Capítulo 13
Minha intenção, naturalmente, era acordar ce do e telefonar ao padre
Dominic para avisá-lo sobre a Heather. Mas de boas intenções o inferno
está cheio e vai ver eu não presto mesmo para nada, pois só fui acordar
com minha mãe me sacudindo, e àquela altura já eram sete e meia e minha
carona já estava indo embora.
Ou pelo menos era o que eles achavam. Eles se atrasaram à beça quando o
Soneca descobriu que tinha perdido as chaves do Rambler, de modo que
deu tempo de eu me arrastar da cama e enfiar -me numa roupa qualquer -
não me perguntem qual. Fui desce ndo a escada quase sem me agüentar, e
parecia que alguém tinha batido várias vezes na minha cabeça com um
saco de pedras enquanto o Mestre contava para todo mundo que a irmã
Ernestine tinha avisado que se ele faltasse a mais uma formatura teria de
repetir o ano.
Foi aí que lembrei que as chaves do Rambler estavam no bolso da minha
jaqueta de couro desde a noite anterior.
Discretamente, fui subindo de novo a escada e fingi que tinha achado as
chaves no patamar. O pessoal comemorou um pouco, mas reclamou um
bocado, pois o Soneca jurava que as tinha deixado penduradas no gancho
da cozinha e não sabia como tinham ido parar no patamar.
-Deve ter sido o fantasma do Dave - disse o Dunga olhando de soslaio para
o Mestre, que ficou totalmente sem graça.
Então entramos no carro e fomos embora.
Claro que estávamos atrasados. Na Academia da Missão Junipero Serra, a
formatura começa às 8 horas em ponto. Nós chegamos uns dois minutos
depois. Nessa formatura, que dura mais ou menos quinze minutos antes do
início das aulas, é feita a chamada e são lidas comunicações aos alunos,
enfileirados separadamente por sexo, os garotos de um lado e as garotas de
outro, como se fôssemos missionários quadres ou algo assim. Quando nós
chegamos, claro que a formatura já tinha começado. Eu p retendia passar
agachada direto para o gabinete do padre Dominic, mas evidentemente não
tive a menor chance.
Irmã Ernestine anotava a meu respeito em seu caderninho negro, mas
percebi que seria impossível chegar ao gabinete do diretor, por causa das
fitas isolantes amarelas que impediam a passagem pelos arcos ao redor do
pátio - e, naturalmente, por causa de todos aqueles guardas que estavam ali.
Só posso deduzir que todos os padres e freiras e o pessoal se levantou para
as matinas, que é como eles chamam a primeira missa da manhã, e deram
lá fora com a estátua do fundador da igreja sem cabeça, a fonte quase sem
água nenhuma, o banco onde eu estivera sentada completamente retorcido
e revirado e a porta da sala de aula do professor Walden em panderecos.
Compreensivelmente, eles surtaram e chamaram a polícia. O pessoal de
uniforme estava por toda parte, colhendo impressões digitais e tirando
medidas, como a distância que a cabeça de Junipero Serra percorrera e a
velocidade em que precisava ter voado para fazer tantos buracos numa
porta feita de madeira com espessura de sete centímetros, e coisas assim.
Eu vi um sujeito metido num jaquetão de couro azul -marinho conversando
com o padre Dominic, que parecia mesmo muito, mas muito cansado. Não
consegui que ele me visse, e concluí que teria de esperar o fim da
formatura para sair de fininho e me desculpar com ele.
Na formatura, a irmã Ernestine, que era a vice -diretora, disse que aquilo
tinha sido feito por vândalos. Um bando de vândalos tinha invadido a sala
do professor Walden e cometido aquele desatino todo na escola.
Felizmente, acrescentou, o cálice e a bandeja de ouro maciço usados para o
vinho e as hóstias do sacramento não tinham sido roubados e continuavam
em seu devido lugar no altar da igreja. Os vândalos ti nham decapitado
violentamente o fundador do nosso colégio, mas deixaram em paz o que
era realmente valioso. Se algum de nós soubesse alguma coisa sobre aquela
terrível violência, deveria informar imediatamente. E se não nos
sentíssemos à vontade para fazê -lo pessoalmente, poderíamos informar
anonimamente - monsenhor Constantine estaria ouvindo confissões...
...todas a manhã.
Corta essa... Não era culpa minha se a Heather tinha ensandecido
completamente. Nada disso. Se alguém tinha que confessar era ela.
Ali na formatura eu estava bem atrás da Cee Cee, que mal conseguia
esconder sua felicidade com o que tinha acontecido; dava até para ver a
manchete se formando em sua mente: "Vândalos arrancaram a cabeça do
padre Serra". Estiquei um pouco o pescoço para tenta r ver os veteranos. E
se o Bryce estivesse lá? Eu não estava conseguindo vê -lo.Talvez o padre
Dom já tivesse falado com ele e ele tivesse voltado para casa. Ele não
podia deixar de ter visto que aquele estrago todo ali no pátio decorria de
muita agitação espiritual, e não humana. E eu esperava que o padre Dom
não tivesse recorrido aos piolhos.
Tudo bem, era mais em mim do que no Bryce que eu estava pensando. Eu
queria muito que o nosso encontro de sábado desse certo, e não que fosse
cancelado por causa de p iolhos. Por acaso é algum crime? Não é possível
que uma garota comum tenha de passar o tempo todo enfrentando
distúrbios psíquicos. Um pouquinho de romance também não faz mal
nenhum.
Mas é claro que assim que a formatura acabou e eu tentei me encaminhar
depressinha para o gabinete do padre Dom, a irmã Ernestine me apanhou
com a boca na botija, no exato momento em que eu tentava passar por
debaixo de uma das fitas amarelas, e foi dizendo:
- Espera aí um pouquinho, senhorita Simon. Talvez lá em Nova York as
pessoas possam ignorar fitas de isolamento da polícia, mas aqui na
Califórnia não é nada recomendável.
Eu me endireitei. Quase tinha conseguido... Fiquei pensando umas coisas
nada agradáveis sobre a irmã Ernestine, mas consegui dizer educadamente:
- Puxa, irmã, sinto muito. É que preciso chegar ao gabinete do padre
Dominic.
- O padre Dominic - disse friamente irmã Ernestine - está muito ocupado
esta manhã. Ele está reunindo com os policiais por causa do lamentável
incidente da noite passada. Não vai poder f alar com ninguém mais pelo
menos até depois do almoço.
Irmã Ernestine me olhou com um jeito de "eu sabia" e voltou sua
atenção para o inocente garoto que caíra na besteira de ir ao colégio de
jeans, uma falta imperdoável. O guri tentou se justificar humi ldemente,
dizendo que eram as únicas calças limpas que tinha naquele dia, mas a
irmã Ernestine ficou firme. Firme, infelizmente, no exato lugar por onde eu
poderia passar a caminho do gabinete do diretor, tratando de anotar a falta
do aluno.
Eu não tinha outra opção senão ir para a sala de aula. Afinal, que poderia
dizer ao padre Dominic que ele já não soubesse? Eu tinha certeza de que
ele sabia que a Heather é que tinha devastado o colégio, e que eu tinha
quebrado a janela da sala do professor Walden. Prov avelmente ele nem ia
estar assim tão satisfeito comigo, logo, por que me preocupar? O que eu
devia estar fazendo mesmo era tratar de fazer com que ele esquecesse de
mim.
A não ser que... onde andaria a Heather?
Pelo que eu podia imaginar, ela ainda devia e star se recuperando de sua
fúria assassina da noite anterior. Não vi qualquer sinal dela quando me
caminhei para a sala de aula do professor Walden para o primeiro período,
o que era bom sinal: significava que o padre D e eu teríamos tempo para
fazer algum plano antes que ela voltasse a atacar.
Enquanto assistia à aula tentando me convencer de que tudo ia dar certo, eu
não podia deixar de sentir uma certa pena do professor Walden. Ele estava
com a porta da sua sala razoavelmente destruída. Até que nem parec ia estar
se importando tanto com a janela quebrada. Claro que todo mundo do
colégio estava comentando o que havia acontecido. As pessoas estavam
dizendo que a decapitação de Junipero Serra tinha sido uma piada de mau
gosto. Mas uma piada e tanto. Uma vez, há alguns anos, contara-me Cee
Cee, os veteranos tinham amarrado travesseiros nos badalos dos sinos da
igreja, de modo que quando foram tocados só saiu um ridículo som
abafado. Acho que as pessoas ficaram achando que era uma gracinha do
mesmo gênero.
Se eles soubessem a verdade... O lugar da Heather, ao lado da Kelly
Prescott, continuava vazio, enquanto o seu armário - que agora era meu -
ainda não podia ser usado por causa do amassão provocado pelo impacto
do seu corpo.
Não deixou de ser irônico que, enqua nto eu estava pensando exatamente
nisto, a Kelly levantasse o braço e, recebendo autorização do professor
Walden para falar, perguntasse se ele não achava injusto o monsenhor
Constantine decidisse que não haveria nenhum serviço religioso em
memória da Heather.
O professor Walden recostou-se na cadeira e pôs os pés em cima da mesa.
E tratou de tirar o corpo fora:
- Não pergunte a mim. Eu só trabalho aqui.
- Mas o senhor não acha que é injusto? - insistiu a Kelly, voltando-se para
o resto da turma com seus enormes cílios cheios de rímel piscando muito. -
A Heather freqüentou este colégio durante dez anos. Não dá para entender
que ela não possa ser homenageada em seu próprio colégio. E para dizer a
verdade eu acho que o que aconteceu ontem foi um sinal...
O professor Walden parecia estar se divertindo horrores:
- Um sinal, Kelly?
- Exatamente. Tenho certeza de que o que aconteceu aqui ontem à noite,
inclusive aquela tora de madeira que quase matou o Bryce, tem ligação.
Não acho mesmo que a estátua do padre Serra tenha sido depredada por
vândalos, e sim por anjos. Anjos que estão muito danados com o fato de
monsenhor Constantine não permitir que os pais da Heather realizem seu
funeral aqui.
A turma toda começou a cochichar. As pessoas ficavam olhando nervosas
para o lugar vazio da Heather. Geralmente eu não falo muito no colégio,
mas aquela eu não podia deixar passar. Disse então:
- Você está dizendo então que foi um anjo que quebrou esta janela aqui
atrás de mim, Kelly?
Ela precisou virar-se para me ver:
- Bem... - fez ela. - Pode ter sido...
- Certo. E você acha que foram anjos que arrombaram a porta da sala,
arrancaram a cabeça da estátua e arrasaram o pátio?
Kelly esticou o queixo para frente.
- Sim - disse. - Acho sim. Foram anjos inconformados com a decisão
de monsenhor Constantine de não permitir que a gente homenageie a
Heather.
Eu balancei a cabeça.
- Besteira - disse.
Kelly levantou as sobrancelhas:
- Como?!
- Besteira, Kelly. Acho que a sua teoria é pura besteira.
A Kelly adquiriu uma coloração avermelhada das mais interessantes. Acho
que ela provavelmente estava lamentando ter -me convidado para a festa na
piscina.
- Você não pode ter certeza de que não foram anjos, Suze - disse ela toda
azeda.
- Na verdade posso, pois pelo que sei anjos não sangram, e o ca rpete estava
cheio de sangue desde o lugar onde o vândalo se cortou ao arrombar a
janela até aqui. Foi por isto que a polícia cortou pedaços do carpete para
examiná-los.
A Kelly não foi a única a engolir em seco. Todo mundo meio que surtou.
Provavelmente eu não devia ter falado do sangue, ainda mais porque era
meu, mas não podia deixar que ela ficasse dizendo que era tudo por causa
dos anjos. Anjos uma droga. O que ela estava pensando? Que estava no
cinema?
- Muito bem, muito bem - interrompeu o professor Walden. - Agora,
pessoal, está na hora do segundo período. Suzannah, posso falar com você
um instantinho?
Cee Cee virou-se para ficar abanando aqueles cílios dela na minha direção.
- Agora chegou a sua vez, otária - disse.
Mas ela nem estava sabendo como po dia estar certa. Bastava que qualquer
um desse uma olhada nos band-aids que estavam no meu pulso, e ficaria
sabendo que eu sabia por experiência própria de onde vinha aquele sangue.
Por outro lado, ninguém podia ter algum motivo para suspeitar de mim,
confere?
Fui me aproximando da mesa do professor Walden com o coração na boca.
Ele vai te entregar, pensei, furiosa. Você é uma negação, Suzannah.
Mas o professor Walden só queria me cumprimentar pelas notas de pé de
página da minha redação sobre a batalha de Bladensburgo, que ele havia
notado quando eu a entreguei.
- Ah... - disse eu. - Não é nada de mais, professor.
- Sim, mas notas de pé de página... - suspirou ele. - Desde que eu
dava aulas para adultos na escola comunitária, nunca mais tinha voltado a
ver notas de pé de página serem usadas corretamente. Realmente, você fez
um excelente trabalho.
Eu balbuciei um modesto obrigado. Eles não precisavam ficar sabendo que
eu entendia tanto da batalha de Bladensburg porque uma vez tinha ajudado
um veterano da guerra a levar dois antepassados dele até o local onde fora
enterrado um saco de dinheiro que ele deixara cair na luta. Podem ser
mesmo bem engraçadas as coisas que ficam impedindo as pessoas de
seguirem com sua vida... ou melhor, com sua morte.
Eu estava quase dizendo ao professor Walden que gostaria muito, em
condições normais, de ficar batendo um bom papo sobre grandes batalhas
americanas, mas que tinha de ir (eu ia ver se a irmã Ernestine ainda estava
montando guarda no caminho para o gabinete do padre Dom) , quando ele
me deteve com estas simples palavras:
- É engraçado, realmente, que a Kelly tenha se referido daquela maneira à
Heather, Suzannah.
Eu olhei pra ele desconfiada:
- Ah, é? Como assim?
- Bem, não sei se você sabia, mas a Heather era vice -presidente da turma
dos segundanistas, e agora que não a temos mais aqui eu estou recolhendo
indicações para o cargo. E acredite ou não, você foi indicada. Doze vezes
por enquanto.
Meus olhos devem ter saltado de órbita. esqueci completamente que eu
tinha de me arrancar dali para ir falar com o padre Dominic.
- Doze vezes?!
- Sim, é estranho, não é mesmo?
Eu não conseguia acreditar.
- Mas eu só estou aqui há um dia!
- O fato é que você causou uma forte impressão. Eu mesmo me arriscaria a
dizer que você não fez exatamente inimigos ontem quando ameaçou
quebrar os dedos da Debbie Mancuso depois da aula. Ela não é das colegas
mais queridas...
Eu fiquei olhando para ele. Quer dizer então que o professor Walden
realmente tinha ouvido a minha ameaça. O fato de ele ter ouvi do e não ter
me mandado direto para o castigo me fez admirá -lo de uma maneira que
nenhum professor antes havia merecido.
- E acho também que o fato de você ter empurrado o Bryce Martinson
quando aquela tora de madeira vinha na direção dele também deve ter
ajudado um pouco - acrescentou.
- Uau! - fiz eu.
Provavelmente nem preciso lembrar aqui que na minha antiga escola eu
não era certamente aquela que ganhava os concursos de popularidade. Eu
nem me dava ao trabalho de me oferecer para ser líder de torcida ou
madrinha do time. Mesmo considerando que na minha escola antiga ser
líder de torcida era considerado uma enorme perda de tempo e que no
Brooklyn não é exatamente um elogio ser chamada de madrinha de alguma
coisa, o fato é que eu nunca teria conseguido qua lquer das duas coisas. E
ninguém - mas ninguém mesmo - nunca tinha me indicado antes para o que
quer que fosse.
Eu estava orgulhosa demais para seguir meu instinto, que me dizia:
agradeça, mas diga que não, e saia correndo.
- Bem... - comecei. - Quais são as obrigações do vice-presidente?
O professor Walden explicou:
- Ajudar o presidente a decidir como gastar a verba da turma,
principalmente. Não é muita coisa, um pouco mais de três mil dólares. A
Kelly e a Heather estavam planejando promover uma festa no Carmel Inn,
mas...
- Três mil dólares!? - repeti, provavelmente com o queixo caído.
- É, eu sei que não é muito...
- E a gente pode gastar como quiser? - Minha mente estava girando. - Quer
dizer que se a gente quisesse fazer uma série de festinhas na praia
poderíamos?
O professor Walden me olhou com curiosidade.
- Claro. Mas o resto da turma precisa aprovar. Desconfio que pode estar
rolando na administração um papo sobre usar o dinheiro da turma para
consertar a estátua do padre Serra, mas... O que quer que o professor
Walden fosse acrescentar, no entanto não conseguiu. A Cee Cee voltou
correndo para a sala, os olhos muito arregalados por trás das lentes de seu
óculos de vidro colorido:
- Venham, venham depressa! - berrava ela. - Aconteceu um acidente! O
padre Dominic e o Bryce...
Eu saí correndo feito uma bala:
- O quê? - perguntei,m com muito mais ênfase do que seria desejável. -
Que aconteceu com ele?
- Acho que estão mortos!
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