quarta-feira, 6 de julho de 2011

Férias!! - MARIAN KEYES Cap.9


Vamos, vamos, tentei me animar. Olhemos para o lado positivo. Pense
nas banheiras de hidromassagem, nas massagens, nas sessões de
talassoterapia, nos banhos de lama, nos tratamentos exóticos à base de algas.
Tá bem, respondi, mal-humorada, aferrando-me à autopiedade.
Sem muito entusiasmo, retirei duas roupas da mala, apenas para
descobrir que o ínfimo guarda-roupa já estava abarrotado com as roupas de
Chaquie. Assim sendo, refiz a maquiagem, na esperança de encontrar algumas
celebridades no grupo de Josephine, e forcei-me a descer de novo.
Foi uma luta para sair do quarto. Sentia-me tímida, envergonhada e
desconfiada de que todos os outros estavam falando de mim. Quando cheguei ao
refeitório (arrastando-me rente à parede e chupando o dedo de um jeito infantil e
grotesco), mal pude enxergar seu interior, tão densa era a fumaça de cigarro.
Mas, pelo que pude ouvir, todos pareciam estar sentados, tomando chá, rindo e
conversando, e — o que era bastante óbvio — o assunto não era eu.
Esgueirei-me furtivamente. Era exatamente como ir a uma festa onde
não se conhece ninguém. Uma festa onde não há nada para se beber.
Para meu alívio, avistei Mike. Embora fosse o tipo de homem a quem lá
fora eu teria medo de dar as horas, por correr o risco de alguém pensar que eu
era sua namorada, por ora estava assustada demais para me importar. Foi com
a maior boa vontade que fiz vista grossa para suas calças da década de setenta e
o fato de parecer um touro com uma peruca de cachinhos, pois afinal ele me
protegera de Sadie, a do avental laranja.
— Onde fica o grupo de Josephine? — perguntei.
— Vem cá que eu te mostro como a coisa funciona. — Ele me conduziu
até um quadro de avisos e apontou uma programação.
Vistoriei-a por alto e me pareceu bastante cheia. Terapia de grupo de
manhã e de tarde, palestras, debates, filmes, encontros dos AA, encontros dos
NA, encontros dos JA...
— AA quer dizer Alcoólatras Anônimos? — perguntei a Mike, incrédula.
— Isso mesmo.
— E NA?
— Narcóticos Anônimos.
— Que diabo é isso? — perguntei.
— Como os AA, só que para toxicômanos — explicou ele.
— Sai prá lá — disse eu, achando a maior graça. — Está falando sério?
— Estou. — Ele me deu um olhar estranho. Por mais que me
esforçasse, não consegui decifrá-lo.
— E JA?
— Jogadores Anônimos.
— E CCA? — Eu a custo continha a vontade de rir. — Não, me deixa
adivinhar: Colecionadores de Carrinhos Anônimos — para gente que é capaz de
torrar o salário inteiro num Cadillac do tamanho de uma caixa de fósforos.
— É Comedores Compulsivos Anônimos — informou ele, parecendo não
achar a menor graça. Seu rosto feio parecia um bloco de granito.
— Sei. — Tentei refrear o riso, constrangida por ter debochado dos AA,
NA, JA e companhia limitada. Podia ser engraçado para mim, mas
provavelmente era uma questão de vida ou morte para aqueles pobres coitados.
— E aqui é onde cada atividade acontece. — Apontou outra coluna.
Esforcei-me por parecer interessada. — Está vendo? Hoje, sexta, às duas da
tarde, o grupo de Josephine vai se reunir no Aposento do Abade... — Tudo
acontecia em lugares com nomes lindos, tais como o Jardim-de-Inverno, o
Quarto Silencioso e o Tanque das Reflexões.
— Como então, esta é a nossa nova dama — interrompeu uma voz de
homem.
Voltei-me. Não precisava ter-me dado ao trabalho. Era um dos
baixotes rechonchudos de meia-idade que pululavam no estabelecimento.
Quantos suéteres de malha marrom cabem numa casa?
— Como vai indo? — ele perguntou.
— Muito bem — respondi, educada.
— Meu primeiro dia também foi horrível — disse ele, em tom afetuoso.
— Mas depois melhora.
— Melhora? — perguntei, patética. O inesperado de sua delicadeza me
deixou à beira das lágrimas.
— Melhora, sim — disse ele. — E depois piora de novo. — Soltou essa
como se fosse o desfecho de uma piada e atirou a cabeça para trás, rindo
escandalosamente. Passado algum tempo, acalmou-se um pouco e estendeu a
mão para me cumprimentar.
— O nome é Peter.
— Rachel. — Esforcei-me por retribuir seu sorriso. Embora preferisse
ter-lhe dado um soco.
— Não ligue para mim — disse ele, com os olhos brilhando. — É claro
que sou louco de pedra.
Logo descobri que Peter tinha um grande senso de humor e ria de
tudo, até das coisas terríveis. Principalmente das coisas terríveis. Muito em
breve eu estaria odiando Peter.
— Venha tomar uma xícara de chá antes de começar a terapia em
grupo — convidou.
Constrangida como se todos me olhassem, servi-me de uma xícara de
chá, a primeira de uma série de vários milhares (embora eu detestasse chá), e
sentei-me à mesa.
— Esse seu cabelo comprido é lindo — disse um homem que usava um
— não, não podia ser! Um paletó de pijama, sim, era um paletó de pijama. E um
cardigã mostarda. Seu cabelo era praticamente uma abstração, mas, apesar
disso, ele tinha alguns fios penteados que lhe atravessavam a careca de uma
orelha à outra. Pareciam colados no couro cabeludo com Super Bonder. Ele me
deu um sorriso forçado e aproximou-se um pouco.
— O preto é natural?
— Er, é, sim — respondi, tentando ocultar minha apreensão, quando
ele se pôs a alisar meus cabelos.
—Ha, ha, ha — fez Peter, o comediante, de um ponto distante da
mesa. — Natural ou não, garanto que não eram dessa cor quando você nasceu.
UA-ha-ha-ha!
Eu estava ocupada demais para me sentir ofendida por Peter, sentada
dura feito um pau, esperando que o alisador de cabelos se afastasse. Comprimia
as costas com toda a força contra o espaldar da cadeira, mas, como nem assim
ele parasse de fazer festinhas nele e acariciá-lo, comprimi-as ainda mais. Nesse
momento, Mike, que até então fumava um cigarro com o olhar taciturno perdido
em algum ponto do aposento, pareceu despertar, e gritou:
— Chega, Clarence, chega! Deixa a moça em paz!
Relutante, Clarence tirou as mãos de mim.
— Ele não faz por mal — explicou Mike, enquanto eu, pela décima
quinta vez naquele dia, tentava refrear as lágrimas. — Basta mandar ele à
merda.
— É claro que não faço por mal — exclamou Clarence, parecendo
magoado e surpreso. — Ela tem um cabelo lindo. Que mal há nisso?
— Que mal há nisso? — tornou a perguntar, com a cara a um palmo da
minha.
— Ne-nenhum — gaguejei, horrorizada.
— Em que grupo você está? — Foi a maneira que um outro interno
encontrou de mudar de assunto. Tinha a cara mais vermelha que eu já vira na
minha vida.
— O que é esse negócio de grupo? — perguntei, respirando aliviada
quando Clarence se afastou de mim.
— Já deu para você notar que fazemos um bocado de terapia de grupo
— comentou Mike. Todos riram de suas palavras, sei lá por que razão, mas sorri
também, para que não me julgassem uma tipinha metida a besta. — E estamos
divididos em grupos de seis ou sete. São três grupos, o de Josephine, o da
Chucrute Azedo e o de Barry Grant.
— Chucrute Azedo? — perguntei, perplexa.
— O nome verdadeiro dela é Heidi — disse o Rubicundo.
—Helga — corrigiu-o Peter.
—Helga, Heidi, tanto faz — disse o Cara Vermelha. — Enfim, nós a
odiamos. E ela é alemã.
— Por que vocês a odeiam?
A pergunta provocou um ataque de hilaridade.
— Porque ela é nossa terapeuta — explicou alguém. — Não se
preocupe, você também vai odiar a sua.
Não vou, não, tive vontade de dizer, mas não disse.
— E Barry Grant? — indaguei.
— Ela é de Liverpool.
— Sei. Bom, estou no grupo de Josephine. — Sentia-me decepcionada
por não ter ficado no grupo de nenhuma das que tinham nomes diferentes.
No ato irrompeu um coro de "Irmã Josephine, não!", "Ó Jesus", "Aquela
é carne de pescoço", "Ela é capaz de fazer um marmanjo chorar" e "Ela já fez um
marmanjo chorar".
O último comentário deu início a uma discussão entre — se eu não
estivesse confundindo os nomes, o que seria impossível, já que quase todos os
homens pareciam se fundir num só — Vincent e Clarence, o alisador de cabelos.
— Eu não estava chorando — protestava Clarence. — Estava resfriado.
— Estava chorando, sim — insistia Vincent, que parecia do tipo que dá
um boi para entrar numa briga.
Eu é que não vou criar caso com ninguém aqui, pensei. Cumpriria
minha pena e cairia fora. Vapt, vupt. Não faria amizade com ninguém. (A menos
que fossem ricos e famosos, é claro.) Não ofenderia ninguém.
A discussão foi interrompida pela voz de alguém, anunciando: "Lá vem
Misty."
Todos os homens se remexeram, agitados. Presumi que Misty fosse a
linda garota que atravessou o aposento em passo lânguido, a cabeça altiva.
Embora estivesse apenas de jeans e suéter verde, era de uma beleza estonteante.
No ato, me senti empetecada demais. Ela tinha cabelos ruivos e longos, tão
longos que poderia sentar em cima deles. Se tivesse vontade, é claro. Era
esquálida, de uma fragilidade de bibelô, e dominava com mestria a arte da
indiferença.
Sentou-se no extremo da mesa, o mais longe possível de nós, sem dar a
mínima para ninguém. Encarei-a até me sentir de tal modo dominada pela
inveja, que tive vontade de vomitar. Eu adoraria ter aquele jeito distante, mas
sempre estragava tudo. (Não se pode negar a contraproducência de ficar
perguntando "Que tal estou indo? Essa distância está boa ou preciso me afastar
mais um pouco?".)
A assembléia de homens ao meu redor parecia ter prendido o fôlego.
Em êxtase, observaram Misty pegar um jornal e começar a fazer as palavras
cruzadas.
— Aquela se acha — debochou Mike. — Só porque escreveu um livro
aos dezessete aninhos.
— Escreveu? — Eu estava totalmente fascinada, mas me esforçava ao
máximo para não demonstrar. Não era elegante demonstrar interesse e
assombro.
— Você na certa já ouviu falar de Misty, não ouviu? — perguntou Mike,
com um tom que me pareceu irônico, embora eu não pudesse ter certeza.
— A que era uma beberrona da pesada? — indagou. Meneei a cabeça
negativamente.
— E que parou no ano passado e escreveu o livro? Tornei a menear a
cabeça negativamente.
— Não? Bom, ela era. De repente, lá está ela toda vez que a gente liga a
tevê, contando como largou a bebida e se tornou escritora com apenas dezessete
anos.
A história de Misty começava a me soar familiar.
— E, quando menos se espera, ela está de volta à birita, e acaba aqui
outra vez para se "curar". — O sarcasmo de Mike agora era explícito. — Só que
agora, é claro, ela não tem mais dezessete anos.
Sim, na verdade eu tinha ouvido falar dela. Ora, se tinha! O jornal que
eu lera no vôo de Nova York, movida por um tédio histérico, trazia uma
reportagem enorme sobre sua dramática recaída, dando a entender que tudo não
passava de um golpe de publicidade. Certamente não era coincidência,
insinuavam, que o novo livro de Misty atulhasse as prateleiras e seu retrato
cobrisse as paredes de todas as lojas.
— Não entendo por que ela esperava receber tantos tapinhas nas
costas só por parar de beber — prosseguiu Mike. — É mais ou menos como
Yasser Garrafat ganhar o Prêmio Nobel da Paz. Sabe, se comportar como um
perfeito babaca, e então parar e esperar que todo mundo diga que você é o
máximo...
Misty deve ter percebido que falavam dela, pois subitamente ergueu os
olhos do jornal e nos encarou, com ar de nojo, antes de nos brindar com um
gesto indecente. Eu estava dividida entre a mais extrema admiração e uma
inveja imensa.
— Ela faz as palavras cruzadas do Irish Times todos os dias —
sussurrou Clarence. — As crípticas.
— E nunca come nada — disse Eamonn, o da cara de lua cheia, que
fazia par com a bunda.
— O nome dela é Misty 0'Malley? — perguntei, em voz baixa.
— Já ouviu falar nela? — perguntou Mike, parecendo quase assustado.
Fiz que sim com a cabeça.
Mike estava quase chorando. Mas tentou se animar, dizendo:
— Acho que ninguém entendeu patavina daquele livro que ela escreveu.
— Ganhou um prêmio, não foi? — perguntei.
— É justamente o que quero dizer.
— Dá uma pista para a gente, Misty — berrou Clarence.
— Vai à merda, Clarence, seu caipira gordo e velho — tornou ela,
perversa, sem levantar os olhos.
Clarence suspirou, com uma fisionomia de devoção sequiosa
estampada no rosto.
— Seria de esperar que uma escritora fosse capaz de se sair com uma
ofensa melhor do que "caipira gordo e velho" — disse Mike a ela, debochado.
Ela levantou o rosto e sorriu, meigamente. "Ah, Mike" — suspirou,
sacudindo a cabeça. A luz incidiu em seus cabelos ruivos, que na hora
transformaram-se em fios de ouro. Ela parecia linda, vulnerável, encantadora.
Eu a julgara mal, e era óbvio que Mike pensava o mesmo. Ele estava tão imóvel
que tive medo de me mexer, enquanto um olhar demorado e tenso se sustentou
entre os dois.
Mas, espera aí! Ela ia falar de novo!
— Quando é que você vai pedir para porem um calmante no seu chá,
Mike? Não consegue me deixar em paz, não é mesmo? — Deu um sorrisinho
ferino e Mike ficou amarelo. Sorrindo com ar superior, apanhou o jornal e saiu
lentamente do aposento. Todos os olhares se fixaram na cadência de seus
quadrizinhos, que se alteavam um após outro. Nenhum dos homens deu uma
palavra até ela desaparecer. Por fim, parecendo um pouco atordoados, voltaram
sua atenção para mim, não sem alguma relutância.
— Ela incendeia nossos corações — disse Clarence, num tom de
admiração um tanto irritante. — Graças a Deus, agora você está aqui, e
podemos ficar a fim de você. Não vai ser cruel com a gente, vai?
Putinha sebosa e antipática, pensei. Eu jamais me comportaria como
ela, nem em um milhão de anos. Seria tão legal, que todo mundo me adoraria.
Embora, é claro, não tivesse a menor intenção de me envolver com nenhuma
daquelas pessoas. Mas, mesmo contra a minha vontade, eu tinha a incômoda
consciência de que admirava Misty...
Nesse momento, alguém exclamou: "São cinco para as duas." Todos
disseram "Meu Deus!", apagaram os cigarros, arremataram seus chás e
puseram-se de pé, fazendo comentários bem-humorados do tipo "Lá vamos nós
ser humilhados", "Hoje é minha vez de ser arrastado por cima das brasas" e
"Preferia que me levassem para o pátio e me esfolassem vivo com um chicote de
nove tiras".
— Vamos — Mike me chamou.

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