murmurar não sei o quê para si mesmo, torceu o nariz e retrucou:
Ora, ora, ora! Onde já se ouviu uma coisa dessas? Como é que eu posso entender o que você diz?
Estou lhe dizendo que me acompanhe até a casa! — gritei, julgando-o surdo, embora chocada com a sua rudeza.
Eu não! Tenho mais o que fazer — respondeu ele, continuando no seu trabalho, enquanto me exa­minava o traje e o rosto (o primeiro, demasiado fino, mas, quanto ao último, tenho a certeza de que tão triste quanto ele poderia desejar) com soberano des­prezo.
Dei volta ao pátio e cheguei, através de uma can­cela, a uma outra porta, à qual tomei a liberdade de bater, na esperança de que alguém mais educado apa­recesse. Após uma curta demora a porta foi aberta por um homem alto e muito magro, sem lenço ao pescoço e extremamente desmazelado; suas feições perdiam-se sob quantidades de cabelo maltratado, que lhe chegava até os ombros; e os olhos dele eram também como os de uma fantasmagórica Catherine, cuja beleza tivesse sido inteiramente aniquilada.
Que está fazendo aqui? — perguntou, aspera­mente. — Quem é você?
Meu nome era Isabella Linton — respondi. — O senhor me conhece. Acabei de casar com o Sr. Heathcliff e ele me trouxe para cá, suponho que com sua permissão.
Quer dizer que ele voltou, então? — perguntou o eremita, os olhos brilhantes como os de um lobo faminto.
Sim. Acabamos de chegar — repliquei. — Mas ele me deixou junto à porta da cozinha e, quando quis entrar, o seu filho obrigou-me a recuar, com a ajuda de um buldogue.
Ainda bem que esse demônio cumpriu a pala­vra! — rosnou o meu futuro anfitrião, procurando, na escuridão atrás de mim, ver se descobria Heath­cliff. Quando viu que não, lançou-se num solilóquio de execrações e ameaças do que teria feito, caso o "diabo" o tivesse enganado.
Arrependi-me de ter tentado aquela segunda porta e estava quase inclinada a ir embora antes que ele aca­basse de praguejar, mas, como se percebesse a minha intenção, ordenou que eu entrasse, fechando e tran­cando a porta. O fogo crepitava, alto, mas essa era toda a luz que havia no aposento, cujo chão estava agora de um cinza uniforme. Os outrora brilhantes pratos de estanho, que me atraíam o olhar quando eu era criança, eram agora igualmente cinzentos, de azinhavre e de poeira. Perguntei se poderia chamar a criada e pedir-lhe que me levasse a um quarto, mas o Sr. Earnshaw não deu resposta. Andava de um lado para outro, as mãos nos bolsos, aparentemente es­quecido da minha presença; a sua abstração era tão profunda e todo o seu aspecto tão misantrópico, que não mais procurei incomodá-lo.
Acho que você não se surpreenderá, Ellen, de que eu tenha me sentido tão desanimada, ali sentada, pior do que se estivesse só, naquela casa hostil e, ainda por cima, lembrando-me de que, a quatro milhas de distância, estava o meu querido lar, com as únicas pessoas a quem amava no mundo, mas que era como se o oceano nos separasse, em vez de apenas quatro milhas, já que não podia vencê-las! Perguntei a mim mesma onde poderia procurar um pouco de conforto. E (repare bem, não o diga a Edgar ou a Catherine), acima de tudo, sentia-me desesperada por não ter ninguém que pudesse ou quisesse aliar-se a mim contra Heathcliff! Aceitara, quase de bom grado, viver no Morro dos Ventos Uivantes, porque lá, pelo menos, eu não teria de viver a sós com ele; mas ele conhecia bem as pessoas com quem viveríamos e não temia que se intrometessem.
Fiquei ali sentada, pensando, um tempo enorme: o relógio deu oito horas, depois nove, e o meu anfitrião continuava a caminhar de um lado para outro, a cabe­ça inclinada sobre o peito e em perfeito silêncio, que­brado apenas por uma imprecação ou um rosnar. Procurei distinguir uma voz de mulher na casa e, fi­nalmente, vencida pelo arrependimento, pela saudade e pelas sombrias perspectivas, comecei a suspirar e a chorar. Não me tinha dado conta de que chorava, até que Earnshaw parou, de repente, e me lançou um olhar de surpresa. Tirando partido da sua atenção, exclamei:
Estou cansada da viagem e quero me deitar! Onde está a criada? Diga-me onde a posso encontrar, já que ela não vem ter comigo!
Não temos nenhuma criada — respondeu ele. — Você tem de se valer sozinha!
Onde vou dormir, então? — solucei. Já não me importava manter a dignidade, arrasada como es­tava pela fadiga e pela desilusão.
Joseph lhe indicará o quarto de Heathcliff — respondeu ele. — Abra essa porta. Ele está aí dentro.
Ia obedecer, quando subitamente ele me deteve, acrescentando, num tom muito estranho:
— Faça o favor de trancar a porta e fechar o ferrolho. Não se esqueça!
Está bem — respondi. — Mas por quê, Sr. Earnshaw? — Não me agradava a idéia de me trancar no quarto com Heathcliff.
Olhe aqui! — replicou ele, puxando do colete uma pistola curiosamente construída, com uma faca de dois gumes presa ao cano. — Isto é uma grande tentação para um homem desesperado, não acha? Não posso resistir a subir a escada, esta mesma noite, e tentar abrir a porta dele. Se alguma noite a encontrar aberta, era uma vez aquele demônio! Tento sempre, mesmo que um minuto antes eu tenha me lembrado de uma centena de razões para não o jazer: parece que há um diabo que me impele a frustrar os meus próprios planos para matá-lo. Você pode lutar, por amor, com esse diabo o tempo que quiser; quando a hora chegar, nem todos os santos do céu terão po­der para salvá-lo!
Olhei, curiosa, para a arma e uma horrível idéia me passou pela cabeça: que poder eu teria se possuís­se um tal instrumento! Tirei-a da sua mão e toquei na lâmina. Ele pareceu atônito, diante da expressão que o meu rosto tomou, durante um breve segundo: não de horror, e sim de cobiça. Arrancou-me a pistola, desconfiado; e fechou a mola da faca e ocultou-a.
Não me importo com o que você lhe disser — falou. — Ponha-o em guarda e guarde-o. Você sabe em que termos estamos, pelo que vejo: o perigo que ele corre não a espanta.
Que foi que Heathcliff lhe fez? — perguntei. — Em que é que ele o prejudicou, para que o senhor o odeie tanto? Não seria melhor ordenar-lhe que saísse de casa?
Não! — trovejou Earnshaw. — Se ele tiver a idéia de me deixar pode considerar-se morto: conven­ça-o a fazer isso e você será uma assassina! Iria eu perder tudo, sem ter uma oportunidade de reaver o que perdi? Hareton ficaria transformado num mendi­go! Com mil diabos, hei de reaver tudo! E hei de ter também o dinheiro dele; e depois o seu sangue; e o inferno terá a sua alma danada! Ficará dez vezes mais infernal, com ele, do que era antes!
Você me tinha falado, Ellen, dos estranhos hábitos do seu antigo amo. Ele está, claramente, à beira da loucura — pelo menos estava, ontem à noite. Tremia de estar perto dele e até a insolência do criado me pareceu comparativamente agradável. Assim que ele recomeçou d caminhar de um lado para outro, levan­tei a tranca e fugi para a cozinha. Joseph estava curva­do sobre o fogo, olhando para dentro de uma grande caçarola que balançava por cima do lume; um reci­piente de madeira, cheio de aveia, estava pousado no banco, junto ao fogão. O conteúdo da caçarola começou a ferver e ele se virou, para mergulhar a mão no recipiente. Imaginei que aqueles preparativos deviam ser para a ceia e, cheia de fome, resolvi que seria algo comestível; assim, gritando "eu faço o mingau!", re­movi o recipiente de perto dele e pus-me a tirar o chapéu e o capote de viagem. — O Sr. Earnshaw — expliquei — diz que eu tenho de me valer a mim mesma: é o que farei. Não vou fazer papel de senhora junto de vocês, ou acabarei morrendo de fome.
Meus Deus! — murmurou ele, sentando-se e alisando as meias do joelho para baixo. — Se vai ter mais gente mandando. . . Logo agora, que eu estava me acostumando com dois patrões, vou ter uma patroa para me confundir as idéias! Acho que está na hora de ir embora. Nunca pensei que ia chegar o dia de ter que ir embora, mas acho que agora está che­gando!
Fingi não ouvir essas lamentações e meti mãos à obra, suspirando ao me lembrar de que outrora tudo aquilo teria sido divertido, mas tratando de afastar essas lembranças. Não queria recordar a passada fe­licidade e, quanto maior o perigo de conjurar essas recordações, tanto mais depressa a colher de pau re­mexia na caçarola e os punhados de aveia caíam den­tro dela. Joseph contemplava a minha maneira de cozinhar com crescente indignação.
Pronto! — exclamou. — Hareton, você não vai comer o seu mingau esta noite; não vai ter senão aveia encaroçada. Se eu fosse você jogava logo a pa­nela no fogo! Com tanto mexer, não sei como é que o fundo não se soltou!
Realmente, confesso que o mingau tinha um aspecto horrível quando o servi nas tigelas; dava para quatro, e um jarro cheio de leite acabado de tirar foi trazido da leiteria para Hareton, que o agarrou sem mais demora e começou a beber, derramando leite pelo bico. Protestei e disse-lhe que bebesse o leite na ca­neca, pois não poderia prová-lo se ele continuasse a beber pelo jarro. Ao ouvir isso, o velho cínico mos­trou-se muito ofendido ante tais escrúpulos, garantindo-me, repetidamente, que "o garoto era tão bom" quanto eu "e até mais saudável", dizendo que não podia com gente tão prosa. Enquanto isso, o moleque continuava a beber do jarro e a encarar-me desafiadoramente.
Vou cear em outro lugar — declarei. — Onde é a sala?
— A sala! — repetiu, desdenhosamente, o velho.
— A sala! Não, a gente não tem sala. Se a senhora não gosta da nossa companhia, tem a do patrão; e se não gosta do patrão, tem nós aqui.
Então vou comer no quarto! — respondi. — Mostre-me um quarto.
Coloquei a minha tigela numa bandeja e fui eu mesma buscar um pouco mais de leite. Com grandes resmungos, o sujeito levantou-se e precedeu-me esca­da acima. Subimos até as águas-furtadas; de vez em quando ele abria uma porta, olhando para dentro dos aposentos pelos quais passávamos.
Aqui tem um quarto — disse ele, por fim, es­cancarando uma porta empenada e rangente. — Está muito bom para se comer mingau. No canto tem um saco de milho, bom para sentar; se está com medo de sujar o seu belo vestido de seda estenda o lenço por cima do saco.
O "quarto" era uma espécie de despensa, cheirando a malte e a cereais; à sua volta estavam empilhados sacos, deixando no meio um espaço vazio.
Homem! — exclamei, furiosa. — Isto não é lugar para se dormir. Quero que você me mostre o meu quarto.
O seu quarto! — repetiu ele, em tom de debo­che. — Você já viu todos os quartos que tem. .. aque­le ali é o meu.
E apontou para uma outra mansarda, diferente da­quela apenas por ter menos coisas encostadas às pa­redes e uma grande cama, baixa e sem cortinado, com uma coberta azul.
Que me interessa o seu quarto? — retruquei.
Suponho que o Sr. Heathcliff não durma no topo da casa.
Oh! Ê o quarto do Sr. Heathcliff que a senhora quer! — exclamou ele, como se acabasse de fazer uma descoberta. — Podia ter falado isso antes, não podia? E então eu não precisava ter tido tanto tra­balho, só lhe dizer que o quarto dele é que você não pode ver. .. está sempre trancado e ninguém pode entrar lá, só ele mesmo.
Você mora numa bela casa, Joseph — não pude evitar de comentar. — E com belos habitantes. Acho que toda a loucura deste mundo deve ter se encarnado em mim no dia em que uni o meu destino ao deles! Contudo, isso agora não tem importância. Há outros quartos; pelo amor de Deus, ande depressa e arranje-me um!
Ele não respondeu; apenas continuou a descer os degraus de madeira, parando diante de um aposento que, pela sua atitude e pela superior qualidade da mo­bília, concluí que devia ser o melhor. Tinha um tape­te, um bom tapete, embora a poeira não deixasse ver-lhe o desenho; uma lareira, protegida com papel recortado, caindo aos pedaços; uma bela cama de carvalho com amplos cortinados escarlate, de material caro e novo, mas que, evidentemente, tinham sido maltratados: os babados pendiam, em rasgões, arran­cados das argolas, e o trilho de ferro que os suportava estava dobrado em arco num dos lados, fazendo com que o planejamento arrastasse pelo chão. As cadeiras também estavam danificadas, muitas delas severa­mente, e profundos golpes deformavam os painéis das paredes. Eu estava hesitando em entrar e apossar-me do quarto, quando o imbecil do meu guia anunciou: — Este aqui ê o quarto do patrão. — A minha ceia já estava fria, o meu apetite tinha desaparecido e a minha paciência estava gasta. Insisti para que ele me providenciasse, imediatamente, um lugar de refúgio e de repouso.
Onde diabos vou arranjar isso? — começou o velho. — Benza-nos Deus! Que o Senhor me perdoe! Eh, diabo, onde posso meter você? viu todos os quartos, menos o de Hareton. Não tem mais lugar para se dormir nesta casa!
Fiquei tão furiosa que joguei a bandeja e o seu conteúdo no chão; depois, sentando-me no alto da escada, escondi o rosto nas mãos e desatei a chorar.
— Credo! — exclamou Joseph. — Muito bem-fei­to, Srta. Cathy! Muito bem-feito! O patrão vai tro­peçar nesses pedaços de louça e o barulho vai ser grande. . . muito grande! Sua desastrada! Merece jejuar daqui até o Natal, jogando no chão a preciosa comida que Deus dá para a gente! Mas acho que você não vai ter dessas raivas por muito tempo. Está pen­sando que Heathcliff vai deixar você ter desses ata­ques? Deus queira que ele pegue você fazendo uma dessas. Deus queira!
E assim foi, resmungando e imprecando, para o seu antro, levando a vela com ele e deixando-me no es­curo. O período de reflexão que se sucedeu àquela ação ridícula levou-me a admitir a necessidade de abafar o orgulho e engolir a raiva, procurando limpar a sujeira que fizera. Uma ajuda inesperada surgiu na forma de Throttler, a quem agora reconhecia como sendo filho do nosso velho Skulker: passara os seus primeiros tempos na granja e fora dado por meu pai ao Sr. Hindley. Creio que me reconheceu: encostou o focinho ao meu nariz, à maneira de saudação, e depois apressou-se a devorar o mingau, enquanto eu tateava de degrau em degrau, recolhendo a louça partida e enxugando com meu lenço os respingos de leite que tinham caído no corrimão. O nosso traba­lho estava quase acabado, quando ouvi os passos de Earnshaw no corredor; o meu ajudante encolheu o rabo e encostou-se à parede; eu entrei pela porta mais próxima. A tentativa do cão em evitá-lo foi mal sucedida, a julgar pelo barulho e por um prolongado e lastimoso ganir. Eu tive mais sorte! Ele passou, en­trou no seu quarto e fechou a porta. Pouco depois, Joseph subiu com Hareton, a fim de deitá-lo. Eu pro­curara refúgio no quarto do garoto e, ao ver-me, o velho declarou: — Acho que agora tem lugar para você e para o seu orgulho. O quarto está vazio: você pode ter ele todo para você, junto com o Senhor, que está sempre presente, mesmo em má companhia!
De bom grado aceitei a oferta; e, assim que me jo­guei numa poltrona, ao lado da lareira, adormeci. O meu sono foi gostoso e profundo, mas durou pouco. O Sr. Heathcliff acordou-me; acabava de entrar em casa e perguntou, na sua maneira carinhosa, o que eu estava fazendo ali. Expliquei-lhe a razão — ele tinha a chave do nosso quarto no bolso. A palavra "nosso" pareceu insultá-lo terrivelmente. Jurou que não era, nem jamais seria, meu, e que ele. . . Mas não vou repetir aqui o que ele disse, nem descrever o seu com­portamento habitual: basta dizer que se empenha em ganhar o meu ódio! Por vezes fico tentando compreen­dê-lo e isso amortece um pouco o meu medo; mas asseguro-lhe que nem um tigre nem uma serpente ve­nenosa poderiam causar-me mais pavor do que ele me suscita. Contou-me que Catherine estava doente e acusou o meu irmão de ser o culpado, prometendo que me faria sofrer até conseguir se vingar de Edgar.
Odeio-o. . . Sou uma desgraçada. . . Que louca eu fui! Mas não conte nada disso a ninguém aí da granja. Espero a sua visita — não me decepcione!

Isabella.

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