"Pobres coitados", pensei, morta de pena, quando olhei para a
comprida mesa de madeira à qual almoçavam os alcoólatras e toxicômanos.
"Pobres, pobres coitados."
Agora, eu era uma interna oficial.
Fizera o exame de sangue e passara com louvor, minha calcinha não
fora revistada, minha bolsa sim, mas não encontraram nada de ilícito, e papai e
Helen haviam partido com um mínimo de manifestações de afeto e lágrimas
("Comporte-se, pelo amor de Deus. Estarei aqui no domingo da semana que
vem", disse papai. "Tchau, matusquela, faz uma cestinha de vime legal para
mim", disse Helen.)
Ao ver o carro de papai abandonando lentamente o terreno, felicitei-me
pela calma que sentia e pelo fato de não ter pensado em drogas nem uma única
vez. Toxicômana, que pilhéria!
O Dr. Billings interrompeu minha contemplação à janela para me
participar que os outros clientes, como os chamava, estavam almoçando. Por
pouco perdeu as caretas grotescas que Helen fazia para ele pela janela traseira,
enquanto o carro desaparecia.
— Venha almoçar — convidou. — Depois eu lhe mostro seu quarto.
Senti um frêmito de excitação à idéia de ver alguns artistas. Apesar de
Helen ter me convencido de que os ricos e famosos ficariam isolados dos
plebeus, a esperança dava saltos em meu estômago como um sapo.
E, é claro, os toxicômanos, alcoólatras, comedores compulsivos e
jogadores, enfim, todos os loucos que compunham o resto da clientela, também
mereciam uma olhada. Foi com o passo despreocupado que desci as escadas
atrás do Dr. Billings rumo ao refeitório, onde ele me apresentou aos outros.
— Senhoras e senhores, esta é Rachel, que hoje se juntará a nós.
Uma multidão de rostos se ergueu e me olhou, dizendo "Oi". Dei uma
rápida geral neles e, à primeira vista, não havia nenhum que fosse obviamente
um artista. Uma pena.
Nem qualquer um deles fazia muito o gênero Um Estranho no Ninho.
Uma pena maior ainda.
Depois de dar uma boa olhada no aposento, constatei, surpresa, que
era totalmente desprovido de sofisticação. Embora sempre fosse possível que o
decorador tivesse tentado transmitir uma mensagem irônica e pós-moderna com
as paredes amarelas, brilhantes, institucionais. E, é claro, o linóleo estava
novamente na moda. Embora os azulejos marrons empenados que revestiam o
chão parecessem estar lá desde a Idade Média.
Corri os olhos rapidamente pela mesa, à qual parecia haver uns vinte
"clientes". Destes, apenas uns cinco eram mulheres.
O velho gordo à minha direita enchia a boca de comida. Um comedor
compulsivo? O jovem gordo à minha esquerda se apresentou como Davy.
— Oi, Davy. — Sorri com dignidade. Não era preciso assumir uma
atitude hostil em relação a eles. Eu manteria a reserva o estrito necessário, mas
sempre seria simpática e educada, pensei. Afinal, tinha certeza de que suas
vidas já eram bastante infelizes. Não seria eu a acrescentar aflição a quem já
estava aflito.
— Por que você está aqui? — perguntou ele.
— Drogas — respondi, com um risinho do tipo "Dá para acreditar
nisso?".
— Mais alguma coisa? — perguntou Davy, esperançoso.
— Não — respondi, perplexa. Ele fez um ar decepcionado e abaixou os
olhos para o prato de comida. Montanhas de rabanetes, batatas e costeletas de
porco.
— E você, por que está aqui? — perguntei. Achei que seria no mínimo
educado da minha parte.
— Jogo — disse ele, deprimido.
— Bebida — disse o homem ao seu lado, embora eu não tivesse
perguntado.
— Bebida — disse o homem ao seu lado.
Por um momento, o prazer de ser confundida com uma anoréxica
sobrepujou minha ansiedade.
— Sadie gostaria de ser terapeuta, não gostaria, Sadie? — brincou o
homem. — Mas é burra demais, não é, Sadie?
— Fecha essa matraca, Mike. — Sadie parecia excepcionalmente bemhumorada
para uma mulher que acabara de ser insultada por (se não me
falhava a memória) um alcoólatra.
— Mas você não sabe ler nem escrever, sabe, Sadie? — tornou o
homem — Mike?
— Sei, sim. — Ela sorriu. (Sorriu! Eu teria lhe dado uma porrada.)
— A única coisa que ela sabe fazer é cozinhar, e nem isso sabe fazer
direito — disse Mike, gesticulando a esmo para os comensais e recebendo apoio
entusiástico de sua parte.
— Você é um cocô, Sadie! — berrou alguém do fundo do aposento.
—É, uma imprestável de merda — gritou um rapazinho que não
aparentava ter mais de quatorze anos, nem um dia. Como podia ser um
alcoólatra?
Sadie se ausentou, depois de nos garantir que "Vocês hoje vão ficar
chupando o dedo na hora do chá". Surpresa, constatei que estava com vontade
de chorar. Embora, para variar, os insultos amigáveis não tivessem sido
dirigidos a mim, quase me deixaram aos prantos.
— Fale com Billings depois do almoço — aconselhou Mike, que deve ter
percebido meu lábio trêmulo. — Enquanto isso, por que não come os rabanetes e
batatas e deixa as costeletas?
— Posso ficar com elas? — Um homem com cara de lua cheia passou a
cabeça por trás do velho gordo à minha direita.
— Pode ficar com o prato todo — disse eu. Não queria rabanetes e
batatas. Não comia esse tipo de coisa nem em casa, que dirá num lugar de luxo
como aquele. Embora soubesse que os restaurantes da moda haviam voltado a
servir salsichas, purê de batatas, molho acebolado, pudins feitos em banhomaria
e coisas do gênero, não havia força no mundo que me fizesse gostar delas.
Eu estava louca para comer frutas, mesmo que talvez não estivessem mais na
moda. Onde estava o bufê de saladas? Onde estavam as deliciosas refeições com
as calorias contadas? Onde estavam os sucos de frutas fresquinhas?
Empurrei meu prato para o gordo e isso causou o maior rebuliço.
— Rachel, não dê seu prato para ele.
— Não deixem que ela faça isso.
— Eamonn não tem permissão.
— Ele é um comedor compulsivo.
— Por favor, não dê comida ao elefante.
— Não faz parte da nossa política preparar refeições especiais para
ninguém — disse o Dr. Billings.
— Não? — Fiquei atônita.
— Não.
— Mas não são refeições especiais — protestei. — Sou vegetariana.
— Quase todas as pessoas que vêm para cá sofrem de desordens
alimentares, e é muito importante que aprendam a comer o que lhes for servido
— disse ele.
— Compreendo perfeitamente — tornei, simpática. — O senhor se
preocupa com os anoréxicos, bulímicos, comedores compulsivos etc. Eles podem
ficar chateados quando virem meu jantar especial.
— Não, Rachel — disse ele, firme. — Na realidade, é com você que eu
me preocupo.
Comigo? Se preocupava comigo? Por que cargas d'água?
— Por quê? — Esforcei-me por dar um tom educado à pergunta.
— Porque, embora sua dependência principal sejam as drogas, você
pode muito bem desenvolver relacionamentos doentios com outras substâncias,
como, por exemplo, a comida e o álcool. E corre o risco da dependência cruzada.
Mas eu não era viciada em drogas. Só que não podia dizer isso, ou ele
me mandaria embora. E o que era dependência cruzada?
— A dependência cruzada pode ocorrer quando você tenta cortar sua
dependência principal. Você pode controlar a dependência principal e se tornar
dependente de outra substância. Ou pode simplesmente acrescentar a segunda
dependência à primeira e ficar com as duas.
— Já entendi — disse eu. — Venho para cá para ser tratada da
dependência química e, quando saio, sou alcoólatra e bulímica. É como ir para a
prisão por não pagar uma multa e sair de lá sabendo assaltar um banco e fazer
uma bomba.
— Não exatamente — disse ele, com um sorrisinho enigmático.
— Nesse caso, o que vou comer?
— O que lhe servirem.
— O senhor até parece minha mãe falando.
— Pareço? — Ele sorriu com ar neutro.
— E eu também não comia o que ela me servia.
E isso porque minha mãe era a pior cozinheira do universo conhecido.
Toda aquela conversa sobre papel laminado e perus assados, quando ela tomara
conhecimento de minha suposta tentativa de suicídio, não passara de otimismo
da sua parte. Não importa quanto papel laminado usasse, seus perus sempre
acabavam estorricados.
O Dr. Billings limitou-se a dar de ombros.
— E qual vai ser a minha fonte de proteínas? — Eu estava surpresa
com o fato de ele não parecer preocupado.
— Ovos, queijo, leite. Você come peixe?
— Não — respondi. Embora comesse.
Eu estava chocada por ele parecer não se importar, mas o Dr. Billings
ignorou minha óbvia perplexidade.
— Você vai ficar bem. — Sorriu. — Venha conhecer Jackie.
Quem era Jackie?
— A moça com quem você vai dividir o quarto — ele acrescentou.
Dividir? Era um choque atrás do outro. Pelo preço que cobravam, eu
deveria ter um quarto particular, não? Antes que pudesse lhe fazer mais
perguntas, ele já abrira a porta do consultório e me levara até uma mulher loura
e sofisticada que, sem muito ânimo, passava o aspirador de pó na área da
recepção. Sapequei um sorriso no rosto do tipo "Sou um amor, você vai gostar de
mim". Só precisava esperar que ela fosse embora para dar queixa de sua
existência. Um amor de queixa, é claro.
Ela estendeu a mão lisa e bronzeada.
— Muito prazer, sou Jackie — sorriu.
Tinha por volta de quarenta e cinco anos, mas, a uma certa distância,
poderia ter-se passado por uma mulher pelo menos dez anos mais moça.
— Meu nome se escreve C-H-A-Q-U-I-E — acrescentou. —
Jackie é tão comum quando se escreve J-A-C-K-I-E, não acha?
Não soube o que dizer, de modo que tornei a sorrir,
— Sou Rachel — disse, educada.
— Oi, Rachel — disse ela. — É Rachel com um y e dois 11? Eu ia
dividir o quarto com essa louca?
E por que ela estava passando o aspirador de pó ali? Não era uma
interna? Eu tinha certeza de havê-la visto à mesa durante o almoço. Senti um
desânimo mortal. Eles não levavam a filosofia da Clínica Betty Ford a ferro e
fogo, levavam?
— Você deixou passar aquele cantinho perto da porta, Chaquie
— disse o Dr. Billings, antes de se encaminhar para as escadas.
O olhar que Chaquie cravou nas costas dele, quando já se afastava,
serviria para trinchar um frango.
— Não se esqueça de sua mala, Rachel — lembrou o Dr. Billings.
E lá se foi ele pelas escadas rumo aos quartos, me deixando sozinha,
às voltas com minha mala. Que pesava uma tonelada. Para o caso de haver um
monte de gente famosa no Claustro, eu tomara a precaução de trazer todas as
minhas roupas, além de algumas de Helen que cabiam em mim. Teria pego
emprestado tudo que Helen possuía, mas ela era mignon e esguia, ao passo que
eu media um metro e setenta e cinco, de modo que não fazia sentido levar outras
peças além das de tamanho único (único entre gnomos). A não ser pelo fato de
que teria sido um grande barato quando ela abrisse o guarda-roupa e
descobrisse que todos os seus trapinhos haviam desaparecido, é claro.
Enquanto eu me arrastava aos trancos e barrancos pelas escadas
cobertas por um linóleo, passando por paredes com a tinta descascada,
amaldiçoei minha falta de sorte por ter vindo para o Claustro justamente na
época em que estava sendo reformado.
— Quando a reforma vai acabar? — gritei de longe para Billings, na
esperança de que ele dissesse "Logo".
Mas ele apenas sorriu, sem me responder. Era mesmo um filho-da-mãe
maluco, pensei, num súbito acesso de raiva.
A cada passo que dava, ofegante e sem fôlego, sentia-me mais
deprimida. Tinha certeza de que, quando pintassem as paredes e instalassem o
novo carpete, o lugar ficaria com a aparência exata do hotel de luxo que eu tinha
esperado. Mas, enquanto isso, tinha a incômoda consciência de que mais se
parecia com um orfanato dickensiano.
Quando vi meu quarto, fiquei ainda mais decepcionada. Totalmente
perplexa, para dizer a verdade. Precisava ser tão pequeno assim? Mal cabiam as
duas minúsculas camas de solteiro que haviam enfiado ali dentro a calçadeira.
Fora o tamanho, ou falta dele, a semelhança com uma cela monacal acabava aí.
A menos, é claro, que os monges usassem colchas de náilon cor-de-rosa, do tipo
que eu me lembrava da minha infância na década de setenta. Não exatamente a
colcha branca e recém-passada de linho irlandês que eu esperava.
Quando passei pela cama, ouvi um vago ruído de estática que arrepiou
os pêlos de minhas pernas.
Uma cômoda branca, mal se agüentando sobre as pernas, estava
lotada com vidros de produtos para a pele da Clinique, Clarins, Lancôme e Estée
Lauder. Deviam ser de Chaquie. Não havia espaço para meus dois patéticos
potes de creme Pond's.
— Fique à vontade — disse o Dr. Billings. — A sessão de terapia em
grupo começa às duas, e você está no de Josephine. Não se atrase.
Terapia de grupo? No de Josephine? O que aconteceria se eu me
atrasasse? Qual era a minha cama? Onde eu iria arranjar cabides?
— Mas o que...?
— Pergunte a algum dos outros — disse ele. — Terão muito prazer em
ajudar.
E foi embora!
Filho-da-mãe atrevido, pensei, furiosa. Vagabundo preguiçoso,
imprestável. Não quis providenciar refeições vegetarianas para mim. Não quis
carregar minha mala. Não me ajudou a me instalar. Eu podia ter ficado muito
irritada, sabe? Perguntar a algum dos outros, essa é boa. Eu iria é escrever uma
carta para os jornais quando saísse, dando nome ao boi. Filho-da-mãe
preguiçoso. E, provavelmente, pagavam-lhe uma fortuna, com o meu dinheiro.
Passei os olhos pelo quartinho. Que pocilga. Infeliz, atirei-me na cama
e o vidro de Valium esquecido quase me estripou. Quando a * dor diminuiu um
pouco, retirei-o e decidi escondê-lo na gaveta da mesa-de-cabeceira. Mas,
quando tentei me levantar, a colcha de náilon cor-de-rosa veio junto comigo.
Toda vez que eu me livrava de um pedaço, ela escorria de volta e se grudava em
mim de novo.
Eu estava frustrada, decepcionada e puta da vida.
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