segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O Morro dos Ventos Uivantes, Cap Vl

O Sr. Hindley voltou a casa para os funerais; e — coisa que nos surpreendeu e provocou os mexericos dos vizinhos — trouxe consigo uma esposa. De que família era e onde nascera, ele nunca nos disse; provavelmente não tinha nem nome, nem fortuna, ou ele não teria escondido o casamento do pai.
Mas ela parecia ter bom gênio. Tudo quanto viu, desde que entrou em casa, pareceu deleitá-la, bem como tudo o que acontecia à sua volta, exceto os preparativos para o sepultamento e a presença das pessoas enlutadas. Achei que ela era meio boba, pela sua maneira de se com­portar: correu para o quarto e fez-me ir com ela, embora estivesse na hora de eu vestir as crianças, e lá ficou, tre­mendo e torcendo as mãos, e perguntando, repetidamente: — O enterro já saiu? — Depois pôs-se a descrever, com histérica emoção, o efeito que o fato de ver luto pro­duzia nela; e começou novamente a tremer e acabou por chorar. Quando lhe perguntei por que chorava, respondeu que não sabia, mas que tinha tanto medo de morrer! Pa­receu-me que ela tinha tanta probabilidade de morrer quan­to eu própria. Era magrinha, mas jovem, com pele fresca e olhos que brilhavam como diamantes. Reparei, é verdade, que ao subir as escadas ela ficava sem fôlego, que qualquer barulho inesperado a fazia estremecer e que às vezes tossia de maneira estranha; mas não sabia o que esses sintomas queriam dizer e não me sentia impelida a simpatizar com ela. Nós aqui não costumamos ligar-nos aos forasteiros, Sr. Lockwood, a menos que eles se liguem primeiro a nós.
 O jovem Earnshaw mudara consideravelmente nos três anos que estivera fora. Estava mais magro, perdera as boas cores e falava e se vestia de maneira bem dife­rente; no mesmo dia em que voltou, disse-nos, a Joseph e a mim, que dali em diante nos retirássemos para os fundos da cozinha, deixando a sala para ele e a família. Expres­sou, mesmo, a intenção de mandar atapetar e forrar uma pequena saleta; mas a esposa mostrou-se tão encantada com o chão branco e a enorme lareira, com os pratos de estanho e de porcelana, com o lugar dos cães e a amplidão, que ele resolveu deixar tudo como estava.
Ela também se mostrou encantada em encontrar uma irmã; tagarelava com Catherine, beijava-a, corria de um lado para outro com ela e dava-lhe quantidades de pre­sentes, a princípio. Mas o seu afeto logo se esgotou, e, quando ela começou a ficar mal-humorada, Hindley tor­nou-se tirânico. Bastou que ela fizesse um comentário, evidenciando desagrado por Heathcliff, para despertar nele o seu velho ódio pelo rapaz. Afastou-o da companhia da família para a dos criados, privou-o das lições do cura e insistiu para que ele passasse a trabalhar nos campos, igual a qualquer outro empregado da fazenda.
Inicialmente, Heathcliff suportou muito bem a sua degradação, porque Cathy ia lhe ensinando o que apren­dia e trabalhava ou brincava com ele nos campos. Ambos prometiam crescer como dois selvagens, pois o patrão não queria saber de como eles se comportavam e do que faziam, desde que não o aborrecessem. Não teria sequer cuidado de que eles fossem aos domingos à igreja, não fosse Joseph e o cura censurarem a sua negligência, quando as crianças faltavam; isso fazia com que ele mandasse dar uma surra em Heathcliff e privar Catherine do jantar ou da ceia. Mas um dos maiores prazeres que eles tinham era correr para a charneca, de manhã bem cedo, e lá ficar todo o dia; o castigo que se seguia era uma coisa risível. O cura podia mandar Catherine decorar quantos capítulos quisesse e Joseph podia surrar Heathcliff até ficar com o braço doendo; eles esqueciam tudo assim que se apanhavam nova­mente juntos e concebiam algum plano de vingança; sei lá quantas vezes chorei às escondidas, vendo-os ficarem dia a dia mais atrevidos e não ousando falar nada, com medo de perder a pouca ascendência que ainda retinha sobre aquelas crianças sem amigos. Numa noite de domingo, eles foram expulsos da sala, por fazerem barulho ou coisa pa­recida; e, quando fui chamá-los para jantar, não os encon­trei por nenhum lado. Procuramos por toda a casa, em cima e embaixo, no pátio e nas cavalariças; pareciam ter se tornado invisíveis. Finalmente, Hindley mandou-nos trancar as portas e jurar que ninguém os deixaria entrar essa noite. A criadagem foi para a cama, mas eu, dema­siado aflita para me deitar, abri a janela e pus a cabeça de fora, embora chovesse, resolvida a abrir-lhes a porta, ape­sar da proibição. Não tardou que ouvisse passos pela estra­da e a luz de uma lanterna atravessar o portão. Joguei um xale por cima da cabeça e corri para abrir, antes que eles acordassem o Sr. Earnshaw. Deparei apenas com Heathcliff; levei um susto ao vê-lo só.
— Onde está Catherine? — exclamei, assustada. — Não lhe aconteceu nada, não é? — Está na Granja Thrush­cross — respondeu ele —, e eu também devia estar lá, se eles tivessem tido a gentileza de me convidar para ficar.
— Bem, é para você aprender! — disse eu. — Que idéia foi essa de ir até a Granja Thrushcross? — Deixe-me tirar essas roupas molhadas, Nelly — respondeu ele —, que depois eu lhe conto. — Preveni-o de que tivesse cuidado para não acordar o patrão, e ele, após ter mudado de rou­pa, começou: — Eu e Cathy fugimos e, vendo ao longe as luzes da granja, achamos boa idéia chegar até lá e ver se os Linton passavam as noites de domingo de castigo nos cantos, enquanto os pais comiam e bebiam, cantavam e riam e estavam no bem-bom da lareira. Você pensa que com eles é assim? Que eles ficam tremendo de frio num canto, ou lendo sermões, ou sendo catequizados por algum criado e obrigados a aprender de cor uma coluna de nomes das Escrituras quando não respondem tudo certo? — Não, acho que não — respondi. — Sem dúvida são crianças bem-comportadas e não merecem o tratamento que vocês recebem. — Ora, não aborreça, Nelly — retrucou ele.
— Corremos do alto do morro para o parque, sem pa­rar... Catherine ficou sem os sapatos. Você vai ter de ir procurá-los amanhã, no lodo. Entramos por uma abertura na cerca, encontramos o caminho e subimos num vaso, bem debaixo da janela da sala. A luz vinha de lá; não tinham fechado as gelosias e as cortinas não haviam sido corridas. Eu e Cathy nos agarramos ao peitoril e olha­mos. . . Ah, que beleza! Vimos uma sala maravilhosa, toda atapetada de vermelho, com poltronas também ver­melhas e o teto branco, orlado a ouro, com um chuveiro de gotas de cristal pendendo do centro e brilhando com pequeninas velas. O Sr. e a Sra. Linton não estavam lá; Edgar e a irmã tinham a sala só para eles. Que felicidade, você não acha? Nós nos teríamos sentido no paraíso! Pois imagine o que as suas crianças bem-comportadas estavam fazendo. . . Isabella. . . deve ter uns onze anos, ou seja, um ano menos do que Cathy. . . estava deitada no chão, no fundo da sala, berrando como se a estivessem espetando com agulhas em brasa. Edgar estava junto da lareira, chorando baixinho, e no meio da mesa estava um cachorrinho, sacudindo a pata e ganindo, que, pelas acusações que os dois faziam um ao outro, eles quase tinham esquar­tejado, puxando cada um por uma extremidade. Os idio­tas! Brigar por causa de uma bola de pêlo e depois chorar e nenhum dos dois querer pegar no bicho! Rimos deles: crianças mimadas! Quando é que você me viu chorar por querer o que Catherine também queria? Ou quando é que você nos viu gritar, soluçar e rolar pelo chão, um de cada lado da sala? Eu nunca trocaria a minha vida aqui pela de Edgar Linton, na Granja Thrushcross. . . nunca, se pudesse ter o privilégio de jogar Joseph do alto do telhado e de pintar a fachada da casa com o sangue de Hindley!
— Chh! — interrompi. — Mas você ainda não me disse, Heathcliff. . . o que aconteceu com Catherine?
— Bem, já lhe disse que rimos — respondeu ele. — Os Linton ouviram-nos e correram, como flechas, para a porta, gritando: "Oh, mamãe, mamãe! Papai! Mamãe, venha cá! Papai, socorro!" Gritavam como loucos. Pro­curamos assustá-los ainda mais, fazendo barulhos horrí­veis, e depois pulamos do peitoril da janela, porque ouvi­mos passos e achamos melhor fugir. Eu estava puxando Cathy pela mão e dizendo-lhe para correr mais depressa, quando, de repente, ela caiu. "Corra, Heathcliff, corra!", murmurou ela. "Soltaram o buldogue e ele está me segu­rando!" O diabo do cão tinha lhe agarrado o tornozelo, Nelly. Ouvia-o grunhir. Mas ela não gritou. Não, ela não gritaria nem se estivesse sendo atravessada pelos chifres de um touro. Mas eu gritei! Amaldiçoei o bicho como se fosse o Demônio; peguei numa pedra e meti-a entre os dentes do cão, procurando fazer com que ele a engolisse. Uma besta de criado apareceu, finalmente, com uma lan­terna, gritando: "Agüenta firme, Skulker, agüenta firme!" Mas mudou de tom quando viu o cão, com a enorme lín­gua roxa meio palmo para fora da boca e os lábios baban­do sangue. O homem tomou Cathy ao colo; ela estava pá­lida, não de medo, disso eu tenho a certeza, mas de dor. Levou-a para dentro, e eu fui atrás, murmurando pragas e prometendo vingança. "Que foi que ele pegou, hein, Ro-bert?", perguntou Linton, da porta. "Skulker pegou uma menina, meu senhor", respondeu o criado, "e tem também um garoto", acrescentou, puxando-me pelo braço, "que parece um cigano! Acho que os ladrões botaram os dois na janela para eles abrirem as portas para a quadrilha, depois que todo o mundo estivesse dormindo, e poderem nos matar à vontade. Cale a boca, seu ladrão descarado! Você ainda vai acabar na forca. Sr. Linton, não largue a espingarda." "Não, não, Robert", disse o bobo do velho. "Os safados sabiam que ontem foi o meu dia de receber a renda e pensaram que a ocasião era boa para me assal­tar. Pois que venham: estou pronto para recebê-los. John, tranque a porta. Jenny, dê água a Skulker. Assaltar um magistrado na sua própria casa e no domingo, ainda por cima! Até onde chegará o atrevimento deles? Oh, Mary, veja só! Não tenha medo, é apenas um garoto — mas pela cara já se vê o que ele é; não seria prestar um serviço ao país enforcá-lo de uma vez, antes que ele se torne um criminoso?" Puxou-me para debaixo do lustre, e a Sra. Linton colocou os óculos e ergueu ao ar as mãos, horro­rizada. As covardes crianças também se aproximaram. Isabella dizendo: "Que coisa pavorosa! Tranque-o no porão, papai. É igualzinho ao filho do cigano que roubou o meu faisão domesticado. Não é, Edgar?"
"Enquanto me examinavam, Cathy apareceu; ouviu a última frase e riu. Após olhá-la bem, Edgar Linton re­cuperou suficientemente o sangue-frio para reconhecê-la. Eles costumavam ver-nos na igreja, você sabe, embora raramente noutro lugar. 'Essa aí é Catherine Earnshaw!', sussurrou ele para a mãe. 'Veja como Skulker a mordeu... Como o pé está sangrando!'
" 'Catherine Earnshaw? Bobagem!', exclamou a se­nhora. 'Catherine Earnshaw andando pelo campo com um cigano! Mas, é verdade, ela está de luto. . . claro que está. . . e talvez possa ficar para sempre aleijada!'
" 'Que terrível negligência, a do irmão dela!', falou o Sr. Linton, voltando-se para Catherine. 'Ouvi Shielders dizer' (era o cura, Sr. Lockwood) 'que ele a deixa crescer no mais absoluto paganismo. Mas quem é o garoto? Onde terá ela arranjado tal companhia? Oh! Creio que se trata do estranho achado que o meu falecido vizinho trouxe há anos para casa, uma vez que foi a Liverpool. . . um mestiçozinho, americano ou espanhol.'
" 'De qualquer maneira, um garoto horrível', obser­vou a velha senhora, 'que não devia pôr os pés numa casa decente! Reparou na linguagem dele? Lamento que as crianças o tenham ouvido praguejar!'
"Recomecei a praguejar — não se zangue, Nelly —, e Robert recebeu ordens para me levar dali. Recusei-me a ir sem Cathy; ele me arrastou para o jardim, pôs-me a lanterna na mão, disse-me que o Sr. Earnshaw seria infor­mado da minha conduta e, mandando que eu fosse logo embora, fechou a porta atrás de mim. As cortinas ainda estavam presas dos lados e voltei ao meu lugar de espreita; se Catherine tivesse mostrado vontade de sair dali, eu pre­tendia quebrar as vidraças da sala em pedacinhos para ir buscá-la. Mas ela estava calmamente sentada no sofá. A Sra. Linton tirou-lhe a capa cinzenta que tínhamos tomado emprestada da leiteira, abanando a cabeça e ralhando com ela, suponho; faziam uma grande distinção no tratamento que nos davam, a ela e a mim. Depois, a criada trouxe uma bacia com água quente e lavou-lhe os pés; o Sr. Linton deu-lhe um copo de sangria e Isabella colocou-lhe um prato de bolinhos no colo, enquanto Edgar ficava a olhá-la, bo­quiaberto. Em seguida, secaram e pentearam-lhe o belo cabelo e trouxeram-lhe um par de enormes chinelas, le­vando-a para perto do fogo. Deixei-a, feliz da vida, divi­dindo os bolinhos com o cachorrinho e com Skulker, que ela acariciava enquanto comia, e acendendo uma centelha de espírito nos vazios olhos azuis dos Linton — um pálido reflexo do seu rosto encantador. Vi que a contemplavam com um ar de estúpida admiração; ela é tão imensamente superior a eles — a todo o mundo, aliás, não é, Nelly?"
— Tudo isso que você me contou ainda vai dar pano para mangas — respondi, apagando a lanterna. — Você é incorrigível, Heathcliff. O Sr. Hindley vai ser obri­gado a tomar medidas drásticas, você vai ver. — Minha previsão deu mais certo do que eu desejava. Earnshaw ficou furioso. O Sr. Linton veio visitar-nos no dia seguinte e fez um tal sermão ao nosso jovem patrão sobre a ma­neira negligente como ele guiava a família, que o obrigou a tomar mesmo medidas. Heathcliff não levou surra, mas Hindley lhe disse que, se o visse falar com Catherine, seria posto fora de casa. Por seu lado, a Sra. Earnshaw encar­regou-se de manter a cunhada sob controle, quando ela voltasse para casa — empregando astúcia e não força, pois pela força nada conseguiria.

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