segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O Morro dos Ventos Uivantes, Cap Vll

Cathy demorou-se cinco semanas na Granja Thrush­cross, ou seja, até o Natal. Por essa altura, o seu tornozelo sarara completamente e as suas maneiras haviam melhorado muito. Durante esse tempo, a patroa visitou-a freqüente­mente e deu início ao seu plano de reforma, apelando para a sua vaidade feminina através de roupas finas e lisonjas, ao que Cathy respondeu prontamente. Assim, ao invés de vermos chegar uma pequena selvagem, ofegante e descabelada, correndo para nos abraçar a todos, vimos pular, de um belo pônei negro, uma jovem de aspecto digno, com lindos cachos castanhos pendendo de um chapéu com plumas e uma longa roupa de montaria, que ela era obrigada a suspender com ambas as mãos para poder andar. Hin­dley ajudou-a a saltar do cavalo, exclamando, prazeroso: — Cathy, mas você está uma beldade! Quase não a conhe­cia; você parece uma autêntica dama. Isabella Linton não se pode comparar com ela, não acha, Frances? — Isabella não tem tantos predicados naturais — respondeu sua es­posa —, mas Cathy tem de tomar cuidado para não se deixar negligenciar novamente. Ellen — ordenou ela, diri­gindo-se a mim —, ajude a Srta. Catherine a tirar a roupa de montaria. . . Fique quietinha, querida, você assim des­mancha os cachos. . . deixe-me tirar-lhe o chapéu.
Tirei-lhe a roupa de montaria, e por debaixo dela apareceu, esplendoroso, um belo vestido de seda escocesa, usado com culotes brancos e sapatos de verniz. Embora os seus olhos brilhassem de alegria, ao ver os cães virem correndo dar-lhe as boas-vindas, mal lhes tocou, com medo de que eles lhe estragassem a esplêndida toalete. Beijou-me muito de leve: eu estava coberta de farinha do bolo de Natal e não convinha abraçar-me. Depois, olhou em volta, à procura de Heathcliff. O Sr. e a Sra. Earnshaw estavam ansiosos por ver como seria o encontro dos dois, pensando que através dele poderiam avaliar as esperanças que havia quanto à separação dos dois amigos.
Não foi fácil descobrir Heathcliff. Se, antes da ausên­cia de Catherine, ele fora desleixado e ninguém se preo­cupara com o seu aspecto, desde então a coisa piorara dez vezes mais. Ninguém, a não ser eu, se preocupava com chamar-lhe a atenção para a sujeira e com pedir-lhe que se lavasse, pelo menos uma vez por semana, pois os garotos daquela idade não costumam ter mesmo gosto pela água e pelo sabão. Por conseguinte, sem mencionar já as suas roupas, que havia três meses não mudava e estavam co­bertas de pó e de lama, e o seu cabelo grosso e desgrenhado, tanto o seu rosto como as suas mãos estavam horrivel­mente negros. Era bem desculpável que ele se tivesse escondido atrás do sofá, ao ver chegar tão graciosa don­zela, em vez da sua contra-partida feminina, como espe­rara. — Heathcliff não está? — perguntou ela, tirando as luvas e mostrando mãos maravilhosamente clareadas de não fazer nada e de não andar pelos campos.
— Heathcliff, pode sair daí — exclamou o Sr. Hind­ley, divertindo-se com a situação e satisfeito da má im­pressão que ele não deixaria de causar. — Pode vir dar as boas-vindas à Srta. Catherine, como os outros criados.
Mas Cathy, vendo onde o amigo estava escondido, correu a abraçá-lo; beijou-o sete ou oito vezes nas faces, até que parou e, recuando, soltou uma risada: — Nossa, como você está preto! Que engraçado está, com esse ar zangado! Acho que estou demasiado acostumada a Edgar e Isabella Linton. Então, Heathcliff, será que me esqueceu?
Tinha certa razão em fazer essa pergunta, pois a ver­gonha e o orgulho o faziam permanecer imóvel.
— Dê-lhe a mão, Heathcliff — interferiu o Sr. Earn­shaw, condescendentemente. — Uma vez ou outra, isso é permitido.
— Não — replicou o rapaz, recuperando, finalmente, a fala. — Não suporto que riam de mim. Não permito isso!
E teria corrido dali, se Cathy não o houvesse segurado.
— Eu não quis rir de você — disse ela. — Vamos, Heathcliff, dê-me a mão! Por que é que você está tão ofendido? Achei-o engraçado, mas é porque você não lavou o rosto e escovou o cabelo. Está tão sujo!
Dizendo isso, Cathy olhou para os dedos dele, que ela segurava na mão, e depois para o seu vestido, que ela temia haver sujado.
— Você não precisava ter me tocado! — lançou ele, seguindo o olhar dela e arrebatando a mão. — Estou sujo porque quero; gosto de estar sujo e quero estar sujo.
Com isso saiu da sala, em meio aos olhares divertidos do patrão e da patroa e da consternação de Catherine, que não podia compreender por que os seus comentários haviam produzido nele uma tal demonstração de fúria.
Depois de ter ajudado a recém-chegada, posto os meus bolos no forno e tornado a cozinha e toda a casa alegre e confortável, com bons fogos, como convém à noite de Natal, preparei-me para cantar as minhas canções natali­nas, não obstante as afirmações de Joseph, que considerava serem elas pouco religiosas. Retirara-se para orar no seu quarto, e o Sr. e a Sra. Earnshaw estavam mostrando a Catherine os presentes que tinham comprado para ela dar aos jovens Linton, em agradecimento pela acolhida. Ti­nham-nos convidado a passar o dia de Natal no Morro dos Ventos Uivantes e o convite fora aceito, com uma con­dição: a Sra. Linton pedira que os seus queridos filhos não tivessem contato com "aquele rapaz horrível".
Nessas circunstâncias, fiquei só, sentindo o rico aroma dos bolos e contemplando os brilhantes utensílios da cozi­nha, o relógio, enfeitado com azevinho, as taças de prata, arrumadas numa bandeja e já prontas para a ceia, e, acima de tudo, admirando a impecável limpeza do chão, meu cuidado especial. Lembrei-me, então, de como o velho Earnshaw costumava entrar na cozinha, quando tudo já estava em ordem, elogiando o meu trabalho e pondo-me na mão um xelim, à guisa de presente de Natal; isso me fez recordar o seu carinho por Heathcliff e o seu temor de que ele não fosse bem tratado após a sua morte; o que, por sua vez, me fez pensar na atual situação do pobre rapaz, tirando-me a vontade de cantar e dando-me a de chorar. Mas, em vez de derramar lágrimas por ele, era me­lhor procurar remediar a sua situação: levantei-me e saí à procura dele. Não precisei ir longe: encontrei-o esco­vando o lustroso pêlo do novo pônei na cavalariça, e dando de comer aos outros animais, como era seu costume.
— Apresse-se, Heathcliff! — falei. — Está tão agra­dável lá na cozinha, e Joseph está no quarto dele! Vamos, deixe-me pô-lo bonito, antes que Cathy desça. Vocês po­dem sentar-se diante da lareira e conversar até a hora de dormir.
Ele continuou com a sua ocupação, sem sequer virar a cabeça para mim.
— Então. . . você não vem? — insisti. — Fiz um bolinho para cada um de vocês; e você vai precisar de meia hora para se arrumar.
Esperei cinco minutos, mas, não recebendo resposta, resolvi ir embora. Catherine ceou com o irmão e a cunhada. Eu e Joseph fizemos uma refeição bem pouco sociável, temperada de censuras, por um lado, e de impertinência, pelo outro. O bolo e o requeijão de Heathcliff ficaram toda a noite na mesa, para os duendes. Ele deu um jeito de continuar a trabalhar até as nove e depois subiu direto para o quarto. Cathy ficou de pé até tarde, pois tinha um mundo de coisas a dispor, com relação à visita dos seus novos amigos. Foi à cozinha falar com o seu velho amigo, mas não o encontrou e, depois de perguntar o que lhe tinha acontecido, foi-se embora. Na manhã seguinte, Heathcliff levantou-se cedo e levou o seu mau humor para a charne­ca, só voltando quando a família já tinha saído para a igreja. O jejum e a reflexão pareciam ter-lhe feito bem. Andou algum tempo à minha volta e, tendo adquirido coragem suficiente, exclamou, de repente:
— Nelly, dê-me roupa limpa. Quero parecer bem.
— Ótimo, Heathcliff, já não é sem tempo — respon­di. — Você feriu a pobre Catherine, e talvez ela se arre­penda de ter voltado para casa! Até parece que você a inve­ja por ela ser mais festejada do que você.
A idéia de invejar Catherine era incompreensível para ele, mas não a idéia de havê-la ferido.
— Ela disse que estava ferida? — perguntou, com ar muito sério.
— Chorou, quando eu lhe disse que você se tinha ido, esta manhã.
— Ora, eu também chorei ontem à noite — replicou ele —, e tinha muito mais razão para chorar do que ela.
— Sim, a sua razão foi ir para a cama com o cora­ção cheio de orgulho e o estômago vazio — disse eu. — As pessoas orgulhosas trazem sofrimento para si mesmas. Mas, se você está envergonhado, deve pedir-lhe perdão, quando ela voltar da igreja. Deve chegar junto dela e beijá-la e dizer-lhe. . . bem, você sabe melhor do que eu o que lhe dizer; mas faça-o sinceramente e não como se a julgasse transformada numa estranha, só por andar bem vestida. Agora, embora tenha de fazer o almoço, vou arranjar tempo para arrumá-lo, de modo que Edgar Linton pareça insignificante ao seu lado, o que de fato ele parece. Você é mais novo, mas bem mais alto e de ombros bem mais largos: podia derrubá-lo num abrir e fechar de olhos, não acha?
O rosto de Heathcliff desanuviou-se um instante, mas logo voltou a encobrir-se, e ele suspirou.
— Nelly, mesmo que eu o derrubasse vinte vezes, isso não o tornaria menos bonito nem a mim menos feio. Como eu queria ter cabelo louro e pele clara, vestir-me e comportar-me bem e ter uma chance de vir a ser tão rico quanto ele!
— E chorar a toda hora pela mamãe — acrescentei —, e tremer se um garoto do campo levantasse o punho contra você, e ficar metido em casa sempre que chovesse. Oh, Heathcliff, você está se mostrando bem bobo! Che­gue-se para o espelho, que eu lhe mostrarei o que você deveria desejar. Está vendo essas duas rugas entre os olhos? E essas sobrancelhas espessas que, em vez de se­rem arqueadas, parecem afundar no meio? E esses dois demônios negros, de tal maneira enterrados, que nunca abrem francamente as suas janelas, mas brilham por trás delas, qual espiões do Diabo? Você deve aprender a des­fazer essas rugas, a erguer abertamente essas pálpebras e a transformar os demônios em anjos confiantes e inocentes, não suspeitando nem duvidando de nada e vendo sempre amigos onde não se tem a certeza de haver inimigos. Não assuma a expressão de um cão danado, que só espera do mundo pontapés, embora odeie o mundo e os pontapés pelo que eles lhe fazem sofrer.
— Por outras palavras, devo desejar os grandes olhos azuis de Edgar Linton e a sua testa lisa — retrucou ele. — Desejo. . . mas isso não me serve de nada.
— Um bom coração ajuda a ter um belo rosto, meu rapaz — continuei —, mesmo que a pessoa seja mons­truosa. Saiba que um coração empedernido é capaz de tornar a pessoa mais bonita num verdadeiro monstro. Agora que você terminou de se lavar, de se pentear e de fazer cara feia, diga-me se não se acha bem bonito. . . Eu acho. Você parece um príncipe disfarçado. Quem sabe se seu pai não foi imperador da China, ou sua mãe uma rainha indiana, cada qual capaz de comprar, com a renda de apenas uma semana, o Morro dos Ventos Uivantes e a Granja Thrushcross? Quem sabe se você não foi raptado por marinheiros perversos e trazido para a Inglaterra? Se eu fosse você, alimentaria a idéia de um nascimento nobre, e esse pensamento me daria coragem e dignidade para suportar a opressão de um pequeno fazendeiro!
À medida que eu falava, Heathcliff ia aos poucos perdendo o ar ofendido e ficando bem agradável de se ver. De repente, porém, a nossa conversa foi interrompida por um barulho de rodas entrando no pátio. Ele correu à janela e eu para a porta, a tempo de ver os dois jovens Linton descer da carruagem familiar, abafados em capotes e peles, enquanto os Earnshaw desmontavam dos seus cavalos, pois no inverno costumavam cavalgar até a igreja. Catherine pegou em cada um dos garotos pela mão, levou-os para casa e fê-los sentar-se diante do fogo, o que fez voltar a cor aos seus rostos brancos.
Disse a Heathcliff que se apressasse a mostrar-se simpático, ao que ele obedeceu prontamente; mas quis a má sorte que, ao mesmo tempo em que ele abriu a porta da cozinha para a sala, Hindley abrisse a outra. Irritado por vê-lo limpo e sorridente ou talvez desejoso de manter a promessa que fizera à Sra. Linton, o fato é que Hindley o empurrou de volta para a cozinha, ordenando a Joseph que não o deixasse entrar na sala e o mandasse para o sótão até acabarem de almoçar, pois ele meteria os dedos nos doces e roubaria as frutas, se o deixassem na cozinha um único minuto.
— Não, meu senhor — ousei responder —, ele não toca em nada; embora eu ache que deva provar de tudo, como todos nós.
— Ele vai provar é a força da minha mão, se o pego aqui embaixo antes de cair a noite — gritou Hindley. — Fora daqui, seu vagabundo! O quê, você está tentando bancar o elegante, hein? Espere só que eu lhe puxe o cabelo. . . e veja se ele não fica mais comprido!
— Já está comprido demais — comentou o jovem Linton, espiando da porta. — Não sei como não lhe faz doer a cabeça. Parece uma crina de cavalo, caindo-lhe sobre os olhos!
Fez esse comentário sem qualquer intenção de insul­tar; mas o temperamento violento de Heathcliff não esta­va preparado para suportar qualquer impertinência daquele a quem ele parecia, já então, odiar como a um rival. Pegou numa terrina cheia de molho de maçã quente (a primeira coisa que encontrou) e despejou-a no rosto e no pescoço de Edgar, que imediatamente se pôs a gritar, fazendo com que Isabella e Catherine acorressem. O Sr. Earnshaw agar­rou no culpado e levou-o para o seu quarto, onde sem dúvida lhe aplicou um drástico remédio para lhe acalmar os nervos, pois voltou vermelho e ofegante. Peguei no pano dos pratos e esfreguei o nariz e a boca de Edgar, dizendo-lhe que era bem-feito, por se ter metido onde não era chamado. A irmã começou a chorar que queria ir para casa e Cathy ficou atônita, o rosto afogueado.
— Você não devia ter falado aquilo para ele! — disse ela a Edgar. — Ele estava irritado e agora você estragou tudo. Ele vai levar uma surra e eu não posso suportar isso! Não vou poder almoçar. Por que foi que você lhe disse aquilo, Edgar?
— Eu não falei com ele — soluçou o garoto, esca­pando das minhas mãos e acabando de se limpar com o seu lenço de cambraia. — Prometi à mamãe que não fala­ria uma palavra com ele e não falei.
— Ora, não chore — disse Catherine, com desprezo. Você não vai morrer. Não piore ainda mais a situação; meu irmão vem vindo, pare de chorar! E você também, Isabella! Será que alguém a machucou?
— Vamos, crianças, para a mesa! — exclamou Hind­ley, entrando na sala. — Aquele bruto esquentou-me o sangue. Da próxima vez, Edgar, faça você mesmo justiça, a muque. Vai ver como lhe abre o apetite!
Os dois visitantes voltaram a sorrir à vista da esplên­dida mesa. Estavam famintos, após a viagem, e, como nada de mau lhes acontecera, não tardaram a se reanimar. O Sr. Earnshaw serviu grandes pratadas e sua esposa iniciou uma conversa animada. Eu estava atrás da cadeira dela e fiquei triste de ver Catherine, olhos secos e ar indiferente, começar a cortar uma asa de ganso. "Que menina insen­sível", pensei. "Com que facilidade se esquece do sofri­mento do velho amigo! Nunca imaginei que fosse tão egoísta." Levou uma garfada à boca, mas voltou a pousá-la no prato; suas faces ruborizaram-se e as lágrimas escor­reram por elas. Deixou cair o garfo no chão e abaixou-se para apanhá-lo, escondendo-se atrás da toalha para ocultar a sua emoção. Não mais a chamei insensível; percebi que ela sofria muito e ansiava por uma oportunidade de sair da sala ou de ir visitar Heathcliff, que fora trancado numa mansarda, pelo patrão, conforme descobri ao tentar levar-lhe um prato de comida.
À noite houve um baile. Cathy suplicou que libertas­sem o amigo, pois Isabella Linton não tinha par; mas as suas súplicas foram em vão e encarregaram-me de suprir a deficiência. Toda a tristeza se dissipou e a alegria aumen­tou com a chegada da banda de Gimmerton, composta de quinze instrumentos: um trompete, um trombone, clarine­tes, fagotes, trompa de pistões e uma viola, além de can­tores. Essas bandas costumam percorrer as casas impor­tantes e receber contribuições natalinas, e foi para nós um prazer ouvi-la. Depois de entoadas as habituais can­ções de Natal, pedimos-lhes que interpretassem canções populares. A Sra. Earnshaw gostava de música, e tivemos uma bela noitada.
Catherine também gostava de música, mas alegou que soava melhor ouvida do alto da escada e subiu mesmo sem luz. Fui atrás dela. Fecharam a porta embaixo, sem dar pela nossa ausência, de tal maneira a sala estava cheia de gente. Ela não parou no alto da escada; continuou a subir, até a mansarda em que Heathcliff estava preso, e chamou-o. Por algum tempo, ele se recusou, teimosamente, a responder; mas ela insistiu e finalmente conseguiu per­suadi-lo a conversar através das tábuas. Deixei os pobre­zinhos à vontade, até me parecer que as canções estavam chegando ao fim e que os músicos iam querer cear; subi, então, a escada para preveni-la. Em vez de encontrá-la do lado de fora, ouvi a voz dela lá dentro. O diabinho passa­ra, pelo telhado, através da clarabóia de uma mansarda, para a clarabóia vizinha, e foi-me muito difícil convencê-la a sair. Quando, finalmente, ela saiu, Heathcliff veio com ela e Cathy teimou para que eu o levasse para a cozinha, já que Joseph fora para a casa de um vizinho, a fim de não ouvir os nossos "salmos demoníacos", conforme os chamava. Respondi que não pretendia, em absoluto, deso­bedecer às ordens recebidas; mas como o prisioneiro nada tivesse comido desde o almoço do dia anterior, fingiria ignorar essa proibição do Sr. Hindley. Heathcliff desceu; coloquei-lhe um banco à beira do fogo e ofereci-lhe um monte de coisas gostosas, mas ele estava sem vontade de comer, e todos os meus esforços no sentido de distraí-lo foram por água abaixo. Apoiou os cotovelos nos joelhos e o queixo nas mãos, e permaneceu mergulhado em pro­funda meditação. Quando lhe perguntei em que pensava, respondeu, gravemente:
— Estou tentando imaginar como me vingarei de Hindley. Não me importo de esperar, desde que no fim consiga o que quero. Só espero que ele não morra antes!
— Que horror, Heathcliff! — exclamei. — Cabe a Deus castigar os maus; nós devemos saber perdoá-los.
— Não, Deus não terá essa satisfação; ela será só minha — retrucou ele. — Só queria saber qual a melhor maneira! Deixe-me a sós, que preciso pensar; enquanto Penso, não sofro. . .
Mas, Sr. Lockwood, esqueço-me de que tudo isso não lhe pode interessar. Que idéia a minha, de estar aqui falando sem parar, quando o senhor está cabeceando e o seu mingau está frio! Podia ter contado da história de Heathcliff tudo quanto o senhor precisa saber em meia dúzia de palavras.
Assim dizendo, a governanta levantou-se e começou a arru­mar a sua costura; mas eu não tinha coragem de me afastar da lareira e estava muito longe de cabecear.
— Fique mais um pouco, Sra. Dean — pedi —, mais meia hora! Fez muito bem em contar a história com de­talhes. Assim mesmo é que eu gosto; peço-lhe que continue. Interessam-me todas as pessoas que a senhora mencionou.
— Mas o relógio já vai bater onze horas.
— Não faz mal, não estou acostumado a me deitar cedo. À uma ou às duas é o suficiente para quem só se levanta às dez da manhã.
— O senhor não deveria acordar tão tarde. O melhor da manhã já se foi antes das dez horas. Quem até as dez ainda não fez nada corre o risco de não ter tempo para fazer o que precisa.
— Não obstante, Sra. Dean, fique mais um pouco. Amanhã só devo sair da cama lá pela tarde. Estou prog­nosticando uma gripe, pelo menos.
— Espero que não — retrucou a boa mulher. — Bem, vou pular uns três anos. Durante esse espaço de tempo, a Sra. Earnshaw. . .
— Não vai pular nada! Sabe como é, quando a gente está sentado, sozinho, vendo uma gata lamber o seu filho­te, e presta tal atenção à operação que, se a gata se esque­cer de lamber uma orelha, é o bastante para se ficar furio­so? Como é que a senhora classificaria essa atitude?
— Diria que era uma atitude muito preguiçosa.
— Ao contrário, uma atitude extremamente ativa, em que a mente segue algo com todo o interesse. Pois é a minha, neste momento. Por isso lhe peço que continue como até aqui. Vejo que a gente destas regiões adquire, sobre a gente das cidades, a mesma vantagem que a aranha de uma masmorra tem sobre a aranha de uma cabana; e, contudo, a maior atração não se deve inteiramente à situação do espectador. A gente aqui leva uma vida de maior autenticidade, mais concentrada em si mesma e menos superficial, menos frívola. Parece-me quase possível amar a vida aqui; e eu descria totalmente de que algum amor pudesse resistir a um ano. Uma das situações faz lembrar o colocar-se um homem faminto diante de um único prato, no qual ele pode concentrar todo o seu ape­tite e fazer-lhe justiça; ao passo que a outra é como apre­sentar-lhe uma mesa posta por mestres da culinária fran­cesa: talvez ele possa regalar-se, mas cada prato é um mero átomo para a sua vista e a sua memória.
— Oh, mas nós aqui somos iguais às pessoas dos outros lugares, o senhor vai ver — observou a Sra. Dean, algo espantada com as minhas palavras.
— Perdoe — respondi —, mas até a senhora é uma ótima prova contra essa afirmação. Excetuando alguns provincianismos que quase não se notam, a senhora não tem nem o modo de falar, nem as maneiras que em geral se consideram como peculiares à classe. Tenho a certeza de que pensa muito mais do que a maioria dos criados comuns. E cultivou as suas faculdades de reflexão justa­mente por não ter ocasião de desperdiçar a vida com ninharias.
Ela riu.
— Sem dúvida me considero uma pessoa estável e sensata — disse —, mas não exatamente por viver entre montanhas e ver apenas um conjunto de rostos e uma série de atos, de ano a ano. É que sempre vivi na mais estrita disciplina e isso me ensinou a encarar as coisas com sensatez; além do quê, tenho lido mais do que o senhor pode imaginar, Sr. Lockwood. Não há um livro, nesta biblioteca, que eu não tenha lido e do qual não tenha tirado algo: a não ser que seja em grego, latim ou francês. . . mas até esses eu sei distinguir. É o máximo que se pode esperar da filha de um homem pobre. Mas, se quer que eu continue contando a minha história com todos os detalhes, muito bem; em vez de pular três anos, passarei apenas para o verão seguinte (o verão de 1778), ou seja, há cerca de vinte e três anos atrás.

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