segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O Morro dos Ventos Uivantes, Cap Xll

Enquanto a Srta. Linton passeava pelo parque e pelo jardim, sempre silenciosa e quase sempre chorando; e enquanto o seu irmão se fechava entre livros que nunca abria — numa contínua esperança, ao que eu supunha, de que Catherine, arrependendo-se da sua conduta, viesse espontaneamente pedir-lhe perdão e procurar fazer as pa­zes —, ela se recusava a comer, provavelmente pensando que, a cada refeição, Edgar perderia o apetite devido à sua ausência, e que só o orgulho o impedia de correr a lançar-se aos seus pés; e eu cumpria, como se nada houvesse acon­tecido, as minhas obrigações, convencida de que a granja só alojava uma única pessoa sensata: eu. Não mostrava pena da jovem Srta. Linton, nem preocupação pela minha patroa; nem prestava muita atenção aos suspiros do meu amo, que ansiava por ouvir pronunciar o nome da esposa, já que não lhe podia ouvir a voz. Resolvi que eles se arranjassem como melhor pudessem; mas, como aquilo estava demorando, regozijei-me quando as coisas parece­ram progredir.
No terceiro dia, a Sra. Linton abriu a porta do quarto e, tendo acabado com a água que havia no jarro, pediu um novo suprimento e uma tigela de mingau, pois temia estar morrendo. Isso me deu a impressão de ser dirigido aos ouvidos de Edgar; por conseguinte, nada disse e levei-lhe uma xícara de chá e torradas. Ela comeu e bebeu avi­damente e depois mergulhou outra vez nos travesseiros, retorcendo as mãos e gemendo. — Oh, quero morrer! — exclamou. — Quero morrer, pois ninguém se importa comigo. Não devia ter tomado o chá. — Algum tempo depois, porém, ouvi-a murmurar: — Não, não quero mor­rer. . . ele ficaria contente, não gosta nem um pouco de mim. Não sentiria a minha falta!
— Deseja alguma coisa, senhora? — perguntei, man­tendo exteriormente a compostura, apesar do abatimento do seu rosto e do seu jeito estranho e exagerado.
— Que é que aquela apática criatura está fazendo? — quis ela saber, afastando a farta e emaranhada cabeleira do rosto encovado. — Teve um ataque de letargia ou morreu?
— Nem uma coisa nem outra — respondi —, se é ao Sr. Linton que se refere. Acho que está bastante bem, embora demasiado entregue aos seus estudos. Está sempre entre os livros, já que não tem outra companhia.
Eu não deveria ter dito isso, mas não podia deixar de pensar que ela estava representando.
— Entre os livros! — exclamou ela, horrorizada. — E eu aqui, morrendo! À beira do túmulo! Meu Deus, será que ele sabe como eu estou? — continuou ela, olhando para o seu reflexo num espelho que pendia da parede fronteira. — Aquela é Catherine Linton? Ele imagina que eu estou representando, talvez. Você não lhe pode dizer que é terrivelmente sério? Nelly, se não for demasiado tarde, tão logo eu saiba como ele se sente, escolherei entre deixar-me morrer de fome (isso não seria castigo, a me­nos que ele tivesse coração) ou ficar boa e deixar esta terra. Você está falando a verdade a respeito dele? Cui­dado! Ele é mesmo tão indiferente pela minha vida?
— Bem — respondi —, o patrão não sabe que a senhora está assim tão alterada; e, naturalmente, não teme que se vá deixar morrer de fome.
— Acha que não? Não lhe pode dizer que sim? — volveu ela. — Convença-o! Diga-lhe que tem a certeza de que sim!
— A senhora esquece — retruquei — que comeu alguma coisa esta noite e que amanhã sentirá os bons efeitos da comida.
— Se eu tivesse a certeza de que isso o mataria — interrompeu ela —, eu me mataria em seguida! Foram três noites desgraçadas, em que não fechei os olhos. . . e, oh! que tormentos passei! Senti-me acossada por fantasmas, Nelly! Mas estou começando a achar que você não gosta de mim. Que estranho! Pensei que, embora todo o mundo se odiasse e desprezasse mutuamente, ninguém podia dei­xar de me amar. Mas agora todos se transformaram em inimigos: eu sei que se transformaram! As pessoas daqui! Que coisa terrível, morrer rodeada pelos seus rostos frios! Isabella, horrorizada, com medo de entrar no quarto e de assistir à partida de Catherine; e Edgar, de pé, sole­nemente, assistindo ao fim, e depois agradecendo a Deus por ter restituído a paz à sua casa, e voltando para os seus livros! Que diabo tem ele que fazer com os livros quando eu estou morrendo?
Não podia tolerar a idéia, que eu lhe pusera na ca­beça, da filosófica resignação do marido. Revolvendo-se na cama, aumentou a sua febril agitação até a loucura e rasgou o travesseiro com os dentes; depois, erguendo-se, ardendo, pediu que lhe abrisse a janela. Estávamos no meio do inverno e o vento soprava, forte, de nordeste, de modo que objetei. As cambiantes expressões do seu rosto e o desassossego das suas atitudes começaram a alarmar-me, trazendo-me à lembrança a sua antiga doença e a recomendação do médico de não a contrariar. Um minuto antes, ela estava violenta; agora, apoiando-se num braço e não reparando na minha recusa em lhe obedecer, parecia divertir-se infantilmente, puxando as penas através dos rasgões que tinha feito e arrumando-as no lençol, confor­me as diferentes espécies: a sua mente desviara-se para outras coisas.
— Esta é uma pena de peru — murmurou para si mesma —, e esta é de pato selvagem; e esta é de pombo. Ah, põem penas de pombos nos travesseiros. . . não admira que eu não pudesse morrer! Tenho de me lembrar de jogá-la no chão, quando me deitar. E esta é de galinhola; e esta (seria capaz de a reconhecer entre mil) é a pena de um pavoncino. Bela ave, esvoaçando sobre as nossas cabeças, no meio da charneca. Queria alcançar o seu ni­nho, pois as nuvens tinham tocado os cumes e ele sabia que a chuva não tardaria. Esta pena foi apanhada na charneca, a ave não foi morta: vimos o seu ninho no inverno, cheio de pequeninos esqueletos. Heathcliff pôs uma armadilha por cima dele e os pais não ousaram chegar perto.
Fi-lo prometer que nunca mais atiraria num pavoncino depois disso, e ele cumpriu a promessa. Mas há mais aqui! Ele atirou nos meus pavoncinos, Nelly? Há alguma pena vermelha? Deixe-me ver.
— Pare com essa brincadeira de bebê! — interrom­pi, tirando-lhe o travesseiro e virando os buracos para o lado do colchão, pois ela estava tirando as penas às mancheias. — Deite-se e feche os olhos: a senhora está deli­rando. Que confusão! As penas estão esvoaçando que nem flocos de neve.
Pus-me a recolhê-las pelo chão.
— Vejo em você, Nelly — continuou ela, como se sonhasse —, uma mulher idosa: você tem cabelos grisalhos e ombros inclinados. Esta cama é a caverna das fadas que há debaixo de Peniston Crag, e você está juntando flechas de gnomos para matar as nossas novilhas, fingindo, en­quanto eu estou por perto, que são apenas pedaços de lã. Assim será você daqui a cinqüenta anos: bem sei que você agora não é assim. Não estou delirando; você está enga­nada, ou eu acreditaria que você era realmente uma bruxa velha e que eu estava na caverna das fadas; sei bem que é noite e que há duas velas em cima da mesa, fazendo o armário preto brilhar como se fosse de azeviche.
— O armário preto? Onde é que ele está? — per­guntei. — A senhora está sonhando em voz alta!
— Está encostado à parede, como sempre esteve — replicou ela. — Mas parece estranho. . . vejo um rosto nele!
— Não há nenhum armário preto no quarto, e nunca houve — disse eu, voltando a sentar-me e abrindo o cor­tinado, de maneira a vê-la.
Você não está vendo aquele rosto? — insistiu ela, olhando para o espelho.
E, por mais que me esforçasse, não conseguia fazê-la compreender que era o seu próprio rosto; assim, levantei-me e o cobri com um xale.
— Ainda está lá, atrás do xale! — persistiu ela, angustiada. — E se mexeu. Quem é? Espero que não saia quando você se for! Oh, Nelly, o quarto está assombrado! Tenho medo de ficar só!
Peguei-lhe na mão e pedi-lhe que se controlasse, pois uma sucessão de arrepios lhe sacudiu o corpo e ela conti­nuava a olhar na direção do espelho.
— Não há ninguém aqui! — insisti. — Era o seu próprio rosto, Sra. Linton!
— O meu próprio rosto! — repetiu ela. — E o reló­gio está batendo meia-noite! Então, é verdade! É horrível!
Os seus dedos agarraram as roupas, cobrindo com elas os olhos. Tentei correr até a porta, com a intenção de chamar o Sr. Linton; mas um grito agudo obrigou-me a voltar. O xale caíra do espelho.
O que foi? — gritei. — Acorde, Sra. Linton! Aquilo ali é o espelho; e a senhora está se vendo refletida nele, e a mim também, a seu lado.
Trêmula e confusa, ela se agarrou a mim, mas a ex­pressão de pavor foi aos poucos dando lugar a um rubor de vergonha.
— Oh, meu Deus! Pensei que estava em casa — sus­pirou. — Pensei que estava no meu quarto, no Morro dos Ventos Uivantes. Estou muito fraca e confundo as idéias, por isso gritei. Não diga nada, mas fique aqui comigo, tenho medo de adormecer: tenho sonhos horríveis.
— Um sono profundo lhe faria muito bem, senhora — retruquei. — Espero que este sofrimento não a faça jejuar outra vez.
— Oh, se ao menos eu estivesse na minha cama, na minha antiga casa! — prosseguiu ela, amargamente, tor­cendo as mãos. — E aquele vento agitando os abetos, ao lado da janela. Deixe-me senti-lo! Vem diretamente da charneca! Deixe-me respirá-lo.
A fim de acalmá-la, abri a janela por alguns segundos. Uma rajada de vento gélido entrou; fechei a janela e voltei para o meu posto. Ela agora estava quieta, o rosto banhado em lágrimas. A exaustão do corpo apossara-se do seu espírito; a nossa arrebatada Catherine nada mais era, naquele momento, do que uma criança chorosa.
— Há quanto tempo estou fechada aqui? — perguntou ela, como que acordando subitamente.
— Desde a noite de segunda-feira — respondi —, e agora é a noite de quinta-feira, ou melhor, a manhã de sexta.
— O quê? Da mesma semana? — exclamou ela. — Tão pouco tempo assim?
— Não é pouco, para quem viveu apenas de água fria e maus pensamentos — observei.
— Parece-me que foi há tanto tempo! — murmurou ela, em tom de dúvida. — Deve ter sido há mais tempo. Lembro-me de estar na sala, depois de eles discutirem, de Edgar me provocar cruelmente e de eu subir para este quarto, desesperada. Assim que tranquei a porta, vi tudo preto e caí no chão. Não pude explicar a Edgar que tinha a certeza de que ia ter um acesso ou enlouquecer, se ele con­tinuasse a me irritar! Não podia falar nem pensar direito e ele não percebeu o meu sofrimento: só tive forças para fugir dele e da sua voz. Antes de voltar a mim, o dia co­meçava a clarear; Nelly, vou lhe contar o que pensei, o pensamento que não me tem largado e que quase me fez perder a razão. Pensei, enquanto estava caída no chão, com a cabeça encostada ao pé daquela mesa e os meus olhos mal distinguindo o quadrado cinzento da janela, que estava fechada na cama com painéis de carvalho, lá em casa; e o meu coração doía com uma tristeza tão grande que, ao acordar, não consegui lembrar-me de que era. Procurei descobrir o que poderia ser, mas, estranhamente, todos os últimos sete anos da minha vida pareceram desa­parecer. Não me recordava de um só minuto deles. Eu era criança; meu pai acabara de ser enterrado e o meu sofri­mento era provocado pela separação que Hindley ordena­ra, entre mim e Heathcliff. Eu estava sozinha, pela primei­ra vez; e, despertando de um rápido sono, após passar toda a noite chorando, levantei a mão para abrir os pai­néis . . . e a mão bateu no tampo da mesa! Arrastei-me pelo tapete e a memória voltou-me: a angústia deu lugar a um paroxismo de desespero. Não posso dizer por que me sentia tão desgraçada; deve ter sido uma loucura temporária, visto não haver praticamente causa. Mas suponha que aos doze anos eu tivesse sido afastada do Morro dos Ventos Uivantes e de todas as, minhas primeiras amizades, como aconteceu com Heathcliff, e de repente me visto conver­tida na Sra. Linton, proprietária da Granja Thrushcross e esposa de um estranho: exilada, portanto, expulsa daquilo que fora o meu mundo. . . Você pode fazer uma idéia do abismo em que me sentia atirada! Abane a cabeça à von­tade, Nelly, você contribuiu para transtornar-me! Devia ter falado com Edgar, devia, e feito com que ele me deixasse em paz! Oh, sinto-me ardendo! Como gostaria de estar lá fora! Como gostaria de ser novamente menina, meio sel­vagem e livre, rindo das injúrias e não quase enlouque­cendo ao peso delas! Por que razão mudei tanto? Por que motivo o meu sangue se tumultua com algumas palavras apenas? Tenho a certeza de que voltaria a ser a mesma, se pudesse estar entre as urzes, naquelas colinas. Abra outra vez a janela: escancare-a! Depressa, por que é que você não se mexe?
— Porque não quero que a senhora morra de frio — respondi.
— Você não quer é dar-me uma oportunidade para viver — retrucou ela, obstinadamente. — Mas eu ainda não estou inválida: vou abri-la eu mesma.
E, deslizando para fora da cama, antes que eu a pu­desse impedir, atravessou o quarto com andar cambaleante, abriu a janela e debruçou-se, sem ligar para o ar gelado, que parecia cortar-lhe a carne como se fosse uma faca. Tentei forçá-la a recolher-se. Mas logo vi que o delírio (pois ela estava delirando, convenceram-me disso os seus atos seguintes) lhe dera uma força que ultrapassava, de muito, a minha. Não havia luar e tudo em volta jazia em nebulosa escuridão. Nem uma luz brilhava nas casas, perto ou longe; todas se tinham apagado havia muito tempo; as do Morro dos Ventos Uivantes não se viam, mas ela afirmava que as via.
— Olhe! — exclamou, excitada. — Lá está o meu quarto, com a vela e as árvores balançando diante dele; a outra vela acesa está na mansarda de Joseph. Ele fica acordado até tarde, não fica? Está esperando que eu che­gue à casa para fechar o portão. Bom, vai ter de esperar um pouco, ainda. É uma viagem puxada e custosa; e temos de passar pela Capela de Gimmerton! Muitas vezes desafia­mos os seus fantasmas e um ao outro, ficando de pé entre as sepulturas e pedindo aos fantasmas que aparecessem. Mas, Heathcliff, se agora eu o desafiar, você aceitará? Se aceitar, eu ficarei do seu lado. Não jazerei lá sozinha: po­dem enterrar-me a quatro metros de profundidade e der­rubar a igreja por cima de mim, que eu jamais descansarei enquanto você não estiver comigo. Jamais!
Fez uma pausa e continuou, com um sorriso estranho:
— Ele está pensando: preferiria que eu fosse ao en­contro dele! Procure o caminho, então! Não através do cemitério atrás da igreja. Como você é lento! Não reclame, você sempre me seguiu!
Percebendo que não adiantava discutir com ela, esta­va pensando como poderia apanhar alguma coisa com que a cobrir, sem soltá-la (pois não queria deixá-la sozinha junto à janela aberta), quando, para minha consternação, ouvi a maçaneta girar e o Sr. Linton entrou no quarto. Tinha estado até àquela hora na biblioteca; e, ao passar pelo corredor, ouvira-nos falar e fora atraído pela curio­sidade, ou pelo medo do que tal conversa poderia significar, a horas tão tardias.
— Oh, Sr. Linton! — exclamei, antes que ele pu­desse fazer qualquer comentário sobre a cena que os seus olhos viam ou o aspecto do quarto. — Minha pobre pa­troa está doente e eu não sei o que faço; por favor, con­vença-a a voltar para a cama. Esqueça o que se passou, pois ela é difícil de guiar senão à sua própria maneira.
— Catherine está doente? — repetiu ele, apressando-se a entrar. — Feche a janela, Ellen! Catherine! O que...
Não pôde dizer mais nada. O abatimento da Sra. Lin­ton deixou-o sem fala e ele só fazia olhar de uma para a outra com uma expressão horrorizada.
— Tem estado aqui, trancada — prossegui —, sem comer e sem se queixar. Não deixou entrar ninguém até hoje à noite, por isso não pudemos comunicar-lhe o seu estado, pois também nada sabíamos dele; mas não há de ser nada.
Senti que as minhas explicações não o convenciam; o patrão franziu a testa. — Não há de ser nada, você acha, Ellen Dean? — disse ele, severamente. — Você há é de explicar-me mais claramente por que me manteve na igno­rância! — E tomou a esposa nos braços, olhando para ela com ar angustiado.
A princípio, ela não mostrou reconhecê-lo; era como se ele fosse invisível ao seu olhar abstrato. Mas o delírio ia e vinha, e aos poucos ela foi concentrando a atenção nele e descobrindo quem a segurava.
— Ah, você veio, não é, Edgar Linton? — disse, com irada excitação. — Você é uma dessas coisas que a gente sempre encontra quando menos as quer e que, quando são desejadas, nunca se encontram! Suponho que agora teremos uma carga de lamentações (sei que tere­mos!), mas elas não me impedirão de ir para o meu estrei­to lar, para o meu lugar de descanso, onde repousarei antes que a primavera termine! Não entre os Linton, repare, sob o teto da capela, e sim ao ar livre, com uma simples lápide; e você pode fazer o que quiser, ir ter com eles ou vir ter comigo!
— Catherine, que foi que você fez? — começou o meu amo. — Eu não significo mais nada para você? Você ama aquele desgraçado do Heath. . . ?
— Cale-se! — gritou a Sra. Linton. — Cale-se, pelo amor de Deus! Se você mencionar esse nome, eu termi­narei com tudo, pulando pela janela! Você pode possuir o que agora toca; mas a minha alma estará no topo daquela colina antes que você ponha as mãos em mim. Não preciso de você, Edgar: já não preciso de você. Volte para os seus livros. Ainda bem que você tem uma consolação, pois a que tinha em mim já se acabou.
— Ela está delirando, patrão — disse eu. — Tem estado a noite inteira falando coisas sem sentido; mas é só deixá-la sossegar e cuidar dela, que logo se recuperará. Doravante temos de ter muita cautela para não contra­riá-la.
— Não quero mais conselhos seus — replicou o Sr. Linton. — Você conhecia o temperamento da sua patroa e encorajou-me a discutir com ela. E não me dizer o que ela passou durante estes três dias! É demasiado cruel! Me­ses de enfermidade não a teriam afetado tanto!
Comecei a defender-me, achando que era injusto ser culpada pelo mau comportamento de outrem. — Sabia que o temperamento da Sra. Linton era obstinado e domi­nador — exclamei. — Mas não sabia que o senhor dese­java estimular-lhe esse temperamento! Não sabia que, só Para lhe fazer a vontade, eu deveria piscar o olho ao Sr. Heathcliff. Cumpri o dever de uma fiel servidora, ao con­tar-lhe o que se passava, e nunca imaginei que fosse rece­ber esta paga! Bem, a lição servirá para a próxima vez. Então, o senhor que trate de ver o que se passa com os seus próprios olhos!
— Da próxima vez que você me vier com alguma história, Ellen Dean, serei obrigado a despedi-la! — retru­cou ele.
— O senhor prefere, então, nada saber a respeito, não é? — perguntei. — Heathcliff tem a sua permissão para vir cortejar a Srta. Isabella e entrar, sempre que o senhor não está, propositadamente para envenenar a Sra. Linton contra p senhor?
Confusa como estava, Catherine tinha porém os ouvi­dos alerta à nossa conversa.
— Ah, quer dizer que Nelly bancou a traidora! — exclamou ela, arrebatadamente. — Nelly é minha inimiga. Bruxa! Então é verdade que você procura ferir-nos! Solte-me, que eu lhe ensinarei! Vou fazê-la berrar uma retra­tação!
Uma fúria de louca brilhava em seus olhos; lutava desesperadamente para se desprender dos braços de Linton. Eu não via por que prolongar aquela cena; e, resolvida a ir procurar o médico por minha conta, saí do quarto.
Ao atravessar o jardim, a caminho da estrada, num lugar onde há um gato de ferro na parede, para amarrar os cavalos, vi algo branco que se movia irregularmente, sem dúvida impelido por outra coisa que não o vento. Ape­sar da minha pressa, parei para ver o que era, para não me deixar levar pela convicção de que era uma criatura do outro mundo. Qual não foi a minha surpresa ao ver, mais pelo tato do que com a vista, a cadela de caça da Srta. Isabella, Fanny, suspensa por um lenço e quase estran­gulada. Apressei-me a soltar o animal, levando-o para o jardim. Tinha-o visto seguir a dona escada acima, quando ela se recolhera, e pensava como poderia ter ido parar ali e que pessoa malvada quisera matá-lo. Ao desatar o nó, pareceu-me ouvir, a distância, o galope das patas de um cavalo. Mas havia tantas coisas para ocupar o meu pen­samento, que mal liguei para aquilo, embora fosse estranho ouvir aquele barulho, às duas da manhã.
Felizmente, o Dr. Kenneth estava justamente saindo da sua casa para ir ver um doente na vila; assim que lhe falei da enfermidade de Catherine, resolveu acompanhar-me. Era um homem simples e rude: não teve escrúpulos em revelar as suas dúvidas de que ela conseguisse sobre­viver àquele segundo ataque, a menos que obedecesse mais às suas instruções do que da primeira vez.
— Nelly Dean — disse ele —, não posso deixar de pensar que deve haver uma outra razão para a doença. Que se passa na granja? Têm-nos chegado aos ouvidos coisas estranhas. Uma moça forte e animosa como Cathe­rine não adoece, assim por nada, nem gente como ela deve adoecer. É um trabalho e tanto fazê-los obedecer e recupe­rar-se. Como foi que a coisa começou?
— O meu patrão lhe dirá — respondi. — Mas o senhor conhece bem o gênio violento dos Earnshaw, e o da Sra. Linton ultrapassa todos eles. Posso lhe dizer que tudo começou por uma discussão. Ela teve uma espécie de desmaio, causado pela agitação; pelo menos é o que ela diz, pois no meio da discussão saiu correndo e se trancou no quarto. Depois recusou-se a comer e agora está alternadamente delirando ou procedendo como uma sonâmbula; reconhecendo os que a cercam, mas com a cabeça cheia de idéias estranhas e ilusões.
— Acha que o Sr. Linton ficará triste? — perguntou o Dr. Kenneth.
— Triste? Se algo acontecer, ele ficará aniquilado — repliquei. — Não o alarme mais do que for neces­sário.
— Bem, eu lhe disse para ter cuidado — lembrou o médico —, e ele terá de sofrer as conseqüências de não ter ligado para a minha recomendação! Não discutiu com o Sr. Heathcliff ultimamente?
— Heathcliff costuma visitar a granja — respondi —, mais por ter conhecido a Sra. Linton quando os dois eram crianças do que pelo fato de o patrão gostar da sua companhia. Agora, ele não deve voltar mais, devido as presunçosas aspirações que manifestou quanto à Srta. Isabella. Duvido que volte a ser recebido.
— E a Srta. Isabella liga para ele? — perguntou, novamente, o médico.
— Não sei, ela não me faz confidencias — respondi, não querendo continuar com aquele assunto.
— Eu sei, ela é uma sonsinha — comentou o médi­co, abanando a cabeça. — Faz o que bem entende! Mas é também uma bobinha. Soube, de fonte segura, que, ontem à noite (e que bela noite!) ela e Heathcliff estiveram mais de duas horas passeando na plantação que há por detrás da sua casa, e que ele insistiu para que ela não entrasse e sim montasse no cavalo dele e partissem juntos! Meu informante me disse que ela só conseguiu fazê-lo desistir dando-lhe a sua palavra de honra de que fugiria com ele no próximo encontro: quando seria, o meu informante não ouviu; mas diga ao Sr. Linton que fique alerta!
Essa notícia encheu-me de apreensão; pedi licença ao Dr. Kenneth e corri para casa, à frente dele. A cachorrinha ainda estava latindo no jardim. Levei um minuto abrindo-lhe o portão, mas, em vez de correr para a porta da casa, ela começou a andar em círculos, farejando a grama, e teria acabado por sair para a estrada, se eu não a tivesse agarra­do e carregado comigo. Ao chegar ao quarto de Isabella, as minhas suspeitas se confirmaram: estava vazio. Se eu houvesse ido ao quarto algumas horas antes, a notícia da doença da Sra. Linton talvez tivesse feito com que ela não cometesse aquela loucura. Que fazer, agora? Ainda havia uma leve possibilidade de alcançá-los. Contudo, eu não podia ir atrás deles; não ousava despertar a família e se­mear a confusão em casa; muito menos dizer o que se passava ao meu amo, absorvido como ele estava na sua preocupação e, certamente, incapaz de suportar um segun­do golpe! Não via o que fazer senão ficar calada e deixar as coisas tomarem o seu curso; assim, quando o doutor chegou, fui, com expressão transtornada, anunciá-lo. Ca­therine dormia um sono agitado: o marido conseguira acalmá-la um pouco e debruçava-se sobre o travesseiro, atento a todas as mudanças que lhe alteravam os traços.
Após examiná-la, o médico deu esperanças de recupe­ração, desde que mantivéssemos à volta dela uma atmosfera de perfeita e constante tranqüilidade. Para mim, aquilo significava que o perigo não era tanto de morte como de permanente alienação mental.
Não preguei olho, essa noite, e nem o Sr. Linton: aliás, nem nos deitamos; e todos os criados se levantaram muito antes da hora habitual, andando pela casa nas pontas dos pés e trocando murmúrios em vez de palavras. Todo mundo estava acordado, menos a Srta. Isabella, e não tar­daram a comentar esse fato; o irmão perguntou se ela já se tinha levantado e mostrou-se impaciente por vê-la, ao mesmo tempo que ferido pelo pouco caso que ela demons­trava em relação à cunhada. Eu tremia, de medo de que ele me mandasse chamá-la; mas tive poupada a tarefa de ser a primeira pessoa a proclamar a sua fuga. Uma das criadas, uma moça avoada, que fora bem cedo fazer uma compra em Gimmerton, subiu, ofegante, a escada e entrou no quarto, gritando:
— Oh, meu Deus, meu Deus! Que desgraça! Patrão, patrão, a senhorita. . .
— Não grite! — falei eu, depressa, irritada com aque­la falta de tato.
— Fale mais baixo, Mary. Que aconteceu? — per­guntou o Sr. Linton. — Que é que a senhorita tem?
— Ela fugiu! O Sr. Heathcliff fugiu com ela! — arquejou a moça.
— Não é possível! — exclamou Linton, levantando-se, agitado. — Não é possível; como é que isso lhe entrou na cabeça? Ellen Dean, vá procurá-la. É incrível; é im­possível!
À medida que falava, ia levando a criada para a porta e repetindo o pedido de que ela lhe dissesse as razões para dizer aquilo.
— Bem, eu encontrei, na estrada, um rapaz que traz leite pra cá — falou ela —, e ele perguntou se a gente não estava aflita aqui na granja. Pensei que ele estava falando da doença da patroa e respondi que estávamos. Aí ele falou: "Alguém foi atrás deles, não foi?" Fiquei parada, olhando pra ele. Aí ele viu que eu não sabia de nada e me contou que um senhor e uma moça tinham parado num ferrador de cavalo, perto de Gimmerton, pouco depois da meia-noite! E que a filha do ferrador se levantou para espiar quem era e os reconheceu. Reparou que o homem (o Sr. Heathcliff, ele não se confunde com outro) botou um soberano na mão do pai dela. A moça tinha uma capa tapando o rosto; mas pediu um copo de água e, quando bebeu, a capa caiu e a filha do ferrador a viu muito bem. O Sr. Heathcliff segurou as duas rédeas e saíram correndo, correndo bem depressa. A moça não falou nada com o pai, mas espalhou a notícia em Gimmer­ton, esta manhã.
Subi a escada e mais uma vez olhei para dentro do quarto de Isabella, confirmando, ao voltar, o que a criada dissera. O Sr. Linton voltara a sentar-se à beira da cama; ao me ver entrar, ergueu os olhos, leu nos meus o que eu tinha para dizer-lhe e voltou a baixá-los, sem dar qualquer ordem ou pronunciar uma só palavra.
— Devemos tentar alcançá-los e trazê-la de volta? — perguntei. — Que devemos fazer?
— Ela foi porque quis — respondeu o meu amo. — Tinha o direito de ir, se assim quisesse. Não me fale mais nela. De agora em diante, ela só é minha irmã de nome: não porque eu a repudie, mas porque ela me repudiou.
E isso foi tudo o que ele disse; não tratou de fazer nenhum inquérito, não mais a mencionou. Apenas me disse que mandasse tudo quanto era dela para a sua nova casa, assim que eu soubesse onde era.

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