segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O Morro dos Ventos Uivantes, Cap Xl

Muitas vezes, ao meditar sobre tudo isso, eu me le­vantava, tomada de súbito terror, e punha a minha touca, para ir ver como iam as coisas na fazenda. Convenci a mi­nha consciência de que era um dever avisar Hindley do que as pessoas diziam a seu respeito; mas logo me lembrava dos seus maus hábitos e, sem esperança de o beneficiar, desistia de voltar àquela casa.
Certa feita, passei pelo velho portão, afastando-me do caminho que levava a Gimmerton. Era aproximada­mente na época que a minha narrativa atingiu. A tarde estava clara e gelada, o chão, despido, seco e duro. Che­guei a uma pedra onde a estrada se divide numa encruzi­lhada: à esquerda, continua em direção à charneca; as letras M.V.U. apontam para o norte, G. para leste e G.T. para sudoeste, indicando respectivamente o Morro dos Ven­tos Uivantes, Gimmerton e a granja. O sol batia, amarelo, na cabeça cinzenta do velho pilar de pedra, fazendo-me recordar o verão; e, não sei dizer por quê, de repente lem­brei-me dos nossos tempos de criança, e uma onda de lembranças infantis me invadiu o coração. Vinte anos antes, aquele tinha sido um lugar predileto, para Hindley e para mim. Fiquei por muito tempo olhando para o poste e, inclinando-me, divisei um buraco, na pedra, toda roída pelas intempéries, ainda cheio de pedrinhas e conchas de caramujo, que nós costumávamos guardar ali, junto com outros tesouros; com uma nitidez de realidade, pareceu-me ver o meu antigo companheiro de brinquedos sentado na grama ressequida, sua cabeça quadrada e morena cur­vada para a frente e a sua pequena mão removendo a terra com um pedaço de ardósia. — Pobre Hindley! — excla­mei, involuntariamente. Estremeci: por um momento, jul­guei ver a criança levantar o rosto e olhar para mim! A visão logo desapareceu, mas senti um desejo irresistível de ir até o Morro. A superstição impelia-me: e se ele tivesse morrido, pensei, ou estivesse para morrer! Talvez fosse sinal de morte! Quanto mais me aproximava da casa, maior era a minha agitação; ao avistá-la, comecei a tremer. A apa­rição vencera-me na corrida: lá estava, olhando através do portão. Foi o que pensei, ao ver um rapazinho de olhos castanhos e cabelos cacheados encostando o rosto afogueado contra as grades. Refletindo melhor, achei que aquele devia ser Hareton, o meu Hareton, não muito alterado desde que eu o deixara, dez meses antes.
— Deus o abençoe, meu querido! — exclamei, esque­cendo logo os meus loucos temores. — Hareton, é Nelly! A sua governanta.
Ele recuou e apanhou uma grande pedra.
— Vim ver seu pai, Hareton — acrescentei, imagi­nando, pelo gesto dele, que Nelly, se é que ele se lembrava dela, não fora reconhecida como sendo eu.
Hareton ergueu a pedra para atirá-la; tentei aquie­tá-lo, mas não consegui; a pedra bateu na minha touca, e dos balbuciantes lábios do garotinho saiu uma torrente de pragas, pronunciadas com a costumeira ênfase e que lhe punham no rosto de criança uma chocante expressão de malignidade, muito embora talvez ele nem entendesse o significado do que dizia. Pode ter a certeza de que aquilo me entristeceu mais do que me zangou. Quase a chorar, tirei uma laranja do bolso e a ofereci a ele. Ele hesitou, mas logo a arrancou da minha mão, como se pensasse que eu só queria atraí-lo. Mostrei-lhe outra laranja, man­tendo-a longe do seu alcance.
— Quem lhe ensinou a falar assim, hein? — pergun­tei. — Foi o cura?
— O cura pode ir para o Diabo e você também! Me dá essa laranja! — replicou ele.
— Diga quem foi que lhe ensinou e eu lhe darei a laranja — insisti. — Quem é que lhe ensinou?
— O diabo do meu pai — foi a resposta.
— Ah, é isso o que você aprende com o seu pai? — continuei.
Ele pulou para apanhar a laranja, mas eu a ergui mais alto. — Que mais é que ele lhe ensina?
— Nada — falou ele. — Só pra eu sair da frente dele. Papai não pode comigo, porque eu digo palavrão pra ele.
— Ah! E quem lhe ensina a dizer palavrão para o seu pai? — perguntei. — O Diabo?
— Não — respondeu Hareton.
— Quem, então? — Heathcliff.
Perguntei-lhe se ele gostava do Sr. Heathcliff.
— Gosto! — respondeu.
Desejando saber por que ele gostava do outro, só pude entender: — Não sei; acho que é porque ele me vinga . . . fala palavrão para papai quando papai fala palavrão para mim. Diz pra eu fazer o que quiser.
— Quer dizer que o cura não o ensina a ler e a escrever? — persisti.
— Não. Me disseram que o cura ia ficar sem um den­te se ele botasse o pé na porta. Foi Heathcliff quem falou isso pra ele!
Dei-lhe a laranja e pedi-lhe que fosse dizer ao pai que uma tal Nelly Dean estava esperando para falar com ele, no portão do jardim. Hareton correu para casa; mas, ao invés de Hindley, quem apareceu na porta foi Heath­cliff. Dei meia-volta e corri pela estrada afora até chegar à encruzilhada, tão ofegante e assustada como se estivesse sendo perseguida pelo Demônio. Isso não tem que ver com o caso de Isabella Linton, a não ser que me fez aumentar a vigilância e procurar, de todas as maneiras, evitar que a má influência atingisse a granja, embora soubesse que cor­ria o risco de desencadear uma tempestade doméstica, se contrariasse os desejos da Sra. Linton.
Na seguinte vez em que Heathcliff veio de visita, a jovem Isabella estava no pátio, dando de comer aos pom­bos. Havia três dias que não falava com a cunhada, mas tampouco se queixava, o que já era uma grande coisa. Eu sabia que Heathcliff não tinha o hábito de mostrar-se desnecessariamente gentil para com a Srta. Linton. Mal a avistou, porém, tratou logo de deitar uma olhadela para a fachada da casa. Eu estava de pé, junto à janela da cozinha, mas escondi-me. Vi-o, então, atravessar o terreiro para onde ela se encontrava e dizer-lhe algo; ela pareceu encabulada e desejosa de correr para dentro, mas ele lhe segurou o braço. Ela desviou o rosto; ele, aparentemente, fizera alguma pergunta a que ela não queria responder. Heathcliff olhou novamente para a casa e, julgando que ninguém o via, teve a pouca-vergonha de beijá-la.
— Judas! Traidor! — exclamei. — Ainda por cima, você é hipócrita!
— Quem é hipócrita? — disse a voz de Catherine, atrás de mim. Tão entretida estivera eu a ver o que se passava lá fora, que não dera pela sua entrada.
— O desgraçado do seu amigo! — respondi, indigna­da. — Aquele canalha! Ah, ele já nos viu. Está entrando! Será que ele vai ter a capacidade de encontrar uma des­culpa plausível para cortejar a Srta. Isabella, depois de lhe ter dito que a detestava?
A Sra. Linton viu Isabella soltar-se e correr para o jardim. Um minuto depois, Heathcliff abria a porta. Não pude deixar de desabafar os meus sentimentos; mas Ca­therine ordenou que me calasse e ameaçou mandar-me para fora da cozinha, se eu ousasse ser insolente.
— Quem a ouvisse pensaria que você é a dona da casa! — exclamou ela. — Você está precisando de ser posta no seu lugar! Heathcliff, que é que você pretende? Já lhe disse para deixar Isabella em paz! Peço-lhe que o faça, a menos que esteja farto de vir aqui e queira que Linton lhe feche as portas!
— Que Deus o guarde de tentar! — retrucou o vilão. Confesso que o detestei. — Que Deus o conserve manso e paciente! O simples fato de vê-lo me põe furioso!
— Cale-se! — disse Catherine, fechando a porta interna. — Não me queira ver zangada. Por que razão você não acatou o meu pedido? Por acaso ela se atravessou propositadamente no seu caminho?
— Que é que você tem com isso? — rosnou ele. — Tenho o direito de beijá-la, se ela assim o desejar; e você não tem o direito de objetar. Não sou seu marido; você não precisa ter ciúmes de mim!
— Não tenho ciúmes de você — replicou Catherine. — Tenho é ciúmes por você. Desanuvie esse rosto: não consinto que você me faça essa cara! Se gosta de Isabella, case-se com ela. Mas você gosta mesmo? Diga a verdade, Heathcliff! Está vendo? Você não responde. Tenho a cer­teza de que você não gosta!
— E o Sr. Linton deixaria a irmã casar com esse homem? — perguntei.
— Deixaria, sim — respondeu ela decididamente.
— Pois podia poupar-se a esse trabalho — observou Heathcliff. — Eu podia muito bem casar com ela sem que ele aprovasse. Quanto a você, Catherine, vou lhe dizer algumas palavras, aproveitando a ocasião. Quero que você fique ciente de que eu sei que você me tem tratado mise­ravelmente . . . miseravelmente! Está me ouvindo? E se você pensa que eu não percebo é louca; e se pensa que posso ser consolado com palavras doces é idiota; e se pensa que vou sofrer sem me vingar hei de convencê-la do contrário, dentro de bem pouco tempo! Entretanto, muito obrigado por me haver contado o segredo da sua cunha­da: juro que tirarei o máximo proveito dele. E não se meta!
— Que nova faceta do seu caráter será esta? — ex­clamou a Sra. Linton, espantada. — Eu o tenho tratado miseravelmente. . . e você há de se vingar! Quer me dizer como, seu mal-agradecido? De que maneira o tratei mise­ravelmente?
— Não procuro vingar-me em você — replicou Heathcliff, com menos veemência. — O plano não é esse. O tirano esmaga os seus escravos, mas eles não se voltam contra ele; não, apenas esmagam os que estão por baixo deles. Você pode torturar-me até a morte, para se divertir, mas permita que eu me divirta um pouco no mesmo estilo e faça o possível por evitar insultar-me. Depois de ter arra­sado o meu palácio, não me construa uma choupana e pen­se que está sendo muito caridosa por isso. Se eu imaginas­se que você desejava mesmo que eu casasse com Isabella, acho que me suicidaria!
— Oh, o mal está, então, em eu não ter ciúmes! — exclamou Catherine. — Bom, não voltarei a oferecer-lhe uma esposa: é o mesmo que oferecer a Satã uma alma Perdida. Igual a Satã, você se compraz em fazer sofrer. Edgar já se recuperou do desprazer que a sua chegada lhe causou; começo a sentir-me segura e tranqüila, mas você, não querendo ver-nos em paz, surge resolvido a provocar uma briga. Brigue com Edgar, se quiser, Heathcliff, e engane a irmã dele: será o método mais eficiente de se vingar de mim.
Ambos se calaram. A Sra. Linton sentou-se à beira do fogo, agitada e taciturna. Cada dia era mais difícil para ela controlar-se. Heathcliff ficou de pé junto do fogão, os braços cruzados, ruminando os seus maus pensamentos; nessa posição os deixei, chamada pelo patrão, que queria saber o que demorava Catherine.
— Ellen — foi dizendo, assim que entrei —, você viu a senhora?
— Vi; ela está na cozinha — respondi. — Está trans­tornada pelo comportamento do Sr. Heathcliff; aliás, acho que é hora de cortar as visitas dele. Não se pode agir com demasiada tolerância, no ponto em que as coisas chega­ram. — E contei o que se passara no pátio e (até onde ousei) a discussão subseqüente. Achava que isso não pre­judicaria Catherine — a menos que ela assumisse a defesa do amigo. Edgar Linton mal pôde escutar-me até o fim. As suas primeiras palavras revelaram que não isentava a mulher de toda a culpa.
— Isto é impossível! — exclamou. — É horrível que ela o considere como amigo e queira obrigar-me a aceitá-lo também! Vá me chamar dois homens, Ellen. Catherine não ficará nem mais um momento discutindo com esse rufião. Chega de lhe fazer a vontade.
Desceu e, dizendo aos criados que esperassem no cor­redor, encaminhou-se, seguido por mim, para a cozinha. A discussão recomeçara. Pelo menos, a Sra. Linton argu­mentava com renovado vigor; Heathcliff aproximara-se da janela e, de cabeça baixa, parecia acovardado ante a fúria dela. Viu o meu patrão entrar e fez um gesto para que ela se calasse, ao que Catherine obedeceu, abruptamente, ao ver do que se tratava.
— Que vem a ser isto? — perguntou Linton, diri­gindo-se a ela. — Que falta de amor-próprio você deve ter para permanecer aqui, depois do que esse homem lhe disse? Suponho que, pelo fato de ser a maneira comum de ele falar, você não ache nada de mais; está habituada à baixeza dele e talvez imagine que eu também me posso habituar!
— Você esteve escutando à porta, Edgar? — pergun­tou Catherine, num tom especialmente calculado para irri­tar o marido, misto de indiferença e desprezo. Heathcliff, que erguera os olhos, soltou uma risada, aparentemente com o propósito de atrair a atenção do Sr. Linton. Conse­guiu; mas Edgar não pretendia deixar-se arrebatar.
— Tenho sido tolerante com o senhor — disse, em tom calmo. — Não que ignorasse o seu caráter degradado e inescrupuloso, mas porque achava que o senhor era ape­nas parcialmente responsável por isso; além do mais, Ca­therine desejava manter relações de amizade com o senhor e eu aquiesci. . . estupidamente. Sua presença é um vene­no moral, capaz de contaminar os mais virtuosos: por esse motivo e a fim de evitar piores conseqüências, vejo-me obrigado a negar-lhe doravante licença para entrar nesta casa e previno-o de que exigirei a sua partida imediata. Uma demora de três minutos torná-la-á involuntária e ignominiosa.
Heathcliff mediu o seu antagonista de alto a baixo, com um olhar cheio de desprezo.
— Cathy, este seu cordeiro quer se fazer passar por um touro! — comentou. — Corre o risco de partir a ca­beça contra os meus punhos. Meu Deus, Sr. Linton, lamen­to imenso que o senhor não seja digno de levar um bom murro!
O meu patrão olhou para o corredor e fez-me sinal para ir buscar os homens; não tinha a intenção de medir forças com o outro. Obedeci; mas a Sra. Linton, suspei­tando de algo, seguiu-me; e, quando tentei chamá-los, ela me puxou para trás, bateu a porta e trancou-a.
— Que belas maneiras! — disse, em resposta ao olhar de surpresa e raiva do marido. — Se você não tem cora­gem de atacá-lo, peça desculpas ou deixe que ele bata em você. Servirá para lhe ensinar a não mostrar mais coragem do que tem. Não, engolirei a chave, mas você não a apa­nhará! Bem recompensada estou pela minha bondade para com cada um de vocês! Depois de tolerar a fraqueza de um e o rancor do outro, a minha recompensa são duas amostras de cega ingratidão, absurdamente estúpida! Edgar, eu o estava defendendo; mas oxalá Heathcliff lhe dê uma boa surra, por ousar pensar mal de mim!
O efeito que essas palavras produziram nele foi o mesmo de uma surra. Tentou arrancar a chave de Cathe­rine, que a jogou bem no meio do fogo. Isso fez com que o Sr. Edgar começasse a tremer e seu rosto ficasse mor­talmente pálido. Não podia lutar contra a emoção; a angús­tia e a humilhação eram mais fortes do que ele. Apoiou-se às costas de uma cadeira e cobriu o rosto.
— Deus do céu! Nos velhos tempos, você seria sa­grado cavaleiro! — exclamou a Sra. Linton. — Fomos vencidos! Vencidos! Heathcliff jamais levantaria um dedo contra você. Ânimo, ninguém lhe tocará! Você não é um cordeiro, e sim uma lebrezinha.
— Desejo-lhe muitas felicidades com esse seu covar­de, Cathy! — disse Heathcliff. — Parabéns pela sua esco­lha. Pensar que você preferiu essa coisa trêmula e encolhi­da a mim! Jamais lhe bateria com o meu punho, mas o chutaria com o meu pé, e com grande satisfação. Ele está chorando ou vai desmaiar de medo?
O sujeito aproximou-se e empurrou a cadeira em que Linton se encostava. Antes não o fizesse: o meu patrão endireitou-se e deu-lhe um soco na garganta que teria posto por terra um homem menos corpulento. Heathcliff ficou um minuto sem ar; enquanto ele sufocava, o Sr. Linton saiu pela porta dos fundos para o pátio, dirigindo-se dali para a porta principal.
— Pronto! Agora você não vai poder mais vir cá! — gritou Catherine. — Vá embora depressa; ele vai decerto voltar com um monte de pistolas e meia dúzia de criados. Se de fato ouviu o que dizíamos, nunca mais lhe perdoará. Você me fez bem mal, Heathcliff! Mas vá depressa! Pre­firo ver Edgar em maus lençóis a ver você.
— E você acha que eu vou embora com esse murro me queimando a garganta? — gritou ele. — Com mil dia­bos, nunca! Antes de sair daqui, hei de lhe partir as cos­telas, como se ele fosse noz podre! Se não o fizer agora, juro que ainda o matarei; por isso, se você lhe preza a existência, deixe-me ajustar contas com ele! Vá buscá-lo.
— Ele não virá — disse eu, mentindo. — O cocheiro e os dois jardineiros estão lá fora; certamente o senhor não há de querer ser jogado na estrada por eles! Cada um deles tem um cajado na mão, e sem dúvida o meu patrão está vendo, de uma das janelas da sala, se eles cumprem as ordens recebidas.
Os jardineiros e o cocheiro estavam lá fora; mas Lin­ton estava também com eles. Já tinham entrado no pátio. Pensando melhor, Heathcliff resolveu evitar lutar com os três criados; pegou nas tenazes, arrebentou o trinco da porta e fugiu bem na hora em que eles entraram.
Muito nervosa, Catherine ordenou-me que subisse com ela. Não sabia que eu tinha contribuído para tudo aquilo, e eu desejava ardentemente que ela não o desco­brisse.
— Parece que vou enlouquecer, Nelly! — exclamou, jogando-se no sofá. — Sinto-me como se mil martelos me malhassem a cabeça! Diga a Isabella para não chegar perto de mim; tudo isto se deve a ela, e não sei o que faria, se a visse. E, Nelly, diga a Edgar, se o vir ainda esta noite, que corro o risco de adoecer gravemente. Gostaria que isso acontecesse. Ele me fez sofrer e gostaria de assustá-lo. Além do mais, ele pode começar a queixar-se ou a censurar-me; eu não poderia ficar calada, e Deus sabe onde terminaríamos! Você me faz isso, querida Nelly? Você bem sabe que eu não tenho culpa nenhuma no que se passou. Quem o mandou escutar à porta? Heathcliff falou coisas horríveis, depois que você saiu; mas eu poderia tê-lo afas­tado de Isabella, e o resto nada significava. Agora, tudo foi por água abaixo, pela mania que têm certas pessoas de querer ouvir falar mal de si próprias! Se Edgar não tivesse escutado a nossa conversa, teria sido melhor até para ele. Sim, porque, quando ele começou a censurar-me "depois de eu ter ficado rouca de tanto me zangar com Heathcliff por causa dele, francamente, não liguei para o que se pu­dessem fazer um ao outro; principalmente porque, de qual­quer maneira que aquilo terminasse, eu sabia que todos nos acabaríamos separados, sei lá por quanto tempo! Pois bem, se eu não puder conservar Heathcliff como amigo, se Edgar se mostrar mesquinho e ciumento, eu tentarei fazê-los sofrer com o meu sofrimento. Será uma boa ma­neira de acabar com tudo! Mas reservarei isso como últi­mo recurso. Até aqui, Linton tem procurado não me irritar; você tem de lhe mostrar o perigo de mudar de atitude e lembrar-lhe meu temperamento apaixonado, que pode, quando provocado, acabar mal. Gostaria que você varresse essa apatia do rosto e se mostrasse mais preocupada co­migo.
A impassibilidade com que recebi aquelas instruções devia, realmente, ser exasperante, pois elas me eram da­das com absoluta sinceridade; mas eu achava que uma pessoa capaz de fazer render os seus acessos de arrebata-mento e de premeditá-los bem poderia, por meio da força de vontade, controlar-se razoavelmente, mesmo quando sob a influência deles; e não desejava "assustar" o patrão, como ela queria, e aumentar-lhe os aborrecimentos só para satisfazer o egoísmo dela. Por conseguinte, calei-me, ao ver o patrão dirigir-se para a sala; mas tomei a liberdade de voltar, a fim de ouvir se recomeçariam a discutir. Ele foi o primeiro a falar.
— Fique onde está, Catherine — disse, sem sombra de raiva na voz, mas com imensa tristeza. — Eu não vou demorar. Não vim para discutir nem para me reconciliar, apenas para saber se, após o que aconteceu hoje, você pretende continuar com a sua amizade por.. .
— Oh, pelo amor de Deus! — interrompeu a minha patroa, batendo com o pé no chão. — Pelo amor de Deus, não falemos mais nisso! O seu sangue é demasiado gelado para ficar febril; as suas veias estão cheias de gelo; mas o meu sangue está fervendo, e não posso ver tal algidez.
— Se quiser ver-se livre de mim, responda à minha pergunta — insistiu o Sr. Linton. — Você tem de respon­der, e toda essa violência não me dá medo. Descobri que você é capaz de tanto estoicismo como qualquer outra pessoa, quando lhe interessa. Vai abdicar de Heathcliff ou vai abdicar de mim? É impossível ser minha amiga e ami­ga dele ao mesmo tempo; e eu exijo saber quem você escolherá.
— Pois eu exijo que me deixem em paz! — gritou Catherine, furiosa. — Exijo! Não vê que eu mal me agüen­to em pé? Edgar. . . deixe-me em paz!
Tocou a campainha até arrebentá-la; entrei como se nada fosse. Era para acabar com a paciência de um santo toda aquela exibição de fúria! Lá estava ela, batendo com a cabeça contra o braço do sofá e rangendo os dentes — até parecia que os ia esmagar! O Sr. Linton olhava para ela com dó e medo súbitos. Disse-me para ir buscar um copo de água. Ela não podia falar. Trouxe um copo cheio e, como se recusasse a beber, salpiquei-lhe água no rosto. Imediatamente ela se inteiriçou e revirou os olhos, ao mes­mo tempo em que as faces, tornadas lívidas, assumiam a rigidez da morte. Linton ficou horrorizado.
— Não é nada! — sussurrei. Não queria que ele ce­desse, embora eu própria sentisse medo.
— Ela tem sangue nos lábios! — exclamou ele, estre­mecendo.
— Não ligue! — respondi, asperamente. E contei-lhe como ela decidira, antes de ele entrar, encenar um acesso. Não tive a prudência de baixar a voz, e ela me ouviu; pois se levantou: o cabelo esvoaçando-lhe pelos ombros, os olhos dardejantes, os músculos dos braços e do pescoço pulando de maneira fora do normal. Pensei que tivesse partido algum osso; mas ela apenas olhou à sua volta um momento e logo saiu da sala. O patrão mandou-me segui-la, o que fiz; mas, ao chegar à porta do quarto dela, Ca­therine não me deixou entrar.
Como não descesse para o desjejum, na manhã se­guinte, subi para saber se queria que eu o levasse ao quar­to. — Não! — respondeu ela, peremptoriamente. A mesma pergunta foi feita ao almoço e ao chá; e novamente no dia seguinte. Por seu lado, o Sr. Linton passava o tempo na biblioteca e não perguntava pela esposa. Ele e Isabella tinham tido uma conversa de uma hora, durante a qual o Sr. Linton tentara extrair dela qualquer sentimento de hor­ror pelos avanços de Heathcliff; mas nada pôde concluir das suas respostas evasivas e foi obrigado a encerrar a conversa, acrescentando, porém, uma solene advertência no sentido de que, se ela tivesse a loucura de encorajar tão indigno pretendente, as relações entre ambos estariam automaticamente cortadas.

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