quarta-feira, 6 de julho de 2011

Férias!! - MARIAN KEYES Cap.10


Mike me agarrou pelo pulso e desabalou comigo numa corrida pelo
corredor em direção a uma sala.
— É este o Aposento do Abade? — perguntei, inconvicta, dando uma
olhada na sala varada por correntes de ar, onde não havia nada além de um
círculo de poltronas gastas.
— É. — Mike parecia estar em pânico. — Senta ali. Depressa. Rachel,
depressa!
Sentei-me, e Mike também.
— Presta atenção — disse ele, em tom urgente. — Vou te dar um aviso.
Provavelmente é a coisa mais importante que você vai aprender durante sua
estada aqui.
Cheguei mais perto dele, nervosa e excitada.
— Nunca! — ele declarou, e em seguida tomou fôlego. — Nunca!
Tornou a tomar fôlego. Cheguei ainda mais perto dele.
— Nunca — apontou — sente naquela poltrona, naquela, naquela ou
naquela. Cada reunião dura pelo menos duas horas, e sua bunda vai ficar em
petição de miséria se você tiver a falta de sorte de sentar em qualquer uma
delas. Agora, olha bem, vou apontar elas de novo para você...
Enquanto o fazia, a porta se abriu e um bando de internos entrou
correndo, logo se pondo a reclamar em altos brados sobre o fato de todos os
bons assentos já estarem ocupados. Na mesma hora me senti culpada, pois
todos tinham problemas terríveis e deveriam no mínimo ter direito a assentos
confortáveis durante seu tratamento.
Eram seis internos, dos quais a maior parte reconheci do refeitório.
Infelizmente, o rapaz bonito que estava internado por causa de drogas não se
encontrava entre eles. Os que estavam eram Misty, a escritora, Clarence,
Chaquie, minha companheira de quarto, e Vincent, o Feroz. Senti um friozinho
no estômago quando avistei Vincent, porque, sem nenhum exagero, ele era a
agressividade em pessoa. Eu tinha medo de que resolvesse cismar com a minha
cara, incapaz de compreender que eu não era um deles. O sexto interno era um
velho que eu não me lembrava de ter visto no refeitório, mas que, ainda assim,
estava convicta de não pertencer à ala dos artistas. Ou os artistas tinham seu
próprio grupo, o que parecia mais provável, ou estavam no de Barry Grant ou no
da Chucrute Azedo.
— E bom contar com outra mulher — disse Chaquie. —
Equilibra as coisas.
Compreendi que se referia a mim. Sim, de fato equilibrava as coisas em
teoria, mas, como eu não iria participar, no rol das contas não equilibrava coisa
alguma.
Josephine chegou. Analisei-a com grande interesse, sem conseguir
entender o que lhes inspirava tanto medo, já que ela era inofensiva. Era uma
freira, mas do tipo moderninho. Ou, pelo menos, assim lhe parecia. Não vejo
absolutamente nada de moderninho em usar uma saia de flanela cinza abaixo
dos joelhos e um cabelo grisalho e curto, sem corte definido, com um prendedor
marrom do lado. Mas ela parecia ser uma boa pessoa; um amor, na verdade.
Com seus olhos azuis redondos e brilhantes, era a cara de Mickey Rooney.
Assim que ela sentou, todos se puseram a encarar os próprios pés, em
silêncio. Todos os vestígios dos risos e conversas do almoço haviam
desaparecido. O silêncio se prolongava interminavelmente. Eu percorria os
rostos, um por um. Por que esta ansiedade toda, pessoal?
Por fim, ela disse:
— Nossa, que silêncio mais constrangido. O.k., John Joe, não gostaria
de ler para nós a história da sua vida?
Houve um suspiro coletivo de alívio.
John Joe era o tal velho. Para dizer a verdade, era matusalênico, com
sobrancelhas imensas e um terno preto retinto de velhice. Tempos depois, fiquei
sabendo que esse era o mesmo terno que ele envergava nas ocasiões especiais —
casamentos, enterros, leilões de novilhos inusitadamente lucrativos e centros de
reabilitação onde era encarcerado pelo sobrinho.
— Bom, certo, vou ler — disse ele.
Quando será que começariam os gritos e acusações? Eu pensava que
uma sessão de terapia em grupo fosse muito mais dinâmica e virulenta do que
isso.
A história da vida de John Joe durou mais ou menos cinco segundos.
Fora criado numa fazenda, onde ainda hoje vivia com o irmão. Essa
autobiografia, escrita no que parecia ser uma folha arrancada a um caderno de
criança, foi lida em voz baixa e lenta. Não foi lá muito interessante.
— É isso aí — concluiu ele, dando um sorriso tímido e voltando a fitar
suas pesadas botas pretas.
Seguiu-se outro silêncio. Por fim, Mike disse:
— Bom, você não entrou em muitos detalhes.
John Joe o espiou por baixo de suas sobrancelhas, esboçou um dar de
ombros e tornou a sorrir, manso.
— É isso mesmo — concordou Chaquie. — Você nem mencionou a
bebida.
John Joe tornou a dar de ombros e sorrir. Mais olhares esquivos por
baixo das sobrancelhas. Era do tipo de homem que se esconde atrás de uma
moita quando passa um carro na estrada. Um bicho do mato. Um homem da
terra. Um tabaréu de tamanco.
— Er... você não gostaria de se estender um pouco mais? — sugeriu
Clarence, nervoso.
Josephine finalmente se manifestou. Seu tom de voz era muito mais
assustador do que se poderia adivinhar por sua figura inofensiva.
— Como então, esta é a história da sua vida, não é, John Joe?
O Próprio fez que sim com a cabeça.
— E nem uma palavra sobre as duas garrafas de conhaque que bebeu
todos os dias durante os últimos dez anos? Nem uma palavra sobre o gado que
vendeu escondido do seu irmão? Nem uma palavra sobre a segunda hipoteca
que fez das suas terras?
Será possível?, me perguntei, empolgada. Quem teria adivinhado? Um
velhote inofensivo daqueles!
John Joe não reagiu. Manteve-se imóvel como uma estátua, o que me
levou a presumir que devia ser verdade. Porque, se não fosse, teria se posto de
pé, defendendo-se com veemência, não é mesmo?
— E quanto a vocês? — Ela correu os olhos pela sala. — Será que
ninguém tinha mais nada a dizer além de — aqui, fez uma vozinha cantada e
infantil — "Está um pouco curto, John Joe?"
Seu olhar terrível fez com que todos se encolhessem de medo. Até eu,
por um momento.
— Está certo, John Joe, vamos tentar de novo. Conte ao grupo sobre
seu vício. Vamos começar com a razão pela qual você sentia vontade de beber.
John Joe permaneceu impassível. Eu estaria fumegando. Para dizer a
verdade, já estava fumegando. Afinal, o coitado fizera o melhor que pudera.
Cheguei a pensar em mandar Josephine deixá-lo em paz, mas achei melhor
esperar mais um dia ou dois antes de começar a dar as cartas no Claustro.
— Bom — John Joe deu de ombros —, você sabe como são as coisas.
— Não, John Joe, para ser franca, não sei, não — tornou Josephine,
tranqüila. — Não se esqueça de que não sou eu que estou num centro de
reabilitação por alcoolismo crônico.
Deus do Céu, ela era uma peste!
— Er, bem, você sabe — disse John Joe, buscando sua conivência. —
De noite, a gente se sente sozinho e bebe alguma coisa...
— Quem? — ela perguntou bruscamente.
John Joe limitou-se a dar outro de seus sorrisos bondosos.
— Quem bebia alguma coisa? — insistiu Josephine.
— Eu — disse John Joe. Parecia ter dificuldade em falar. Pelo jeito, até
agora não houvera muita necessidade de palavras em sua vida.
— Não estou ouvindo, John Joe — disse Josephine. — Fale mais alto.
Diga quem é que bebia alguma coisa.
— Eu.
— Mais alto.
— Eu.
— Mais alto.
— EU.
Transtornado, John Joe tremia do esforço de abusar das cordas vocais.
— Assuma seus atos — disse Josephine, ríspida. — Você é o autor
deles, então diga que é.
Mas vejam só como ela tenta fazer com que eles se descontrolem,
pensei, interessada. Que crueldade. Era obrigada a admitir que subestimara
Josephine. Ela estava muito mais para Dennis Hopper do que para Mickey
Rooney.
Mas comigo é que não ia levar a melhor. Eu não reagiria a nada que ela
dissesse, ficaria na minha. De mais a mais, ela não tinha do que me acusar. Eu
não bebia duas garrafas de conhaque por dia e nunca vendera gado escondido
do meu irmão.
Josephine pressionou John Joe, implacável, disparando perguntas
sobre sua infância, seu relacionamento com a mãe, enfim, a estratégia de praxe.
Mas tentar arrancar alguma informação dele foi como tirar suco de pedra. Entre
um dar de ombros e um monossílabo afirmativo, não restou quase nada de
concreto.
— Por que você nunca se casou, John Joe? — perguntou ela.
— Acho que foi porque as coisas nunca chegaram a esse ponto
— disse ele.
— Você já teve alguma namorada, John Joe?
— Ara, devo de ter tido, uma ou duas — admitiu ele.
— E algum desses relacionamentos foi sério?
— É... Foi e não foi. —John Joe deu de ombros. (De novo!) Ele agora
estava começando a me irritar. Será que não podia dizer de uma vez a Josephine
por que nunca se casara? Tinha que haver uma boa e econômica explicação
irlandesa para o fato. Talvez a fazenda não fosse viável se ele a dividisse com o
irmão, ou tivesse que esperar a mãe morrer para se casar com a namorada
porque não podia botar duas ruivas debaixo de um mesmo teto (de sapé). (Este
último parece ser um problema comum na Irlanda rural, que sempre se repete
no folclore agrário. Uma vez eu passara o verão em Galway, sabia como eram
essas coisas.)
Josephine ia torcendo mais e mais o pepino, suas perguntas tornandose
cada vez mais atrevidas.
— Você já se apaixonou? E por fim:
— Já perdeu a virgindade?
O grupo inteiro prendeu o fôlego. Como ela podia perguntar uma coisa
dessas?
Será que havia alguma hipótese de ele ainda ser virgem?
Um homem da sua idade?
Mas John Joe continuou fechado em copas, olhando fixamente para
suas botas.
— Deixe-me colocar a questão de outro modo — disse Josephine. —
Você já perdeu sua virgindade com uma mulher?
O que ela estava insinuando? Que John Joe perdera sua virgindade
com uma ovelha?
John Joe permaneceu imóvel como se fosse de pedra.
E nós também. Eu prendia o fôlego.
Meu suspense voyeurístico quase era subjugado pela sensação de estar
invadindo sua privacidade. O silêncio se prolongou infinitamente. Por fim,
Josephine disse:
— O.k., a hora acabou.
A decepção foi enorme. É horrível ser mantido em suspense. Era como
uma novela, só que pior, por ser real.
Saímos da sala em fila indiana. Minha cabeça estava a mil. Apertei o
passo para alcançar Mike.
— Que foi isso?
— Só Deus sabe.
— Quando é que vamos descobrir?
— Temos sessão novamente na segunda.
— Ah, não! Não vou agüentar esperar até lá.
— Olha aqui. — Ele parecia irritado. — Pode não ter sido nada, só um
ardil. Josephine faz todos os tipos de pergunta na esperança de que alguma
delas ponha o dedo na ferida. Ela atira em todas as direções.
Mas eu não ia cair nessa. Estava habituada aos desfechos das novelas.
— Ora, por favor... — comecei, em tom cético, mas estava falando com
as paredes. Irritada, vi que Mike fora ao encontro de John Joe, que parecia
chocado e abalado.

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