terça-feira, 12 de julho de 2011

A Mediadora - Terra das Sombras - Meg Cabot Cap.17

Capítulo 17
Meu despertador tocou à meia-noite. Eu o desliguei, bati palmas para
acender a luz, rolei na cama e fiquei olhando para o dossel lá em cima. Isso
mesmo. Tinha chegado o dia D. Ou o dia E, no caso.
Eu estava tão cansada depois do jantar que sabia que nunca conseguiria se
não tirasse uma soneca. Disse à minha mãe que ia lá para cima fazer o
dever de casa, e que depois ia me deitar para tirar uma soneca. Quando a
gente morava no Brooklyn, não teria o menor problema. Minha mãe me
teria deixado sossegada, exatamente como eu pedia. Mas na casa dos
Ackerman a expressão “quero ficar sozinha” aparentemente não
significava absolutamente nada. E não porque a casa estivesse cheia de
fantasmas por todo lado. Não, para variar, eram vivos que ficavam me
perturbando.
Primeiro foi o Dunga. Quando me sentei para desfrutar de mais um jantar
gastronômico imaculadamente preparado por meu padrasto, pairava uma
certa dúvida, pois no fim das con tas eu só havia chegado em casa depois
das seis. Como sempre, chegou na hora do “onde você estava?” da minha
mãe (muito embora eu me tivesse dado ao trabalho de deixar aquele bilhete
para ela). Depois o Andy veio com o seu “foi divertido?”. E logo em
seguida tive de ouvir um “com quem você estava?” logo de quem? Do
Mestre. E quando eu informei que estivera com Adam McTavish e Cee
Cee Web, Dunga fez uma careta de nojo e lançou, sem parar de mastigar
sua almôndega:
-Caramba! Os esquisitos da turma.
Andy interveio:
-Ei, veja como fala.
-Puxa pai – insistiu Dunga. – Uma é uma albina superesquisita e o outro é
boiola.
Isso lhe valeu um espetacular cascudo do pai, que também o deixou de
castigo por uma semana. Com isto, não pude deixar de lembrar ao Dunga
mais tarde, quando estávamos tirando a mesa, que ele não poderia ir à festa
na piscina da Kelly Prescott, para a qual, por sinal, tinha sido convidado
graças a mim, a rainha dos esquisitos.
-Pena mesmo, meu chapa – disse eu, dando uma tapinha de solidariedade
na bochecha do Dunga.
Ele empurrou a minha mão.
-Ah é? – foi dizendo. – Bom, pelo menos ninguém vai me chamar de
bicha amanhã.
-Ora, ora, meu benzinho – continuei, beliscando a mesma bochecha. –
Você nunca vai precisar se preocupar de ser chamado disso. Só te xingam
de coisas muito piores.
Ele voltou a agarrar a minha mão, aparentemente tão furioso que ficou sem
fala por algum tempo.
-Prometa que nunca vai mudar – pedi. – Você é mesmo um barato
exatamente do seu jeito...
Dunga me chamou de um nome muito feio, n o exato momento em que seu
pai entrava na cozinha com o resto da salada.
Andy deu-lhe mais uma semana de castigo e depois mandou -o para o
quarto. Para mostrar como tinha ficado aborrecido, Dunga botou para tocar
os Beastie Boys tão alto que eu não consegui a dormir, pelo menos até que
o Andy voltou a interferir, tomando as caixas de som. De repente tudo
ficou um enorme sossego e eu já estava pegando no sono quando alguém
bateu na minha porta. Era o Mestre.
-Hmm – começou ele, olhando nervosamente para a escu ridão do meu
quarto, o quarto “mal-assombrado” da casa. – Será que a hora é apropriada
para... falar das coisas que eu andei descobrindo? Quer dizer, sobre a
casa... E as pessoas que morreram aqui...
-Pessoas? No plural?
-Com certeza – prosseguiu Mestre. – Conseguiu encontrar uma quantidade
incrível de documentos sobre crimes que foram cometidos nesta casa, em
muitos casos crimes de homicídio em todos os graus. Como era uma
estalagem, havia sempre muitos moradores temporários, boa parte dos
quais estava voltando para casa depois de fazer fortuna na corrida do ouro
no norte do estado. Muitos foram assassinados enquanto dormiam e
tiveram seu ouro roubado, possivelmente pelos próprios donos do
estabelecimento, segundo certas versões, porém mais provavelmente po r
outros moradores...
Temendo que estivesse para ouvir que o Jesse tinha morrido exatamente
dessa maneira e nada interessada em ficar sabendo mais sobre as causas de
sua morte, especialmente se ele estivesse ali por perto para ouvir também,
eu o interrompi:
-Escuta só, Mestre.. quer dizer, Dave. Acho que até hoje ainda não
consegui me recuperar da viagem, de modo que vou tentar tirar uma soneca
das boas. Será que não podemos falar disso amanhã no colégio? Quem
sabe almoçamos juntos...
Mestre arregalou os olhos.
-Está falando sério? Vai querer almoçar comigo?
Fiquei olhando para ele.
-Mas é claro! Por quê? Existe alguma regra proibindo que o pessoal do
segundo grau almoce com o pessoal do primeiro?
-Não – respondeu ele. – É só que... nunca acontece.
-Bom, pois eu vou – insisti. – Tudo certo? Você compra as bebidas e eu
pago a sobremesa.
-Beleza! – exclamou Mestre, que voltou para seu quarto como se eu tivesse
prometido que amanhã lhe daria de presente o trono da Inglaterra.
Eu já estava quase começando a dormi r de novo, quando ouvi baterem na
porta novamente. Dessa vez, quando abri, lá estava o Soneca, parecendo
mais desperto que eu, para variar.
-Olha só – começou ele. – Não quero saber se você vai usar o carro de
noite, mas vai botando as chaves no gancho, OK ?
Eu fiquei olhando para ele.
-Eu não tenho saído com o seu carro à noite, So... quer dizer, Jake.
-Seja lá o que for – insistiu ele. – Apenas trate de deixar as chaves onde as
encontrou. E não seria nada mau se você contribuísse de vez em quando
com a gasolina...
Eu respondi bem devagar, para ele entender:
-Eu não tenho saído com o seu carro à noite, Jake.
-Ninguém tem nada a ver com o uso que você faz do seu tempo – insistiu
Soneca. – Não acho um barato viver em gangues, mas cada um sabe da sua
vida. Apenas trate de botar minhas chaves no lugar, onde eu possa
encontrá-las.
Entendi que não tinha sentido ficar discutindo, concordei e fechei a porta.
Depois do quê, finalmente consegui umas boas horas de sono. Não cheguei
propriamente a acordar me sentindo no va (talvez eu pudesse dormir por
mais um ano), mas de qualquer maneira estava me sentindo um pouco
melhor.
Pelo menos, melhor o suficiente para ir acertar os fundilhos de algum
fantasma.
Algumas horas antes eu havia juntado tudo de que ia precisar. Minha
mochila estava cheia de velas, pincéis, um recipiente para sangue de
galinha, que eu devia ter comprado no açougue aonde fizera o Adam me
levar antes de me deixar em casa, e vários outros apetrechos indispensáveis
para a realização de um bom exorcismo à bra sileira. Estava completamente
preparada para ir em frente. Só faltava calçar meu tênis, e lá ia eu.
Só que, naturalmente, o Jesse tinha que aparecer exatamente no momento
em que eu estava pulando do telhado da varanda.
-Tudo bem – fui dizendo, enquanto me endireitava, com os pés doendo um
pouco, apesar de ter aterrissado em terra fofa. – Vamos deixar uma coisa
bem clara logo de saída. Você não vai dar as caras lá na Missão esta noite.
Entendido? Se aparecer por lá, vai se arrepender, e não será pouco.
Jesse estava recostado num dos pinheiros gigantes do nosso jardim.
Simplesmente recostado, os braços cruzados, me olhando como se eu fosse
alguma atração especial ou coisa parecida.
-Estou falando sério – continuei. – Não vai ser uma noite nada boa para
fantasmas. Nada boa mesmo. De modo que se eu fosse você não dava as
caras por lá.
Deu para perceber que o Jesse estava sorrindo. A lua não era tão forte
como na noite anterior, mas ainda assim havia luar e dava para eu ver que
as curvas na ponta de seus lábios vo ltavam-se para cima, e não para baixo.
-Suzannah – disse ele. – O que você está querendo?
-Nada – respondi, caminhando em direção à garagem e apanhando a
bicicleta de dez marchas. – Preciso apenas acertar umas coisas.
Jesse aproximou-se de mim enquanto eu botava o capacete.
-Com a Heather? – perguntou, polidamente.
-Isso aí. Com a Heather. Sei que as coisas saíram do controle da última
vez, mas dessa vez vai ser diferente...
-Como, exatamente?
Eu passei a perna por cima daquela barra cretina que eles põem n as
bicicletas para garotos e me posicionei bem no alto da rua, com os dedos
firmes no guidão.
-Tudo bem – disse então. – Vou te dar uma colher. Vou fazer um
exorcismo.
Sua mão direita voou e agarrou firme a barra entre minhas mãos.
-Um o quê?! – fez ele, com uma voz completamente destruída do bom
humor que a caracterizava até então.
Eu engoli em seco. Tudo bem, eu não estava assim tão confiante quanto
queria parecer. Na realidade, estava praticamente tremendo em cima de
meus All-Star. Mas que mais podia faz er? Eu tinha de deter a Heather
antes que ela fizesse mal a alguém mais. E seria mesmo sensacional se
todo mundo simplesmente me ajudasse nisso.
-Você não pode me ajudar – fui dizendo, completamente fria. – Vê se fica
afastado de lá esta noite, Jesse, caso contrário poderá ser exorcizado
também.
-Você perdeu o juízo – disse ele, com o mesmo tom indiferente que eu
tinha passado a usar.
-Provavelmente – reconheci, desanimada.
-Ela vai matá-la – insistiu Jesse. – Não está entendendo? É isso que ela
quer.
-Não – respondi, sacudindo a cabeça. – Ela não quer me matar. Primeiro
ela quer matar todo mundo que é importante para mim. Só depois é que
quer me matar.
Eu funguei. Não sei porquê, mas meu nariz estava escorrendo.
Provavelmente porque estava muito frio. Eu nã o entendia como aquela
palmeiras conseguiam ficar vivas. Estava fazendo uns cinco graus lá fora.
-Mas ela não vai conseguir, entendeu? – continuei. – Eu vou impedi-la.
Agora solte a minha bicicleta.
Jesse sacudiu a cabeça.
-Não, não. Nem mesmo você seria c apaz de fazer uma coisa tão idiota.
-Nem mesmo eu? – retruquei, meio chateada, mesmo sem querer. – Muito
obrigada.
Ele me ignorou.
-O padre está sabendo disso, Suzannah? Você contou ao padre?
-Hmm, claro. Ele está sabendo. Ele, hmm... vai se encontrar comi go lá.
-O padre vai se encontrar com você?
-Sim, claro, claro – disse eu, rindo meio nervosa. – Você não está pensando
que eu ia tentar uma coisa dessas sozinha, não é mesmo? Puxa, eu não sou
tão burra assim, por mais que você pense.
Ele já estava segurando a bicicleta com menos firmeza.
-Bem, se o padre vai estar lá...
-Claro, claro. Com toda certeza.
Ele voltou a segurar firme. A outra mão do Jesse veio vindo na minha
direção, e um longo dedo ficou sacudindo bem no meu nariz enquanto ele
dizia:
-Você está mentindo, não está? O padre não vai estar lá coisa nenhuma. Ela
o machucou, não é mesmo, hoje de manhã? Foi o que eu pensei. Ela o
matou?
Eu balancei a cabeça. De repente fiquei sem vontade de falar. Era como se
tivesse alguma coisa na minha garganta, uma coisa me machucando.
-Por isso é que você está com tanta raiva – disse Jesse, pensativo. – Eu
devia ter imaginado. Você está indo lá para acertar contas com ela pelo que
ela fez com o padre.
-E se for isso? – explodi. - Ela bem que merece!
Ele abaixou o dedo, agarrando o guidão da minha bicicleta com as duas
mãos. E posso dizer que ele era bem fortão para um cara que está morto.
Eu não conseguia me mexer com ele agarrado daquele jeito.
-Suzannah – disse ele. – Não é assim que se fazem as coisas. Não foi pa ra
isto que você recebeu este extraordinário dom, não para fazer coisas
assim...
-Dom?! – exclamei eu, apertando os dentes para não cair na gargalhada. –
É isso aí, Jesse. Eu recebi mesmo um dom dos mais preciosos. E sabe o
que mais? Estou de saco cheio. M as estou mesmo. Eu achei que vindo para
cá poderia começar tudo de novo. Achei que as coisas poderiam ser
diferentes. E sabe o que mais? São diferentes mesmo. São muito piores!
-Suzannah...
-O que você acha que eu devo fazer, Jesse? Amar a Heather pelo que ela
fez? Abraçar seu espírito ferido? Sinto muito, mas é impossível. Talvez o
padre Dom fosse capaz, mas eu não e ele está fora da jogada, de modo que
vamos fazer as coisas do meu jeito. Vou me livrar dela, e se você quer o
seu próprio bem, Jesse, fica fora dessa.
Dei um tranco bem forte no pedal e ao mesmo tempo agarrei o
guidão com toda força. Foi tão inesperado para o Jesse, que ele largou a
bicicleta involuntariamente. Um segundo depois eu estava a caminho,
projetando cascalho para trás com a roda tras eira e cobrindo Jesse de
poeira. Enquanto ia descendo a rua, ainda pude ouvi -lo dizer um monte de
coisas em espanhol. Provavelmente estava xingando. E com toda certeza a
palavra hermosa não foi pronunciada.
Grande parte da paisagem que ia percorrendo ao de scer eu não conseguia
ver. O vento estava tão frio que ficavam saltando lágrimas pelas minhas
bochechas e até o meu cabelo. Felizmente não havia muito trânsito, de
modo que quando eu atravessei o cruzamento, não tinha importância que
não estivesse vendo muita coisa. De qualquer maneira, os carros iam
parando para eu passar.
Eu sabia que dessa vez seria mais difícil entrar no colégio. Eles deviam ter
aumentado a segurança por causa do que acontecera na noite anterior. Mas
segurança? A verdade é que bastava t erem providenciado alguma
segurança.
E foi o que fizeram. Havia um carro da polícia no estacionamento, com as
luzes apagadas. Simplesmente lá, parado, com o luar refletido nos vidros
das janelas fechadas. O motorista – com certeza um novato, para ser
encarregado de uma missão tão chata – provavelmente estava ouvindo
música, embora de onde eu estava, junto ao portão do estacionamento, não
desse para ouvir nada.
De modo que eu ia precisar encontrar uma maneira de entrar. Sem
problema. Escondi a bicicleta num arbusto e calmamente fui dar uma volta
ao redor do colégio.
Não é muito fácil impedir que uma garota de 16 anos razoavelmente
esbelta entre num prédio. Eu sou um bocado flexível. E também tenho
juntas bem elásticas. Não vou contar aqui como é que acabei co nseguindo
entrar, pois não quero que as autoridades escolares descubram (nunca se
sabe, pode ser que eu precise fazer tudo de novo alguma dia), mas digamos
que se alguém é encarregado de fazer um portão é melhor ter certeza de
que ele chegou mesmo até o chão.
Aquele vão entre o cimento e o ponto onde começa a base do portão
é exatamente o espaço de que uma garota como eu precisa para se insinuar.
Lá dentro do estacionamento, as coisas pareciam bem diferentes da noite
anterior – e muito mais aterrorizantes. Todos os holofotes estavam
apagados (o que não me parecia exatamente uma boa medida de segurança,
mas é claro que a Heather podia perfeitamente ter arrebentado todas as
lâmpadas), de modo que toda a área estava escura e cheia de sobras
assustadoras. A fonte também estava desligada. Dessa vez, só dava para
ouvir os grilos. Só grilos cantando nos hibiscos. Nada de errado com os
grilos. Os grilos são amigos.
Não havia o menor sinal da Heather. Não havia qualquer sinal de ninguém.
O que era bom.
Fui caminhando com o máximo de cuidado (o que não era tão difícil com
os meus tênis) até o armário que eu estava... compartilhando com a
Heather. Aí me ajoelhei e abri a mochila.
Primeiro, acendi as velas. Precisava delas para enxergar ao redor.
Segurando um acendedor de grelha de churrasco que havia trazido contra a
base de uma das velas, derreti e pinguei um pouco de cera no piso e firmei
a vela naquela goma. Repeti a operação com todas as outras velas até
formar um círculo luminoso à minha frente. Abri então a tampa do
recipiente com o sangue de galinha.
Não vou descrever aqui a forma que eu tinha de desenhar no centro do
círculo de velas para que o exorcismo desse certo. Exorcismo é o tipo da
coisa que a gente não deve tentar fazer em casa, por pior que seja a
assombração. E só deve ser confiado a um profissional como eu. Afinal,
ninguém ia querer machucar algum fantasma inocente que estivesse só
passando por ali. Tipo exorcizar a vovó ou coisa do gênero...
E também não é recomendável que as pessoas comecem a mexer
com macumba, e por isto não vou repetir aqui a invocação que tive de fazer
em português mesmo. Digamos apenas que mergulhei meu pincel no
sangue de galinha e fiz o desenho adequado, emitindo as palavras exigidas.
Foi só quando retirei a fotografia da Heather d a mochila que notei que os
grilos haviam parado de cantar.
-Que diabos você acha que está fazendo? – disse ela, bem atrás do meu
ombro.
Eu não respondi. Botei a foto no centro da forma que havia pintado. Ela
ficou bem iluminada pelas velas.
Heather aproximou-se mais.
-Onde foi que arranjou esta foto minha?
Eu me limitei a pronunciar as palavras que tinha de dizer em português. O
que pareceu irritar ainda mais a Heather.
Bom, parece mesmo que temos de reconhecer que tudo irritava a Heather.
-O que você está fazendo? – perguntou ela de novo. – Que língua é essa
que está falando? E para que esta pintura vermelha?
Como eu não respondesse, a Heather começou a ficar ainda mais abusada –
o que parecia ser a sua especialidade.
-Olha aqui, sua vaca – foi dizendo, botando a mão no meu ombro e me
puxando nada delicadamente. – Está me ouvindo?
Eu interrompi o ritual.
-Pode me fazer um favor, Heather? – perguntei. – Quer ficar bem ali perto
do seu retrato?
Heather sacudiu a cabeça e seus longos cabelos loiros reluziram à luz das
velas.
-O que está acontecendo com você? – perguntou ela com grosseria. – Está
bêbada por acaso? Não vou ficar em lugar nenhum. Isso aí.. isso é sangue?
Eu dei de ombros. Ela continuava com a mão no meu ombro.
-Sim – respondi. – Mas não se preocupe. É só sangue de galinha.
-Sangue de galinha? – repetiu Heather com uma careta. – Chocante. Está
brincando comigo? Para que isto?
-Para te ajudar – respondi. – Para te ajudar a ir embora.
Heather apertou os dentes. As portas dos armários começaram a sacudi r.
Mas não muito. Só o suficiente para que eu ficasse sabendo que a Heather
não estava nada satisfeita.
-Pensei que tinha deixado bem claro ontem à noite que eu não vou a
lugar nenhum – disse ela.
-Você disse que queria ir embora.
-Exatamente – respondeu ela, enquanto os segredos das trancas dos
armários começavam a girar ruidosamente. – Para minha antiga vida.
-Pois eu descobri uma maneira...
As portas começaram a parecer tambores, de tanto que sacudiam.
-Esquece – respondeu ela.
-Esquece, não: lembra. Você só precisa ficar de pé aqui, no meio dessas
velas, perto do seu retrato.
Nem precisei insistir. Num segundo, ela estava exatamente onde eu queria
que estivesse.
-Tem certeza de que isto vai funcionar? – quis saber, toda excitada.
-É melhor que funcione, caso contrário terei desperdiçado minha cota de
velas e sangue de galinha – respondi.
-E as coisas vão voltar a ser exatamente como eram? Quer dizer, como
eram antes de eu morrer?
-Claro – respondi. Fiquei me perguntando se era o caso de me sentir
culpada por estar mentindo. Eu não me sentia nem um pouco culpada. Só
sentia um grande alívio. Tinha sido tudo tão fácil. – Agora fique calada um
pouco para eu dizer as palavras.
Ela estava louca para colaborar. Então eu disse as palavras.
E disse as palavras.
E disse as palavras de novo.
Eu já estava começando a me preocupar, achando que nada ia acontecer,
quando a luz das velas começou a tremer. E não estava passando nenhum
vento.
-Não está acontecendo nada – queixou-se a Heather, mais eu mandei que
ela se calasse.
As chamas voltaram a tremer. De repente, acima da cabeça da Heather,
onde devia estar o telhado da galeria, apareceu um buraco cheio de gases
vermelhos dando voltas. Eu fiquei olhando para aquele buraco.
-Heather, é melhor você fechar os olhos – disse então.
Ela prontamente obedeceu.
-Por quê? Está funcionando?
-É – disse eu. – Está funcionando sim.
Heather disse alguma coisa do tipo “legal”, mas não pude ouvir bem.
Não dava para ouvir direito porque o gás vermelho que ficava girando no
ar, e que parecia mesmo uma fumaça, estava começando a sair do buraco e
fazia uma espécie de ronco. Logo depois, longos anéis daquela coisa
começaram a envolver a Heather, diáfanos como uma bruma. Só que ela
não sabia, pois estava de olhos fechados.
-Estou ouvindo alguma coisa – disse ela. – Está acontecendo?
Acima de sua cabeça, o buraco havia aumentado muito. Dava para ver uns
relâmpagos lá dentro. Não parecia o lugar mais atraente do mundo. Não
estou dizendo que eu tinha aberto uma porta para o inferno ou coisa
parecida (pelo menos era o que esperava), mas certamente se tratava de
uma dimensão que não era a nossa, e com toda franqueza não parecia um
lugar muito agradável para visitar, muito menos para viver por toda a
eternidade.
-Só um minutinho e você chega lá – disse eu, enquanto aumentava o
número de anéis vermelhos de fumaça ao redor daquele corpinho de
animadora de torcida.
Heather ajeitou os cabelos longos.
-Oh meu Deus! – fez ela. – Mal posso esperar. A primeira coisa que vou
fazer é ir ao hospital pedir desculpas ao Bryce. Você não acha uma boa
idéia, Suzinha?
Eu respondi, enquanto o trovão aumentava e os relâmpagos ficavam mais
freqüentes:
-Claro, é uma grande idéia.
-Tomara que a minha mãe não tenha jogado minhas roupas fora –
prosseguiu a Heather. – Só porque eu estava morta. Você acha que a minha
mãe pode ter jogado fora as minhas roupas, Suzinha? Acha mesmo? –
insistiu ela, abrindo os olhos.
Eu gritei:
-Fique de olhos fechados!
Mas já era tarde. Ela já tinha visto. Puxa vida, ela tinha visto. Ficou meio
segundo olhando para aqueles anéis ao seu redor e começou a berrar.
E não estava berrando de medo, não senhor. A Heather não estava com
medo. Estava furiosa. Para valer.
-Sua vaca! – gritou. – Você não está me mandando de volta! Não
mesmo! Está me mandando embora !
E de repente, no momento em que o trovão começava a ficar ainda mais
forte, a Heather saiu do círculo.
Assim mesmo. Ela simplesmente deu um passo para fora. Como se não
tivesse a menor importância. Como no jogo de amarelinha. Aqueles anéis
de fumaça que estavam ao redor dela simplesmente desapareceram.
Sumiram como fumaça. E o buraco acima da cabeça da Heather se fechou.
Bom, vou te confessar que fiquei muito danada. Eu tinha tido um trabalho
enorme para conseguir aquilo.
-Ah, não – resmunguei, aproximando-se da Heather e agarrando-a, pelo
pescoço mesmo. – Volte já para lá. Volte para lá imediatamente – disse,
com os dentes trincados.
Heather limitou-se a rir. Estava presa numa gravata, e ainda ria.
Por trás dela, no entanto, as portas dos armários começar am a se sacudir de
novo. Mais alto que nunca,
-Você é uma mulher morta – disse ela. – Você já está morta, Simon. E sabe
o que mais? Vou dar um jeito para que os outros também se juntem a você.
Todos aqueles seus amigos esquisitos. E aquele seu meio -irmão também.
Eu apertei ainda mais o seu pescoço.
-Não creio. Acho mesmo é que você vai voltar para onde estava e
desaparecer como um fantasma bem bonzinho.
Ela riu de novo.
-Vamos ver isto, então – desafiou, com os olhinhos azuis brilhando
enlouquecidamente.
Bem, se era assim que ela queria...
Dei-lhe um murro daqueles com o punho direito. E antes que ela
conseguisse recuperar, acertei -lhe uns outros com a esquerda. Se ela sentiu
os golpes, não deixou transparecer. Não, não é verdade. Eu sei que ela
sentiu os golpes porque as portas dos armários de repente começaram a
abrir e a fechar. Fechar não é bem a palavra. Começaram a abrir e a bater,
mas a bater com muita força mesmo, sacudindo toda a galeria.
Não estou brincando. A galeria toda estava indo e vindo, como se o
piso fosse de ondas do mar. As grossas pilastras de madeira que
sustentavam o telhado arqueado se sacudiam naquele chão que as
mantivera firmes e fortes por quase trezentos anos. Trezentos anos de
terremotos, incêndios e inundações, e bastava o fantas ma de uma
animadora de torcida para que elas tremessem nas bases.
Como vocês podem ver, essa história de mediação não tem nada de
divertido.
E de repente eram os dedos dela que estavam ao redor da minha garganta.
Não sei como foi possível. Acho que eu devo ter ficado perturbada com
aquele tremor todo. A coisa estava muito esquisita. Eu a agarrei e comecei
a tentar empurrá-la de volta para o círculo de velas. Ao mesmo tempo,
murmurava a invocação em português, sem tirar os olhos dos caibros que
ondulavam lá em cima, na esperança de que o buraco voltasse a se abrir
para a terra das sombras.
-Cala a boca! – gritou a Heather quando ouviu o que eu estava dizendo. –
Cala essa boca! Você não vai me mandar embora! Meu lugar é aqui! É
muito mais o meu lugar do que o seu!
Eu ficava repetindo as palavras. E continuava a empurrá -la.
-Quem você pensa que é? – gritava Heather com o rosto vermelho de raiva.
Com o canto dos olhos, eu vi um vaso de gerânios levitar alguns
centímetros acima da balaustrada de pedra em que se en contrava. – Você
não é nin-guém! Você só está no colégio há dois dias. Dois dias! Está
pensando que pode ir chegando e mudar tudo? Acha que pode
simplesmente ir tomando o meu lugar? Quem você pensa que é?
Eu chutei uma perna e, agarrando bem os braços dela , dei-lhe uma
rasteira e ambas caímos no chão. O vaso de flores foi atrás, não porque
tivéssemos esbarrado nele, mas porque a Heather o atirou contra mim. Eu
me abaixei no último instante, e o pesado vaso de argila se espatifou contra
os armários, numa explosão de terra, gerânios e cacos de barro. Agarrei a
Heather pelos longos e lindos cabelos louros. Não era um gesto dos mais
elegantes, mas também não tinha sido muito elegante da parte dela atirar
gerânios em mim.
Ela começou a berrar de novo, chutando e se retorcendo como uma enguia,
enquanto eu a arrastava e ao mesmo tempo a empurrava em direção ao
círculo de velas. Ela havia começado a fazer outros objetos levitarem. As
trancas saltaram das portas dos armários e voaram em minha direção como
pequenos discos voadores. Depois surgiu um tornado, sugando tudo que
estava dentro dos armários para a alameda, de modo que apostilas e
fichários voavam para cima de mim de todas as direções. Eu fiquei com a
cabeça abaixada, mas não perdi o controle dela quando o livr o de
trigonometria de alguém me atingiu em cheio no ombro. E ficava repetindo
as palavras que certamente haveriam de abrir de novo aquele buraco.
-Por que você está fazendo isso? – berrou Heather. – Por que simplesmente
não me deixa em paz?
-Porque não.
Eu estava lanhada, sem fôlego, pingando de suor, só pensando em largar
ela ali mesmo, dar meia-volta e ir para casa, jogar -me na cama e dormi por
um milhão de anos.
Mas não podia.
Então o que fiz foi dar-lhe um murro no peito, mandando -a de volta
para o meio do círculo de velas. E no exato momento em que ela tropeçou
na foto que havia dado ao Bryce, o buraco que aparecera acima de sua
cabeça voltou a se abrir. Desta vez a fumaça vermelha fechou -se em torno
dela como um sufocante e espesso cobertor de lã. Ela não ia se soltar de
novo. Não com aquela facilidade.
A fumaça vermelha a seu redor era tão espessa que eu já não podia vê -la,
mas certamente a ouvia. Seus gritos deram para despertar os mortos – só
que ela era a única morta ali, naturalmente. Trovões ribom bavam acima de
sua cabeça. Lá dentro do buraco que voltara a se abrir, eu julgava estar
vendo estrelas brilharem.
-Por quê? – berrava Heather. – Por que está fazendo isto comigo?
-Porque eu sou a mediadora – respondi.
E de repente duas coisas aconteceram q uase simultaneamente
A fumaça vermelha que envolvia a Heather começou a ser sugada para o
buraco que girava em espiral, levando -a consigo.
E os poderosos pilares que sustentavam a galeria partiram -se em dois como
se fosse de gesso.
E foi aí que a galerias desmoronou em cima de mim.

Nenhum comentário:

Postar um comentário