terça-feira, 12 de julho de 2011

A Mediadora - Terra das Sombras - Meg Cabot Cap.18

Capítulo 18
Não tenho a mínima idéia de quanto tempo eu fiquei lá deitada debaixo das
pranchas de madeira e das telhas quebradas do desmoronamento. Pensando
bem, devo ter perdido a consciência, ainda que por alguns minutos ape nas.
Só lembro de uma coisa dura batendo na minha cabeça, e quando vi estava
tudo completamente escuro ao meu redor e parecia que eu ia sufocar.
Um dos truques favoritos de certos fantasmas é sentar -se no peito da vítima
quando ela está despertando, para q ue a pobre coitada pense que está sendo
sufocada sem saber por quê. Eu não estava entendendo direito o que estava
acontecendo, e por alguns instantes cheguei a pensar que tinha fracassado e
que a Heather ainda estava neste mundo, sentada no meu peito, tort urandome
e se vingando do que eu tentara fazer.
Mas aí eu pensei que talvez estivesse morta.
Não sei por quê. Talvez fosse daquele jeito, estar morto. Pelo menos
inicialmente. Era assim que a Heather devia ter -se sentido quando acordou
no seu caixão.
Devia ter-se sentido do mesmo jeito que eu naquela hora: presa, sufocada,
paralisada pelo medo. Minha nossa, não é de se estranhar que ela estivesse
sempre tão mal-humorada. Ela só podia mesmo estar querendo voltar
desesperadamente para o mundo que conhecera a ntes de morrer. Aquilo era
horrível. Era pior do que horrível. Era o inferno.
Mas aí eu mexi uma das mãos, a única parte do corpo que ainda conseguia
mexer, e senti uma coisa áspera e fria sobre mim. Foi então que entendi o
que havia acontecido. A galeria tinha desmoronado. A Heather tinha usado
seu último restinho de poder de movimentar as coisas para me atingir. E
tinha feito um belo trabalho, pois eu não conseguia mexer, presa debaixo
de sabe-se lá quantos quilos de madeira e telhas espanholas.
Legal, Heather. Obrigada mesmo.
Eu devia estar com medo, pois estava completamente paralisada,
incapaz de me mexer, na mais total escuridão. Mas antes mesmo que
pudesse entrar em pânico, ouvi alguém me chamando pelo nome. No início
achei que podia estar ficando louca. Afinal, ninguém sabia que eu tinha ido
ao colégio, exceto Jesse, claro, e eu deixara bem claro para ele o que lhe
aconteceria se aparecesse por lá. Ele não era burro. Sabia perfeitamente
que eu ia fazer um exorcismo. Será que tinha decidido aparecer as sim
mesmo? Será que tudo já tinha se acalmado? Eu não sabia. E se ele
entrasse no círculo de velas e sangue de galinha, será que seria sugado para
o mesmo mundo de sombras que havia levado a Heather?
Agora eu estava começando a entrar em pânico.
-Jesse! – berrei, esmurrando um pedaço de madeira que estava bem em
cima de mim e recebendo no rosto uma pequena chuva de lascas de
madeira e poeira. – Sai daí! – gritei. Aquela poeira toda estava me
asfixiando, mas eu não me importava. – Vai embora! É perigoso!
De repente, um enorme peso foi retirado do meu peito e eu voltei a ver.
Acima de mim estava o céu de um azul de veludo, salpicado de uma poeira
de estrelas. E naquela moldura de estrelas um rosto se debruçava sobre
mim com expressão preocupada.
-Ela está aqui! – gritou o Mestre, com a voz quase irreconhecível. – Jake,
eu a encontrei!
Um outro rosto veio juntar -se ao primeiro, envolto numa moldura de
longos cabelos loiros.
-Jesus Cristo – disse Soneca ao me ver, com a voz arrastada. – Você está
bem, Suze?
Eu fiz que sim com a cabeça, atordoada.
-Me ajudem a sair daqui! – disse então.
Os dois conseguiram tirar de cima de mim os pedaços maiores de madeira.
Depois o Soneca mandou que eu passasse meus braços ao redor do seu
pescoço, o que eu fiz, enquanto o David me segurava pela cintura. Com os
dois me puxando e eu empurrando com os pés, finalmente consegui me
livrar dos escombros.
Ficamos um minuto sentados na escuridão do pátio, recostados no
pedestal da estátua decapitada de Junipero Serra. Simplesmente ficamos
ali, ofegando e olhando as ruínas do colégio. Bom, acho que estou
exagerando um pouco. A maior parte do colégio ainda estava de pé. E por
sinal o mesmo também acontecia com a maior parte da galeria. Só havia
desabado a parte que ficava em frente ao armário da Heather e à sala de
aula do professor Walden. Aquele monte de madeira retorcida
convenientemente ocultava qualquer resquício de minhas atividades
noturnas, inclusive as velas, que naturalmente haviam desaparecido. Não
havia qualquer sinal da Heather. A noite parecia perfeitamente tranqüila, só
ouvimos nossa própria respiração. E os grilos.
Foi assim que eu fiquei sabendo que a Heather realmente tinha ido embora.
Os grilos haviam voltado a cantar.
-Minha nossa! – voltou a dizer o Soneca, ainda ofegante. – Tem certeza de
que está bem, Suze?
Voltei-me para ele. Ele estava usando apenas um par de jeans e uma
jaqueta do exército, que tinha enfiado sem nem ter tempo para vestir antes
uma camisa. Pude ver então que o Soneca tinha a mesma barriga de tanque
que o Jesse.
Como é que eu podia quase ter morrido sufocada e ainda estar ali minutos
depois observando coisas como os músculos abdominais do meu meio -
irmão?
-Claro – respondi, afastando uma mecha de cabelo dos olhos, - Eu estou
bem. Talvez um pouco zonza, mas nada quebrado.
-Talvez seja melhor levá-la para o hospital para um check-up – disse David
com a voz ainda bem alterada. – Você não acha que é melhor levá -la para o
hospital para um check-up, Jake?
-Não – disse eu. – Nada de hospital.
-Você pode ter tido uma concussão – insistiu David. – Ou uma fratura no
crânio. Você pode até entrar em coma durante o sono e nunca mais voltar.
Precisa pelo menos tirar uma radiografia. Talvez até seja bom uma
tomografia...
-Não – cortei, sacudindo a poeira do meu colante com as mãos e
levantando-me. Meu corpo estava bem maltratado, mas inteiro. – Vamos.
Vamos embora daqui antes que chegue alguém. Eles não podem deixar de
ter ouvido tudo isto – prossegui, apontando com o queixo para a parte do
complexo onde viviam os padres e a s freiras. Em algumas janelas já se
viam as luzes acesas. – Não quero que vocês tenham problemas.
-Isso aí – concordou Soneca, levantando-se. – Mas você bem que podia ter
pensado nisso antes...
Saímos do mesmo jeito que havíamos entrado. Como eu, David tam bém
passara por baixo do portão principal, destrancando -o por dentro para
deixar o Soneca entrar. Saímos o mais discretamente possível e corremos
para o Rambler, que o Soneca havia estacionado num lugar mais escuro,
fora do raio de visão do carro da políci a. Este ainda estava no mesmo lugar
e seu ocupante não tinha sequer tomado conhecimento do que havia
acontecido a algumas dezenas de metros de distância. Ainda assim, eu não
queria correr nenhum risco, tentando passar despercebida por ele para
pegar a bicicleta. Deixamos que ela ficasse lá, na esperança de que
ninguém a encontraria.
No caminho para casa, meu novo irmãozão Jake ficou o tempo todo me
passando sermão. Provavelmente ele estava pensando que eu estava no
colégio no meio da noite participando de a lguma cerimônia de gangue.
Não estou brincando. Ele estava realmente furioso com a coisa. Queria
saber se eu estava consciente do tipo de amigos que vinha freqüentando,
gente disposta a me deixar morrer debaixo de um monte de telhas. Disse
que se eu estivesse entediada ou em busca de emoções fortes o melhor que
tinha a fazer era pegar uma prancha de surf e ir para a praia:
-Se é para rachar a cabeça no meio, pelo menos que seja pegando uma
onda, garota.
Agüentei aquele sermão com a maior elegância possível. Afinal, eu
não podia exatamente dizer a ele o real motivo para estar no colégio àquela
hora. Só interrompi o Jake uma vez durante seu discurso contra as gangues,
para perguntar como ele e David tinham tido a idéia de ir me buscar.
-Não sei – respondeu Jake enquanto subíamos a rua. – Só sei que eu estava
pegando pesado no sono quando de repente o Dave estava me sacudindo,
dizendo que tínhamos de ir ao colégio para te encontrar. E como é que
você sabia que ela estava lá, Dave?
O rosto do David estava excepci onalmente branco, mesmo levando -se em
conta a luz do luar.
-Não sei – respondeu ele tranqüilamente. – Acho que foi só uma intuição.
Voltei-me para ele, mas ele desviou o olhar.
E eu fiquei pensando: esse garoto está sabendo.
Mas eu estava cansada demais pa ra falar a respeito naquela hora. Entramos
em casa, aliviados porque o único morador acordou com a nossa chegada
foi o Max, que ficou sacudindo o rabo e tentando nos lamber enquanto nos
encaminhávamos para nossos quartos. Antes de entrar no meu quarto, olh ei
para o David só uma vez, pra ver se queria ou precisava dizer -me alguma
coisa. Mas não. Ele simplesmente foi entrando no seu quarto e fechando a
porta, como um menininho assustado. Meu coração se encheu de orgulho
por ele.
Mas só durou um segundo. Eu es tava cansada demais para pensar em
alguma coisa que não fosse a cama – nem mesmo no Jesse. Amanhã de
manhã, pensei, enquanto tirava minhas roupas cheias de poeira. Amanhã de
manhã eu falo com ele.
Mas não falei. Quando acordei, q luz do lado de fora da min ha janela
estava estranha. Quando levantei a cabeça e vi o relógio, entendi por quê.
Eram duas horas da tarde. Toda aquela bruma da manhã já se tinha
dissipado e o sol castigava como se estivéssemos em pleno verão e não no
mês de janeiro.
-Muito bem, hein, dorminhoca.
Olhei na direção da porta do quarto e lá estava o Andy, recostado na
porta com os braços cruzados. Ele estava sorrindo, o que provavelmente
queria dizer que estava tudo bem. Mas então o que eu estava fazendo na
cama às duas horas da tarde de um dia de aula?
-Está se sentindo melhor? – quis saber o Andy.
Eu empurrei um pouco as cobertas. E se eu estivesse doente? Não seria
nada difícil fingir. Eu estava mesmo me sentindo como se tivessem jogado
uma tonelada de tijolos na minha cabeça.
O que, de certa forma, não estava muito longe da verdade.
-Hmm – fiz eu. – Não muito.
-Vou lhe trazer uma aspirina. Parece que o cansaço da viagem te pegou de
jeito, hein! Como não conseguimos te acordar hoje cedo, decidimos deixá -
la dormir. Sua mãe me pediu que a d esculpasse, mas teve de ir para o
trabalho. Deixou-me cuidando das coisas. Espero que você não se importe.
Eu tentei sentar-me, mas estava difícil. Parece que eu tinha sido espancada
em cada músculo do corpo. Afastei o cabelo dos olhos e olhei para ele:
-Não precisava – disse. – Não precisava ter ficado em casa por minha
causa.
Andy deu de ombros.
-Não faz mal. Praticamente não tenho conseguido falar com você desde
que você chegou, e achei então que a gente podia botar a conversa em dia.
Quer alguma coisa para almoçar?
No exato momento em que ele fez a pergunta, meu estômago deu um
ronco. Eu estava morta de fome.
Ele ouviu e abriu um sorriso:
-Sem problema. Vista-se e desça. Vamos almoçar ao ar livre. O dia está
lindo.
Precisei me forçar para sair da cama. E u estava de pijama e sem muita
vontade de me vestir. De modo que apenas vesti um par de meias e um
roupão, escovei os dentes e fiquei uns momentos olhando para a janela
enquanto tentava desembaraçar o cabelo. Por trás dela, dava para ver o mar
reluzindo. À distancia, ninguém diria que tanta destruição havia acontecido
ali na noite anterior.
Não demorou e um delicioso cheiro de comida chegou lá da cozinha,
e decidi descer a escada. Andy estava fazendo sanduíches Reuben. Mas ele
foi logo me expulsando da cozi nha em direção ao enorme deque que tinha
construído atrás da casa. A área estava inundada de sol e eu me estirei
numa das chaises longues, me sentindo por alguns momentos como uma
estrela de cinema. Pouco depois o Andy chegou com os sanduíches e uma
jarra de limonada, e eu fui para a mesa com o pára -sol verde e mandei ver.
Para um não nova-iorquino, até que o Andy fazia um Reuben razoável.
Ele passou bem uma meia hora me fazendo um verdadeiro interrogatório...
mas não sobre o que havia acontecido na noite d a véspera. Para minha
surpresa, Soneca e Mestre tinham ficado de boca fechada. Andy estava
completamente por fora do que tinha acontecido. Só queria saber se eu
estava gostando do colégio, se estava feliz, blábláblá...
Só tinha um detalhe. Enquanto me perg untava se eu estava gostando da
Califórnia, e se era realmente tão diferente assim de Nova York, ele acabou
dizendo:
-Quer dizer então que você dormiu tranqüilamente durante o seu primeiro
terremoto...
Eu quase engasguei.
-O quê?
-O seu primeiro terremoto. Houve um terremoto esta noite, por volta das
duas horas. Não foi dos mais fortes, apenas uns quatro graus, mas o
suficiente para me acordar. Nada foi destruído, exceto lá na Missão. A
galeria desmoronou. O que aliás não deve ter surpreendido. Há anos eu
venho avisando os padres sobre o perigo daquela madeira. É quase tão
antiga quanto a própria Missão. Não se podia esperar mesmo que durasse
para sempre.
Eu estava mastigando mais devagar. Minha nossa. A despedida da Heather
devia mesmo ter dado umas boas sa cudidelas, para se fazer sentir daquele
jeito por todo o vale até nas colinas.
Mas isto ainda não explicava por que o David decidira ir me procurar no
colégio.
Eu tinha voltado para o quarto e estava no assento da janela
folheando uma revista de moda bem b obinha, tentando imaginar onde o
Jesse tinha ido parar, quanto tempo ainda teria de esperar até que ele
voltasse a aparecer para me fazer mais um dos seus sermões e se ele ainda
seria capaz de me chamar novamente de hermosa, quando os garotos
chegaram do colégio. Dunga passou direto pelo meu quarto (ele ainda não
tinha me perdoado por ter ficado de castigo) mas o Soneca mostrou a
cabeça, viu que eu estava bem e foi embora, balançando a cabeça. O único
a bater na porta foi o David. Eu o convidei a entrar, e ele entrou,
timidamente.
-Trouxe o seu dever de casa. O professor Walden me deu para entregar a
você. Mandou fizer que espera que você esteja melhor.
-Puxa – disse eu. – Obrigada, David. Pode deixar aí na cama.
Foi o que ele fez. Mas em vez de se retirar, ele ficou ali, olhando para a
guarda da cama. Percebi que estava querendo dizer alguma coisa e fiquei
calada, esperando que ele resolvesse se abrir.
-Cee Cee mandou um beijo – disse ele. – E aquele outro cara também, o
Adam McTvish.
-Legal – respondi.
Fiquei esperando. David não me desapontou.
-Está todo mundo comentando – foi dizendo.
-Comentando o quê?
-Você sabe. O terremoto. Que a Missão deve estar em cima de alguma
falha geológica que ainda era conhecida, pois o epicentro parece ter sido...
bem do outro lado da sala de aula do professor Walden.
Eu fiz apenas “hmm” e virei a página da revista.
-Quer dizer então que você nunca vai me contar?... – fez o David.
Eu nem olhei para ele.
-Contar o quê?
-O que está acontecendo. Por que você estava no colégio no meio da noite.
Como a galeria desmoronou. Tudo isso.
-É melhor você não ficar sabendo – respondi, virando a página. – Confie
em mim.
-Mas não tem nada a ver com... com o que o Jake disse, certo? Essa
história de gangue.
-Não – respondi.
Olhei então para ele. O sol, entrando pela janela, ressaltava o rosado
de sua pele. Aquele garoto, com seus cabelo ruivos e as orelhas pontudas,
tinha salvo a minha vida. Eu lhe devia uma explicação, era o mínimo que
poda fazer.
-Eu vi, sabe? – disse David.
-Viu o quê?
-O fantasma.
Ele estava olhando para mim, pálido e intenso. Parecia sério demais para
um guri de doze anos.
-Que fantasma? – perguntei.
-O que vive aqui. Neste quarto. – Ele olhou ao redor, como se esperasse
encontrar o Jesse em algum cantinho do meu ensolarad o quarto. – Ele me
procurou esta noite. Juro. Me acordou. Ficou me falando de você. Foi
assim que fiquei sabendo. Foi assim que eu soube que você estava
enrascada.
Fiquei olhando para ele de queixo caído. O Jesse? O Jesse tinha contado
para ele? O Jesse o tinha acordado?
-Ele não me deixava em paz – prosseguiu David, com a voz trêmula. Ele
ficava... me tocando. No ombro. Era frio e reluzia. Era apenas uma coisa
fria e reluzente e dentro da minha cabeça uma voz ficava me dizendo que
eu tinha de ir ao colégio te ajudar. Não estou mentindo, Suze. Juro que
aconteceu realmente.
-Eu sei, David – disse eu, fechando a revista. – Acredito em você.
Ele já estava de novo com a boca aberta para jurar outra vez que era tudo
verdade, mas ao me ouvir dizer que acreditava n ele voltou a fechá-la. Só
voltou a abri-la para perguntar, meio desconfiado:
-Acredita mesmo?
-Acredito – respondi. – Não pude dizer ontem à noite mas estou dizendo
agora. Obrigada, David. Você e o Jake salvaram a minha vida.

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