segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O Morro dos Ventos Uivantes, Cap V

Com o correr do tempo, o Sr. Earnshaw começou a definhar. Sempre fora ativo e saudável, mas as forças aban­donaram-no repentinamente, e, quando se viu confinado ao canto da lareira, tornou-se quase que insuportavelmen­te irritável. Qualquer coisinha o incomodava e a mera suspeita de que a sua autoridade estivesse sendo contes­tada bastava para colocá-lo fora de si. Isso ocorria prin­cipalmente quando alguém tentava dominar o seu favorito ou impor-se a ele. Não permitia que se falasse uma só palavra contra ele e parecia ter metido na cabeça a idéia de que, porque gostava de Heathcliff, todos os demais o odiavam e desejavam fazer-lhe mal. Aquilo era uma des­vantagem para o rapaz, pois, não querendo os mais sen­síveis dentre nós afligir o patrão, satisfazíamos a sua par­cialidade e, com esse procedimento, alimentávamos o orgu­lho e o temperamento caprichoso do garoto. Mas a nossa atitude era necessária; por duas ou três vezes, as mani­festações de desprezo de Hindley diante do pai provoca­ram no velho uma explosão de fúria: agarrou na bengala para bater no filho e ficou a tremer de raiva por não con­seguir acertá-lo.
Por fim, o nosso cura (tínhamos então um cura sem­pre conosco, que melhorava o seu nível de vida ensinando os jovens Linton e Earnshaw e cultivando ele próprio o seu pedaço de terra) aconselhou mandar o jovem Hindley para o colégio preparatório. O velho Earnshaw concordou, embora dissesse, com pessimismo, que "Hindley era des­tituído de qualquer valor e não adiantaria nada ele estu­dar".
Esperei que fôssemos, enfim, ter paz. Doía-me pensar que o patrão sofria pela boa ação que cometera. Achava eu que a doença dele tinha origem nas diferenças entre as pessoas da família, conforme ele sempre afirmava; a ver­dade, porém, é que estava realmente doente. Apesar disso, o ambiente em casa poderia ter melhorado, não fosse por duas pessoas, Cathy e Joseph, o criado; aposto como o senhor o viu, lá em cima. Era, e ainda deve ser, o mais aborrecido e intolerável fariseu que jamais folheou uma Bíblia para catar promessas para si mesmo e maldições para os seus semelhantes. Pela sua mania de sermonear e de fazer citações piedosas, conseguiu impressionar gran­demente o patrão: quanto mais fraco ele ficava, maior era a influência que Joseph ganhava sobre ele. Não parava de atormentá-lo com o futuro da sua alma e com conse­lhos sobre como educar rigidamente os filhos. Encoraja­va-o a considerar Hindley como um réprobo e, noite após noite, desfiava um rosário de queixas contra Heathcliff e Catherine, embora sempre procurasse agradar o patrão, jogando as maiores culpas sobre Cathy.
Efetivamente, ela era a criança mais difícil que eu já vira. Fazia-nos esgotar a paciência mais de cinqüenta vezes por dia; desde que descia do quarto, de manhã, até que ia para a cama, não tínhamos um minuto de sossego com ela. Parecia sempre pronta a fazer uma arte e não parava de cantar, rir e atenazar todos os que não estivessem dispos­tos a fazer o mesmo. Era um diabinho — mas tinha os olhos mais bonitos, o sorriso mais doce e os pés mais ágeis de toda a paróquia; além disso, não creio que ela tivesse má intenção, porque, quando fazia alguém chorar, rara­mente deixava de confortá-lo. Gostava demais de Heath­cliff. O maior castigo que se podia inventar para ela era mantê-la separada dele; entretanto, ela era mais repreen­dida por causa dele do que qualquer um de nós. Nas brin­cadeiras, gostava de mandar em todos, usando as mãos livremente e dando ordens aos companheiros. Também pro­cedia assim comigo, mas eu não tolerava a sua mania de dar bofetadas e ordens, e logo a fiz saber isso.
Ora, o Sr. Earnshaw não compreendia as brincadeiras dos seus filhos; fora sempre severo com eles. Catherine, por seu lado, não entendia por que razão o pai tinha me­nos paciência e ficava mais irritado na doença do que quando gozara saúde. As suas censuras despertavam  nela um desejo malicioso de provocá-lo. Nunca parecia sentir-se mais satisfeita do que quando todos nos voltávamos con­tra ela e nos desafiava com seu olhar petulante e atrevido e as suas respostas na ponta da língua; ridicularizando as maldições religiosas de Joseph, atiçando-me e fazendo o que seu pai mais detestava, mostrando-lhe como a sua pre­tensa insolência, que ele acreditava ser real, tinha mais po­der sobre Heathcliff do que a bondade dele — como o rapa­zinho fazia tudo quanto ela queria e que ele queria apenas o que era da vontade dela. Após se ter portado da pior maneira possível durante o dia, ela às vezes vinha aninhar-se junto ao pai para fazer as pazes, à noite. — Não, Cathy — dizia o velho —, não posso gostar de você; você é pior do que o seu irmão. Vá, vá rezar suas orações e pedir perdão a Deus. Eu e sua mãe ainda havemos de lastimar o fato de você ter nascido! — Isso a princípio fazia-a chorar; mas ser continuamente repelida acabou por endu­recê-la, e ela ria, se eu a aconselhava a pedir desculpas ou a dizer que estava arrependida.
Chegou, finalmente, a hora de o Sr. Earnshaw des­cansar das suas preocupações terrenas. Morreu calma­mente, na sua poltrona ao lado da lareira, numa noite de outubro. O vento soprava ao redor da casa e rugia na chaminé; parecia uma tempestade, mas não fazia frio e estávamos todos reunidos — eu, um pouco afastada da lareira, ocupada com o meu tricô, e Joseph lendo a sua Bíblia, perto da mesa (pois naquele tempo os criados ge­ralmente vinham para a sala, após terminado o trabalho). Cathy tinha estado doente, e isso a tornava mais sosse­gada; apoiava-se aos joelhos do pai, e Heathcliff estava deitado no chão, com a cabeça no colo dela. Lembro-me de que o patrão, antes de adormecer, acariciou o belo ca­belo da filha. . . gostava tanto de vê-la carinhosa... di­zendo: — Por que você não há de ser sempre uma boa menina, Cathy? — Ela voltou o rosto para ele, riu e res­pondeu: — E por que é que o senhor não há de ser sem­pre bonzinho, hein, pai? — Mas, tão logo percebeu que ele se irritara, beijou-lhe a mão e disse que iria cantar para adormecê-lo. Começou a cantar bem baixinho, até que os dedos dele se soltaram dos dela e a cabeça lhe caiu sobre o peito. Então, eu lhe disse que se calasse e não se me­xesse, para não acordá-lo. Ficamos todos calados durante uma meia hora, e mais teríamos ficado, se não fosse Joseph terminar o seu capítulo, levantar-se e dizer que precisava acordar o patrão, para dizer as orações e ajudá-lo a dei­tar-se. Aproximou-se dele e chamou-o pelo nome, tocando-lhe no ombro; mas o velho não se mexeu, e Joseph pegou numa vela e olhou-o de perto. Percebi que algo tinha acon­tecido ao vê-lo pousar a vela e, agarrando nas crianças, murmurar que subissem e fizessem pouco barulho; podiam rezar sozinhas, que ele tinha algo a fazer.
— Primeiro, quero dar boa noite a meu pai — disse Catherine, pondo-lhe os braços à volta do pescoço, antes que a pudéssemos impedir. A pobrezinha logo viu o que tinha acontecido. Gritou: — Ele morreu, Heathcliff! Ele morreu! — E os dois caíram num choro de cortar o co­ração.
Juntei-me a eles, chorando amargamente; mas Joseph perguntou-nos o que significava todo aquele alarido, quan­do um santo acabava de chegar ao céu. Mandou-me vestir a minha capa e correr a Gimmerton, para ir buscar o mé­dico e o cura. Eu não sabia para que eram eles precisos, mas parti assim mesmo, através do vento e da chuva, e trouxe o médico de volta comigo; o cura prometeu vir de manhã. Deixando a Joseph o encargo de explicar o que acontecera, corri para o quarto das crianças; a porta estava aberta e vi que ainda não se tinham deitado, embora pas­sasse da meia-noite; mas estavam mais calmas e não ne­cessitavam de que eu as consolasse. Confortavam-se um ao outro melhor do que eu poderia ter feito; nenhum cura, em todo o mundo, terá jamais descrito o céu de maneira mais bela do que eles, na sua inocente conversa. E ao ouvi-los, entre soluços, não pude deixar de desejar que todos nós já lá estivéssemos, a salvo e reunidos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário