sexta-feira, 1 de julho de 2011

MELANCIA - MARIAN KEYES Cap.9

Tive de tocar a campainha da porta, quando voltamos para casa, porque saíra
sem chave. Mamãe atendeu.
- Estou chegando - disse-lhe. - Nós nos divertimos muito, não foi, Kate?
Mamãe observou-me, enquanto eu carregava para a cozinha um saco plástico
após outro.
Circulou em torno de mim, suspeitosamente, enquanto eu desempacotava as
mercadorias em cima da mesa da cozinha.
Você conseguiu tudo que queria? - perguntou, com a voz algo trêmula.
Tudo! - confirmei, entusiasticamente.
Então ainda está com essa idéia de fazer o jantar para eles? - perguntou,
parecendo à beira das lágrimas.
Estou, mãe - disse-lhe eu. - Por que está preocupada com isso?
Na verdade, desejaria que não fizesse esse jantar - disse ela, cheia de
ansiedade. - Vai encher o pessoal de idéias, sabe? Depois, vão passar a só querer
jantares feitos na hora. E de quem esperarão isso? Não de você, com certeza.
Porque, a essa altura, já terá partido em grande estilo para Londres. Quem
enfrentará as reclamações deles serei eu.
Pobre mamãe, pensei. Talvez fosse uma insensibilidade minha exibir minha
culinária sofisticada em sua cozinha.
Ela fez uma pausa, enquanto eu alegremente colocava um pouco de massa
fresca numa prateleira da geladeira.
- Está ouvindo o que digo? - ela ergueu a voz, pois sua visão de mim estava
bloqueada pela porta da geladeira.
Eles estão perfeitamente felizes com a comida do microondas - ela continuou. -
Você já ouviu a expressão "Se não quebrou, não conserte"? E o que é isso? -
perguntou, agarrando um saco de celofane com folhas frescas de manjericão e
cutucando-o, cheia de suspeitas.
Ê manjericão, mãe - disse eu, passando por ela numa carreira para guardar no
armário algumas sementes de pinha.
E o que isso faz? - perguntou ela, olhando-o atentamente, como se fosse
radioativo.
É um tempero - respondi, paciente.
Pobre mamãe; entendi como ela se sentia insegura e ameaçada.
- Ora, não pode ser exatamente um tempero, se não puderam nem colocá-lo
num frasco - declarou ela, em tom de triunfo.
Ela podia sentir-se insegura e ameaçada, mas mesmo assim devia ter mais
cuidado com o que dizia, pensei, séria.
E logo me arrependi. Eu me sentia, que diabo, quase feliz. Não precisava ser
mesquinha com ninguém. Não precisava zangar-me com ninguém.
- Não se preocupe, mãe - disse-lhe, em tom de desculpas. - Não vou fazer
nada especial. Provavelmente não vão nem notar a diferença entre isso e um
congelado.
-Talvez hoje você não faça a comida tão bem quanto faz geralmente - ela
disse, lisonjeira.
- Talvez não - concordei, com amabilidade.
Comecei a abrir e fechar armários, procurando utensílios para fazer o molho
pesto.
Logo se tornou evidente que, apesar de nosso freezer c de nosso microondas,
sob todos os outros aspectos nossa cozinha fazia jus ao título "A Cozinha que o
Tempo Esqueceu".
Era como se eu tivesse atravessado, feito Alice, um espelho obscuro, ou sido
carregada, por uma inesperada inundação, para dentro de algum vale perdido,
inteiramente intocado pelo mundo exterior.
Num dos armários havia uma enorme e pesada tigela de cerâmica bege para
misturas, com dois centímetros e meio de poeira dentro. Era provavelmente um
presente de casamento das núpcias de mamãe trinta anos antes. E parecia ainda à
espera de ser usada.
Havia um artefato encantador, uma batedeira de ovos manual, que poderia ser
da Idade do Bronze ou ainda mais antiga. Estava em condições maravilhosas,
considerando sua avançada idade.
Havia até um livro de cozinha publicado em 1952, com receitas que incluíam,
na lista de ingredientes, ovo em pó e desbotadas fotos em sépsia de sanduíches
vitorianos pesadamente enfeitados.
Positivamente pré-histórico.
Não me surpreenderia nem um pouquinho se alguns dinossauros
atravessassem, arrastando-se, a porta da cozinha, comessem uma fatia de pão com
manteiga e tomassem um copo de leite, em pé diante da bancada, colocando depois
seu prato e copo na máquina de lavar louça, enquanto me cumprimentavam
educadamente com a cabeça, terminando por arrastar-se novamente para fora.
Pensei, com uma pontada de dor, em minha bem suprida cozinha em Londres.
Meu liquidificador; meu processador de comida, que podia fazer tudo, menos contar
piadas; meu espremedor de frutas, não apenas de frutas cítricas, vejam bem, mas
um espremedor de verdade. Certamente ambos me seriam úteis naquele momento.
Você não tem nada, nada mesmo, que eu pudesse usar para cortar? -
perguntei a mamãe, exasperada.
Bem - respondeu ela em tom de dúvida -, que tal isso? Será que ajudaria? -
perguntou, ansiosa, oferecendo-me uma espátula que parecia um bandolim ainda
em sua caixa.
- Obrigada, mãe, mas não. - Suspirei. - O que vou usar para picar o
manjericão?
No passado, em geral eu descobria que uma dessas funciona muito bem -
disse ela, naquele momento, com um tom levemente sarcástico, obviamente um
tanto saturada com minhas pretensiosas exigências. - Chama-se faca. Tenho
certeza de que, se telefonarmos para vários lugares, aqui em Dublin, poderemos
encontrar uma loja que tenha facas em seu estoque.
Devidamente humilde, aceitei a faca e comecei a picar o manjericão.
- E o que, exatamente, você vai fazer? - perguntou mamãe, sentada, a me
observar, parecendo meio ressentida, meio fascinada, como se não pudesse
acreditar que algo tão exótico quanto cozinhar estivesse ocorrendo em sua cozinha.
- Um molho para acompanhar a massa - disse-lhe eu, em pé, cortando. -
Chama-se pesto.
Ela ficou sentada em silêncio, apenas me olhando, enquanto eu trabalhava.
- E o que entra nele? - perguntou, depois de algum tempo, obviamente
detestando a si mesma por perguntar.
- Manjericão, azeite, sementes de pinha, queijo parmesão e alho - disse-lhe eu,
com calma e naturalidade.
Não queria que ela entrasse em pânico.
- Ah, sim - ela murmurou, fazendo sabiamente um sinal afirmativo com a
cabeça, como se entendesse, como se convivesse com tais ingredientes todos os
dias de sua vida.
- Antes de mais nada, corto o manjericão em pedaços muito finos
- disse-lhe eu, da mesma maneira que um cirurgião explica ao seu paciente em
perspectiva como realizará o triplo desvio.
Gentilmente, com todos os detalhes, deixando a mística de lado. ("Em primeiro
lugar, quebro seu osso esterno.")
- Depois, acrescento o azeite - continuei. ("Depois, abro a caixa torácica.")
- Em seguida, esmago as sementes de pinha, que estão nesta sacola aqui -
disse-lhe, sacudindo a sacola, com um ruído farfalhante.
("Em seguida, tomo emprestadas algumas veias de sua perna - dê uma olhada
nesse gráfico aqui.")
- Finalmente, acrescento o alho esmagado e o queijo parmesão
- terminei. - Simples!
("Depois, costuro você e, em um mês, estará caminhando quatro quilômetros
por dia.")
Mamãe pareceu aceitar calmamente todas essas informações, sem nenhuma
estranheza. Devo dizer que senti orgulho dela.
- Bem, vá com calma com o alho - disse-me. -Já é bastante difícil fazer Anna vir
para casa nas condições atuais. Não queremos que a pobre vampirinha pense que a
estamos perseguindo.
- Anna não é uma vampira! - disse eu, rindo.
- Como é que você sabe? - perguntou mamãe. - Ela, sem dúvida, quase
sempre parece mesmo uma vampira, com todo aquele ca belo, aqueles horríveis
vestidos compridos e roxos, e aquela maquilagem louca. Será que você não poderia
conversar com ela e sugerir que se torne um pouquinho mais elegante?
- Mas o aspecto dela mostra o que ela é - disse eu a mamãe, colocando o
manjericão picado numa caçarola. - E Anna. Não seria Anna se seu aspecto fosse
diferente.
- Eu sei - suspirou mamãe. - Mas que roupas! Tenho certeza de que os
vizinhos pensam que não vestimos nossas filhas. Ela parece uma sucateira ou algo
parecido. E aquelas botas! Tenho vontade de jogá-las no lixo.
- Ah, não, mãe, por favor, não faça isso - disse eu, ansiosamente, pensando
que Anna ficaria desesperada sem as Doc Martens que ela tão caprichosamente
pintara com auroras e flores.
Devo admitir que também fiquei levemente preocupada quanto aos sapatos
que Anna usaria se suas botas fossem jogadas fora. Temi pelos meus.
- Vou pensar - ameaçou mamãe, sombria. - E agora, o que você está fazendo?
- Colocando o azeite - disse-lhe eu.
- Para que você comprou azeite? - ela perguntou, obviamente pensando que
suas filhas eram um verdadeiro bando de idiotas. - Há uma garrafa do óleo que uso
para as batatas fritas. Você poderia ter usado esse e economizado seu dinheiro.
- Ah... obrigada. Da próxima vez já saberei - disse-lhe eu. Realmente, não
adiantava tentar explicar-lhe a diferença entre, por um lado, um azeite extra virgem
da Toscana, com as azeitonas prensadas a frio, e, por outro lado, óleo Flora
reciclado cerca de dez vezes, tendo já pequenos pedaços de batatas queimadas,
escuras, flutuando dentro.
Talvez eu fosse pretensiosa demais em matéria de comida, mas que diabo,
também não era necessário ir longe demais na outra direção.
- Certo! - eu disse. - Para meu próximo truque, sem a ajuda de uma rede de
segurança, vou ralar o queijo parmesão.
- Tirei da geladeira o naco de queijo, que obviamente aterrorizava tudo o mais
que estava ali. Os pacotes de queijo fatiado, cada fatia envolvida em plástico,
estavam encolhidos contra a parte de trás da geladeira, apavorados com o exótico
recém-chegado.
Mas era mais fácil falar em ralar o queijo do que conseguir de fato fazer isso.
Procurei por toda parte, mas não havia nada parecido com um ralador.
Finalmente localizei uma espécie de ralador. Mal pertencia ao gênero "ralador".
Não era sequer um dos redondos que, pelo menos, ficam em pé sozinhos, quanto
mais um elétrico. Era apenas um pequeno pedaço de metal com protuberâncias.
E seria preciso uma pessoa mais hábil do que eu para manobrar o naco de
queijo e conseguir ralá-lo com aquela engenhoca.
Minhas mãos não paravam de escorregar, e eu ralava, junto com o queijo, boa
porção das minhas juntas.
Mamãe fazia ruídos reprovadores quando eu blasfemava, e depois começou a
farejar, alarmada, enquanto o característico aroma do queijo parmesão enchia a
cozinha.
Irrompeu uma agitação no saguão, sons de vozes e risadas. Mamãe deu uma
olhada no relógio pendurado na parede da cozinha.
Fez isso, embora os ponteiros do relógio permanecessem marcando dez para
as quatro desde o Natal retrasado.
- Chegaram em casa - disse ela.
Papai trazia Helen da faculdade na maioria das noites, então chegavam em
casa juntos. Ele fazia isso, apesar do fato de ter de dirigir cerca de 20 quilômetros
fora do seu itinerário normal, só para pegá-la.
Helen irrompeu porta adentro. Estava lindíssima. Na verdade, ainda mais linda
do que de costume, se isso era possível. Havia uma espécie de brilho em torno dela.
Embora usasse simplesmente jeans e um suéter, estava elegantíssima. Seu cabelo
comprido e sedoso, sua pele translúcida, seus olhos brilhantes, sua boquinha
perfeita num sorriso sedutor.
- Olá, todo mundo, chegamos em casa - ela anunciou. - Ei, que cheiro
horroroso é esse? Argh! Será que alguém vomitou?
Podíamos ouvir sons de pessoas conversando no saguão - papai e uma voz
masculina.
Obviamente, tínhamos companhia.
De repente, meu coração teve um pequeno sobressalto involuntário. Eu ainda
não parara de esperar que James aparecesse inesperadamente à porta. No entanto,
aquela voz masculina provavelmente pertencia a um dos amigos de Helen.
Embora fosse mais exato chamá-los de escravos de Helen.
Mesmo sabendo que era uma tola ao pensar que James poderia aparecer sem
mais nem menos, ainda assim senti uma pontada de desapontamento, quando
Helen disse:
- Ah, trouxe um amigo para casa comigo. Papai está mostrando a ele onde
pendurar o casaco.
Depois, ela olhou para mim.
- Vejam só! - gritou. - Pensa que tem o direito de usar minhas roupas? Tire-as
agora mesmo.
- Desculpe, Helen - gaguejei -, mas não tinha outra coisa para usar. -
Comprarei novas e você poderá pegar todas emprestadas.
- Pode ter certeza de que vou pegar mesmo - disse ela, com um tom
ameaçador.
Mas parou por aí.
Graças a Deus! Devia estar num bom estado de espírito.
- Quem é esse rapaz que você trouxe? - perguntou mamãe.
- O nome dele é Adam - disse Helen. - E sejam simpáticos com ele, porque vai
fazer meu trabalho para a universidade.
Mamãe e eu começamos a organizar nossos traços faciais em expressões que
eram ao mesmo tempo acolhedoras e compassivas. Outro pobre rapaz apaixonado
por Helen. A vida dele estava acabada para todas as finalidades e objetivos. Seu
futuro inteiro maculado e arruinado.
Tudo o que ele tinha à sua frente, agora, era uma existência de infelicidade e
desespero, que passaria definhando pela bela Helen.
Mamãe e eu trocamos olhares. Como um cordeirinho que vai para o
matadouro, pensávamos ambas.
Voltei a ralar o queijo e as juntas dos meus dedos.
- Essa é mamãe - disse a voz de Helen, obviamente apresentando o
condenado Adam a mamãe.
(Fuja! Fuja para salvar sua vida! Escape, Adam, enquanto ainda pode - tive
vontade de dizer a ele.)
- E aquela ali é Claire - continuou Helen. - Você sabe, aquela de quem lhe falei.
A que tem um bebê.
Obrigada, Helen, sua cretina, pensei, por fazer minha vida parecer algum tipo
de monótono drama suburbano, do gênero documento social.
Virei-me, disposta a sorrir para Adam, e estendi-lhe minha mão cheirando a
parmesão e com as juntas em carne viva.
E levei certo choque.
Aquele não era um dos habituais jovens imaturos de Helen.
Aquele era realmente um homem.
Admito que jovem.
Mas, inegavelmente, um homem.
Mais de um metro e 80 de altura e muito sensual.
Pernas compridas. Braços musculosos. Olhos azuis. Maxilar quadrado. Belo
sorriso.
Se tivéssemos um medidor de testosterona pendurado na parede da cozinha, o
nível de mercúrio atravessaria o teto.
Eu me voltara exatamente a tempo de vê-lo dando a mamãe o aperto de mão
mais firme da vida dela.
Ele então voltou sua atenção para mim. Pelo canto do olho, vi mamãe
apertando sua mão esmagada e disfarçadamente examinando sua aliança, para ver
se entortara com o forte aperto.
- Ah, olá - disse eu, sentindo-me nervosa e confusa. Fazia muito tempo que
não encontrava uma concentração tão forte de masculinidade.
- Prazer em conhecê-la. - Ele sorriu para mim, segurando gentilmente minha
mão sumida em sua mão imensa.
"Meu Deus", pensei, sentindo-me um pouco aturdida, "a gente começa a se
sentir velha quando passa a notar como têm aspecto jovem todos os homens
lindos."
Eu podia ouvir a voz de Helen, mas parecia vir de muito longe. Foi abafada
pelo rugido do sangue em meu corpo, correndo para meu rosto e me fazendo corar
como não acontecia desde os 15 anos.
- Falo sério - disse ela. - Há um cheiro terrível de vômito.
- Não é vômito - disse mamãe, com ar entendido. - É o cheiro do queijo
carnegão. Você sabe, para o molho pesto.

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