terça-feira, 12 de julho de 2011

A Mediadora - Terra das Sombras - Meg Cabot Cap.12


Capítulo 12
Vamos para casa.
Aquele "Vamos para casa" tinha um ar tão aconchegante...
Só que a casa na qual ambos estávamos vivendo ainda não me parece
exatamente como se fosse um lar. E como poderia? Eu só estava vivendo lá
há uns poucos dias...
E por outro lado, claro, ele não tinha nada de estar vivendo lá...
De qualquer maneira, fantasma ou não fantasma, ele sa lvara a minha vida.
Isto não se podia negar. E talvez só o tivesse feito para cortejar o meu lado
bom, para que eu não acabasse por expulsá -lo completamente da casa.
Independentemente do motivo, o fato é que tinha sido muito legal da parte
dele. Até então ninguém nunca tomara a iniciativa de me ajudar -
principalmente, é claro, porque ninguém sabia que eu precisava de ajuda.
Nem a Gina, que estava presente quando madame Zara declarou que eu era
um mediadora, sabia por que eu aparecia às vezes na escola com os olhos
muito fundos, ou onde é que eu me metia quando faltava às aulas - coisa
que eu fazia com bastante freqüência. E eu não podia explicar o que estava
acontecendo. Não que Gina fosse pensar que eu estava maluca ou alguma
coisa assim, mas ela acabaria dizendo a alguém mais (a gente só consegue
manter segredo sobre essas coisas quando estão acontecendo conosco), que
por sua vez diria a mais alguém e eu sabia que em algum momento alguém
acabaria dizendo a minha mãe.
E minha mãe entraria em surto. Claro qu e é isto que as mães costumam
fazer, e a minha não é diferente das outras. Ela já tinha me obrigado a fazer
terapia e eu tinha de me sentar lá e ficar inventando mentiras complicadas
na esperança de explicar meu comportamento anti -social. Eu não tinha a
menor intenção de ir parar num asilo de loucos, que certamente era onde eu
iria acabar se minha mãe alguma vez tivesse descoberto a verdade.
De modo que só podia me sentir agradecida por ter Jesse ao meu
lado, embora ele me deixasse meio nervosa. Depois de t oda aquela
catástrofe lá na Missão, ele me acompanhou até em casa, um perfeito
cavalheiro. E até insistiu em empurrar ele mesmo a bicicleta, por causa da
minha ferida. Se alguém tivesse olhando pelas janelas das casas por onde
íamos passando, teria pensado que estava vendo coisas: eu me arrastando
com dificuldade e aquela bicicleta deslizando ao meu lado sem o menor
problema - com o detalhe de que minhas mãos nem tocavam nela.
Ainda bem que na Costa Oeste as pessoas vão dormir cedo.
O tempo todo, enquanto voltávamos para casa, a única coisa em que eu
conseguia pensar era o que havia saído errado no confronto com a Heather.
Não voltei a falar do assunto - já o havia feito bastante; não queria ficar
parecendo um disco quebrado, ou uma pianola quebrada ou o qu e quer que
se usasse na época do Jesse. Mas era o único assunto em que eu conseguia
pensar. Nunca, mas nunca havia encontrado um espírito tão violento e
irracional. Eu simplesmente não sabia o que fazer. E eu sabia que precisava
encontrar uma saída, e bem depressa; faltavam só umas poucas horas para
começarem as aulas e o Bryce cair direitinho na armadilha mortal que
estava sendo preparada para ele.
Não sei se o Jesse percebeu por que eu estava tão calada, ou se ele estava
pensando na Heather também... Só s ei que de repente ele quebrou o
silêncio e disse:
- Não há no céu fúria comparável ao amor transformado em ódio nem há
no inferno ferocidade como a de uma mulher desprezada.
Eu olhei para ele.
- Está falando por experiência própria?
Ele deu um pequeno sorr iso à luz da lua.
- É uma citação de William Congreve.
- Ah... Mas, como você sabe, às vezes a mulher desprezada está cheia de
razões de ficar furiosa.
- E você está falando por experiência própria? - quis saber ele.
Eu dei uma risada.
- Nem de longe.
Pra te desprezar, é porque antes o cara gostou de você. Mas isto eu
não disse em voz alta. Não há a menor hipótese de que eu pudesse alguma
vez dizer uma coisa dessas em voz alta. Não que eu estivesse preocupada
com o que o Jesse podia pensar de mim. Por que haveria de me preocupar
com o que um caubói morto podia pensar de mim?
Mas eu não ia reconhecer diante dele que nunca havia tido um namorado.
A gente não sai por aí dizendo coisas assim a caras gostosões como ele,
mesmo que estejam mortos.
- Mas a gente não sabe o que aconteceu entre a Heather e o Bryce. No
fundo, não sabemos. Ela podia ter muitas razões para estar ressentida.
- Ressentida com ele, acho que sim - disse Jesse, embora parecesse
relutante em admiti-lo. - Ma não com você. Ela não tinha direito de tentar
machucá-la.
Ele parecia tão furioso com aquilo que achei melhor mudar de assunto. No
fundo, eu é que devia ter ficado danada com o fato de a Heather ter tentado
me matar, mas sabe como é, já estou meio acostumada a lidar com gente
irracional. Tudo bem, não tão irracional como a Heather, mas vocês sabem
o que estou querendo dizer. E se há uma coisa que eu já aprendi, é que não
se pode tomar as coisas pelo lado pessoal. Certo, ela tinha tentado me
matar, mas como é que vou saber se ela tinha algum d escriminamento?
Quem pode garantir como eram os pais dela, afinal de contas? E se eles
eram do tipo que saía por aí matando o primeiro capaz de contrariá -los?...
Mas depois de ver aquele colar de pérolas eu fiquei duvidando que eles
fossem desse tipo.
Enquanto estava pensando nessas matanças, acabei me perguntando por
que o Jesse acabara ficando tão indignado. Foi aí que me dei conta de que
provavelmente ele tinha sido assassinado. Ou então tinha se matado. Mas
não achava que ele fosse capaz de se matar. Ac hava que ele poderia ter
morrido de alguma doença arrasadora...
Talvez não tenha sido muito delicado da minha parte (mas de
qualquer forma eu nunca fui propriamente famosa pela delicadeza), mas
acabei indo em frente e perguntei, quando estávamos subindo a longa
ladeira coberta de cascalho até em casa:
- Mas e você? Como foi mesmo que morreu?
Jesse não disse nada logo em seguida. Provavelmente eu o tinha ofendido.
Já pude notar que os fantasmas não gostam muito de falar sobre como
morreram. Às vezes nem se lembram. Vítimas de acidentes de carro
geralmente não têm a menor idéia do que lhes aconteceu. Por isto é que eu
sempre as vejo vagando em busca das outras pessoas que estavam no carro
com elas. Tenho então de explicar o que aconteceu e tentar de alguma
maneira imaginar onde podem estar as pessoas que elas estão procurando.
E isto é também um bocado doloroso, podes crer. Eu tenho de me abalar
até a delegacia onde foi registrado o acidente, fingir que estou fazendo um
trabalho para o colégio ou algo assim, co piar os nomes das vítimas e tentar
descobrir o que aconteceu com elas.
Posso garantir que às vezes parece que meu trabalho nunca chega ao fim.
Seja como for, Jesse ficou calado por um momento e eu achei que ele não
ia contar. Ele estava olhando bem para a frente, na direção da casa - a casa
onde tinha morrido, a casa onde haveria de ficar rondando até que... bem,
até que pudesse resolver o problema que o estava retendo neste mundo.
A lua ainda estava à vista, bem alto lá no céu, e eu podia ver o rosto do
Jesse como se fosse dia. Ele não estava parecendo muito diferente do
habitual. Sua boca, que era mais larga, de lábios finos, parecia estar meio
carrancuda, o que, até onde eu sabia, era o que costumava fazer;. E apor
baixo daquelas espessas sombrancelhas n egras, seus olhos, de cílios tão
densos, eram tão reveladores quanto um espelho - quer dizer, eu
provavelmente seria capaz de ver meu reflexo neles, mas não adivinharia
nada sobre o que ele estava pensando.
- Hmm... - disse eu. - Sabe o que mais? Esquece. Se não quiser, não
precisa me dizer...
- Não - ele respondeu. - Tudo bem.
- É só que eu estava meio curiosa, só isso. Mas se você achar que é uma
coisa muito pessoal...
- Não, não é. - Nós já havíamos chegado à casa. Ele empurrou a bicicleta
até o ponto onde ela devia ficar e a recostou no muro da garagem. Estava
mergulhado na sombra quando afinal disse: - Como você sabe, nem sempre
esta casa foi uma casa de família.
Como se fosse a primeira vez que o ouvia falar daquilo, exclamei:
- É mesmo?!
- Sim. Houve uma época em que era um hotel. Quer dizer, mais uma
estalagem propriamente do que um hotel.
Perguntei então, toda animada:
- E você estava hospedado aqui?
- Sim. - Ele saiu da sombra da garagem, mas em vez de olhar para mim
quando voltou a falar, estava com o olhar apertado voltado para o mar. Eu
tentei animá-lo:
- E... Aconteceu alguma coisa quando você estava aqui?
- Sim. - E ele olhou para mim. Ficou olhando por um longo momento.
Depois, disse: - Mas esta é uma longa história, e você deve estar muito
cansada. Vá se deitar. Amanhã de manhã decidiremos o que fazer sobre a
Heather.
Pode ser mais injusto?
- Espera um pouco - interrompi. - Não vou a lugar nenhum enquanto você
não acabar de contar essa história.
Ele balançou a cabeça:
- Não, já é muito tarde. Eu conto uma outra vez.
- Puxa vida! - Eu devia estar parecendo uma garotinha recebendo ordens da
mãe para ir-se deitar cedo, mas estava pouco ligando. Estava danada da
vida. - Você não pode começar uma história assim e não acabar de contá -
la. Você tem de...
Agora o Jesse estava rindo de mim.
- Vá se deitar, Suzannah - disse ele, empurrando-me suavemente para a
escada. - Você já foi suficientemente assustada esta noite.
- Mas você...
- Quem sabe outra vez... - insistiu ele. Já me conduziu na direção da
varanda e agora eu estava no primeiro degrau, voltando -me para vê-lo
rindo de mim.
- Você promete?
Seus dentes brilharam no luar.
-Prometo. Boa noite, hermosa.
- Já disse para não me chamar disso - resmunguei, subindo os
degraus com toda força.
Mas já eram quase três horas da manhã e o máximo que eu conseguia era
fingir indignação. É bom lembrar que eu ainda estava no horário de Nova
York, três horas na frente. Já era difícil levantar na hora para ir para a
escola quando eu conseguia dormir oito horas inteirinh as. Como é que
haveria de ser com apenas quatro horas de sono?
Entrei na casa o mais discretamente possível. Felizmente, todo mundo,
menos o cachorro, dormia profundamente. Ao me ver, ele levantou a
cabeça no sofá onde se havia espichado e começou a sacudi r o rabo.
Grande cão de guarda. E minha mãe, que não queria saber de vê -lo
dormindo no sofá branquinho... Mas eu é que não ia transformar o Max em
inimigo, enxotando-o dali. Se bastava deixar que ele continuasse dormindo
no sofá para impedir que avisasse à casa inteira que eu tinha saído, valia a
pena.
Fui me arrastando como podia escada acima, pensando o tempo todo no
que haveria de fazer com a Heather. Provavelmente teria de me levantar
cedo e telefonar para o colégio, avisando ao padre Dom que fosse ao
encontro do Bryce assim que ele pusesse os pés no campus e o mandasse
de volta para casa. E decidi que nem mesmo me haveria de opor se fosse
necessário recorrer aos piolhos. No fim das contas, a única coisa que
interessava era impedir que a Heather consegui sse o que queria.
Ainda assim, a simples idéia de ter de levantar cedo para fazer alguma
coisa - mesmo que fosse salvar a vida do cara com quem eu tinha um
encontro no sábado à noite - não parecia das mais atraentes. Agora que a
adrenalina toda já havia passado, eu me dava conta de que estava morta de
cansaço. Fiz mais um esforcinho e consegui chegar até o banheiro para
vestir o pijama - claro, pois embora tivesse certeza de que o Jesse não
estava me espionando, ele ainda não havia dito como tinha morrido, e
portanto eu não ia arriscar nada. Ele bem que podia ter sido enforcado por
voyerismo, uma pena que eu acreditava ter sido aplicada algumas vezes
uns cento e cinqüenta anos antes.
Foi só no momento em que decidi mudar a atadura no meu pulso que
prestei atenção no que ele havia usado.
Era um lenço. Antigamente todo mundo usava lenço de pano, pois não
havia lenços de papel. E as pessoas pareciam dar a maior importância,
costurando neles as suas iniciais, para que não se perdessem ao serem
lavados.
Só que o lenço do Jesse não tinha suas iniciais, conforme pude notar ao
lavá-lo e tentar tirar o meu sangue o melhor que pude. Era um grande
quadrado de linho, branco (com, já então meio cor -de-rosa) com um
debrum de delicada renda branca. Meio delicadinho para um c ara como
ele. Eu teria ficado meio cismada com a orientação sexual do Jesse se não
tivesse visto as iniciais que estavam bordadas num dos cantos. Os pontos
eram minúsculos, linha branca sobre tecido branco, mas as letras
propriamente eram enormes, numa cal igrafia floreada: MDS. Isso mesmo.
MDS. Nada de J.
Estranho. Muito estranho.
Pendurei o lenço para secar. Não precisava me preocupar com a
possibilidade de alguém vê-lo. Para começo de conversa, só usava o meu
banheiro, e além disso ninguém era mesmo capaz de ver o Jesse, portanto
ninguém poderia ver o seu lenço. Amanhã de manhã ele estaria lá
exatamente como agora. E talvez eu decidisse exigir explicações sobre
aquelas letras antes de devolvê-lo. MDS.
Só quando estava começando a adormecer é que me dei con ta de que MD
devia ser uma garota. Caso contrário, por que tanta rendinha? E aquelas
letras todas caprichadas? Será que o Jesse não tinha morrido num tiroteio,
como eu acreditava inicialmente, e sim em alguma briga de amantes?
Não sei por que, mas o fato é que esta idéia me deixou bem perturbada. Por
causa dela fiquei acordada bem uns três minutos. Até que virei para o outro
lado, senti falta da minha antiga cama por um instante.

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