quarta-feira, 6 de julho de 2011

Férias!! - MARIAN KEYES Cap.72

CAPÍTULO 72
Com as mãos trêmulas, abri a carta. Estava endereçada a mim, aos
cuidados do Albergue Feminino Annandale's, Rua 15 West, Nova York.
Era de Luke.
Eu não tinha a menor intenção de voltar a Nova York. Jamais.
Mas, quando completei um ano e três meses de abstinência, Nola, de
repente, sugeriu que eu fosse.
— Ah, vai, sim — incentivou-me, como se isso não fosse nenhum
problema para mim. — Claro, por que não?
— Não — disse eu.
— Vai, sim — insistiu ela, ansiosa. Em seguida, ficou o mais antipática
que pôde. O que não era muito.
— Se você não for — observou —, vai se sentir horrivelmente mal toda
vez que pensar nisso. Ah, vai lá! Volte aos lugares aonde costumava ir, repare o
mal que fez às pessoas que magoou. — Nola sempre dizia coisas simpáticas,
como "As pessoas que você magoou", quando deveria dizer "As pessoas cujas
vidas você quase destruiu".
— Como Luke — disse eu, chocada ao constatar o quanto me sentia
excitada à idéia de reencontrá-lo.
— Principalmente Luke — Nola sorriu, logo acrescentando: — Aquele
amor de pessoa.
Não conseguia parar de pensar em Nova York. Estava obcecada por
aquele lugar, e parecia não ter escolha, a não ser ir para lá.
E, tão logo percebi que minha ida poderia se tornar realidade, as
comportas da Represa Costello se abriram. Horrorizada, compreendi uma coisa
de que já desconfiava há algum tempo. Que ainda era louca por ele. Mas sentia
pavor da hipótese de que ele tivesse ódio de mim, me esquecido ou se casado
com outra mulher.
— Não importa — disse Nola. — De uma maneira ou de outra, só o fato
de se aproximar dele já vai surtir um efeito terapêutico sobre você. Aquele amor
de pessoa — acrescentou, com um sorriso carinhoso.
Meus pais ficaram de cabelo em pé.
— Não estou indo para sempre — expliquei. —Vou ter que voltar em
outubro, para começar a faculdade.
(As autoridades competentes haviam decidido que eu podia cursar
psicologia, a título de experiência. Dancei muitas gigas felizes, no dia em que
recebi a notícia.)
— Vai ficar com Brigit? — perguntou mamãe, ansiosa.
— Não.
— Mas você fez as pazes com ela — insistiu.
— Eu sei. Mas não seria apropriado.
Eu tinha absoluta certeza de que Brigit me deixaria dormir no sofá,
mas eu acharia difícil ficar naquele apartamento como hóspede a curto prazo.
Além disso, embora sentisse muito carinho por ela, achei que, de alguma forma,
seria mais saudável manter minha independência em relação a ela quando
voltasse para Nova York.
— Mas você vai procurá-la enquanto estiver lá? — Mamãe ainda tinha
um ar preocupado.
— Claro que vou — disse eu, para tranqüilizá-la. — Estou ansiosa para
ver Brigit.
A partir daí, as coisas aconteceram muito depressa. Fiz um
empréstimo enorme, troquei todo o dinheiro por dólares, reservei minha
passagem e um quarto num albergue feminino, pois não tinha dinheiro para
alugar um apartamento, e fiz as malas.
No aeroporto, Nola me deu um pedaço de papel com um endereço.
— É de uma amiga minha em Nova York. Liga para ela, que ela vai
cuidar de você.
— Ela não é toxicômana, é? — indaguei, revirando os olhos com
exagero. — Você só faz me apresentar a toxicômanos. Será que não tem
nenhuma amiga decente?
— Dá um beijão em Luke por mim — disse ela. — Até outubro.
Nova York em julho faz com que a gente se sinta sufocada por um
cobertor quente e úmido.
Foi demais para mim. Os cheiros, os sons, a zoeira das ruas, as
multidões, o desassombro otimista das pessoas, os gigantescos edifícios
erguendo-se imponentes na Quinta Avenida, emparedando o calor úmido de
julho, os táxis amarelos colados uns nos outros nos engarrafamentos, o ar
crivado de buzinadas e desaforos os mais criativos.
Não agüentei a intensidade da energia daquele lugar. Nem o número de
malucos, que sentavam ao meu lado no metrô ou me abordavam na rua.
Era tudo excessivo demais. Passei os três primeiros dias escondida no
meu quarto no albergue, dormindo e lendo revistas, com as persianas fechadas.
Não devia ter vindo, pensava, infeliz. Só servira para reabrir antigas
feridas. Sentia saudades de Nola e de minhas outras amigas, sentia saudades da
minha família.
Jeanie telefonou de Dublin, e fiquei emocionada, até ela me dar um
esporro.
— Já foi a alguma reunião?
— Hum, não.
— Já ligou para a amiga de Nola?
— Não.
— Já procurou emprego?
— Ainda não.
— Bom, então mexe a bunda. Agora.
Assim, fui obrigada a abandonar a segurança de meu quarto e sair,
vagando sem destino pelas ruas mormacentas.
Sem destino, ma non troppo. Para ser franca, sem destino, uma ova.
Era mais propriamente o que se poderia chamar de uma retrospectiva
de minha vida em Nova York. Uma homenagem.
Cá estava a loja onde eu tinha comprado as mules verde-limão que
usara na primeira noite em que transara com Luke, lá estava o edifício onde
Brigit trabalhava, seguindo por aquele caminho a gente ia dar no Old
Shillayleagh, seguindo pelo lado oposto ia parar na garagem asquerosa onde
Brigit, Luke e eu fôramos ver a irmã de José, naquela "instalação" de merda.
Eu trocava as pernas para tudo quanto é canto, cambaleando sob o
peso das lembranças. Uma nostalgia brutal me avassalava a cada passo.
Passei pelo lugar onde ficava o Llama Lounge, e que agora era um
cibercafé. Passei pela calçada do Bom e Caro, e quase me ajoelhei de sofrimento,
pelo que poderia ter sido e não fora.
Caminhei sem parar, em círculos cada vez mais estreitos e torturantes,
até finalmente conseguir entrar na rua onde Luke morava. Um pouco nauseada,
devido ao meu estado de nervos — ou talvez fosse apenas o calor —, postei-me
diante do edifício onde ele um dia tinha morado, talvez até ainda morasse.
Pensei na primeira vez em que estivera lá, na noite do agito no Rickshaw Rooms.
Logo pensei na última vez em que estivera lá, no domingo anterior à minha
overdose. Por então, não sabia que era minha última vez; se soubesse, talvez
tivesse tratado a ocasião com um pouco mais de seriedade. Se tivesse feito isso,
talvez tivesse tomado as providências necessárias para garantir que não fosse
minha última vez.
Parada no calor infernal da rua, desejava, em vão, ser capaz de mudar
as coisas. Desejava voltar no tempo e traçar um passado diferente. Desejava
ainda estar vivendo em Nova York, não ter me tornado uma toxicômana, ainda
ser namorada de Luke.
Demorei-me por algum tempo, dividida entre a esperança de que Luke
aparecesse e a de que não aparecesse. Por fim, compreendi que, se alguém me
visse, iria pensar que eu era uma assaltante, de modo que tratei de ir embora.
No fim da rua, me detive. Fui obrigada a me deter. As lágrimas
embaçavam de tal modo a minha visão, que eu me tornara um perigo para mim
mesma e os outros. Encostei-me numa parede e chorei, chorei tudo a que tinha
direito. Lamentando o passado, lamentando a outra vida que poderia ter tido, se
as coisas houvessem sido diferentes.
Eu poderia ainda estar lá, naquele berreiro operístico, se uma mulher
falando espanhol não tivesse saído, me convidando a cair fora com gestos
vigorosos de sua vassoura, para que eu não baixasse o nível do seu bairro.
Torci para que meu curto passeio tivesse enterrado quaisquer
sentimentos remanescentes que eu ainda nutrisse por Luke. E era bom que
tivesse, mesmo, porque eu não conseguia criar coragem para me aproximar dele
realmente.
Concentrei-me em construir uma infra-estrutura de vida básica. A
primeira coisa que fiz foi arranjar um emprego. Era muito fácil arranjar emprego
em Nova York.
Isso é, se a pessoa não fizesse objeções a ganhar um salário de fome.
Era num hotel pequeno, italiano, de propriedade de uma família. Muito
simpático, salvo pela miséria do ordenado. Olhando para trás, eu não conseguia
imaginar como um dia me permitira trabalhar num lugar como o Motel
Barbados.
Em seguida, telefonei para Brigit, nervosa mas entusiasmada à idéia de
vê-la. Mas — ironia das ironias! — ela tinha ido passar as férias de verão em
casa, na Irlanda.
Durante as duas semanas seguintes, as coisas caíram numa espécie de
rotina. Uma rotina muito chata. Eu trabalhava, freqüentava as reuniões e só.
Quase todas as garotas no albergue eram peonas saudáveis, de algum
daqueles estados sulistas que são as capitais mundiais do incesto. Atendiam
pelos imponentes nomes de Jimmy-Jean, Bobby-Jane e Billy-Jill. Eu estava
doida para fazer amizade com elas, mas pareciam um pouco arredias e
desconfiadas diante de todo mundo, menos delas mesmas.
As únicas a me tratarem com simpatia foram Wanda, uma texana de
dois metros e setenta e cinco, cabelos oxigenados e chiclete na boca, que estava
tendo um trabalhão para se adaptar à vida fora de um trailer. E também uma
mulher musculosa, com um buço que chegava às raias de bigode, e que atendia
pelo nome de Brad. Era muito simpática comigo, mas, para ser franca, eu
suspeitava dos seus motivos.
Foi uma época estranha. Eu me sentia sozinha, alheia, isolada. O que
não me desagradava de todo.
Salvo pelo fato de que os sentimentos despertados por minha volta a
Nova York ainda eram insuportáveis. Às vezes, a nostalgia quase me matava.
E o pavor, também. Eu me lembrava das vezes em que fora para casa
em companhia de completos desconhecidos, e sentia um medo pânico por mim
mesma. Quantas vezes não correra o risco de ser estuprada ou assassinada?
Lembrava-me de como tinha a sensação de que a cidade inteira era maligna.
Minha volta desencadeou toda uma nova dimensão de lembranças. A nostalgia
em relação a Luke, principalmente, não dava sinais de ceder; pelo contrário,
piorava. Comecei a sonhar com ele. Pesadelos passados dois anos antes, nos
quais minha vida não se descarrilhava de maneira apocalíptica, e ele ainda me
amava. É claro que o terrível não eram os pesadelos. Era o despertar.
Eu sabia que tinha que me encontrar com ele. Ou, pelo menos, tentar.
Mas não queria, porque provavelmente ele estava namorando outra pessoa e eu
não achava que agüentaria isso. Tentava me consolar pensando que talvez ele
não tivesse uma namorada. Mas por que não haveria de ter?, me perguntava.
Até eu tivera uma experiência sexual, embora incompleta, com outra pessoa, e
isso numa época em que deveria estar praticando a abstinência.
Os dias se passaram numa espécie de fuga onírica. Eu tinha uma
obrigação desagradável pendendo sobre a minha cabeça e, sendo como sou,
preferi fingir que não era comigo.
É difícil mudar os velhos hábitos.
Tentei usar a desculpa de que não tinha o número do telefone dele.
Mas tinha, infelizmente. Ou, por outra, ainda o sabia de cor. O de casa e o do
trabalho. Sempre na suposição de que ele ainda trabalhava e morava nos
mesmos lugares que um ano e meio atrás. Mas isso não era certo, sendo o vai-evem
em Nova York intenso como era.
Uma noite, quando eu já tinha voltado há cinco semanas e estava
deitada na cama, lendo, de repente criei coragem para telefonar para Luke. Sem
aviso. Parecia uma coisa perfeitamente viável, e eu já não conseguia entender
por que fizera tanto estardalhaço por causa disso. Rapidamente, antes que o
rompante passasse ou eu me dissuadisse da idéia, corri de bolsa em punho para
os telefones no corredor do albergue, quase derrubando as pessoas na minha
pressa.
Era um pouco constrangedor telefonar dali, ainda mais com Bobby-
Ann e Pauley-Sue fazendo fila atrás de mim para conversar com seus
carneirinhos de estimação em casa. Mas não me importei. Destemida, digitei o
número de Luke e, quando o telefone começou a tocar, senti uma súbita
vertigem de pânico, pensando no que diria a ele. Devia dizer "Luke, prepare-se
para ter um choque"? Ou "Luke, adivinhe quem está falando"? Ou "Luke, você
talvez não se lembre de mim..."? Ou — a hipótese mais provável — "Luke, por
favor não deslig..."?
Eu estava tão elétrica, que mal acreditei quando caiu na secretária.
("Living on a Prayer", de Jon Bon Jovi.) Eu tivera todo aquele trabalho para, no
final, ele nem mesmo estar em casa.
Amargurada de decepção, mas inegavelmente aliviada, desliguei.
Pelo menos, agora sabia que ele estava morando no mesmo endereço.
Ainda assim, todo aquele suplício de telefonar tinha me esgotado horrores, de
modo que decidi que, em vez disso, seria melhor para os meus nervos escrever
uma carta para ele. O que também implicava menores probabilidades de eu levar
uma telefonada na cara.
Fiz cento e setenta e oito esboços, até chegar à carta que mesclava as
doses certas de humildade, cordialidade e antiaderência. Na maioria das que
acabaram na lata de lixo, o tom preponderante foi o de autodegradação aguda
("Não sou digna de beijar a sola do seu sapato"). Mas, quando moderei as tintas,
comecei a me perguntar se o resultado não teria ficado frio demais, dando a
entender que o meu arrependimento não era total. Razão pela qual essas
tentativas foram amassadas e atiradas na parede.
E quanto ao fecho — "Um abraço"? Ou "Um forte abraço"? Ou "Grata
pela atenção"? Ou "Tudo de bom"? Ou "Toda a felicidade do mundo"? Ou "Com
carinho"? Ou "Com todo o meu carinho"? Ou "Será que uma trepada está fora de
cogitação"? Qual delas dava o recado certo? A essa altura, eu já estava tão
confusa, que nem tinha mais certeza de qual era a porcaria do recado.
Caro Luke, escrevi na carta que por fim pus no correio. Talvez você
fique surpreso por receber notícias minhas. Estou passando uma curta
temporada em Nova York e ficaria grata se você pudesse reservar um tempo para
se encontrar comigo. Tenho plena consciência do quanto o tratei mal quando
estávamos namorando, e agradeceria se você me desse uma oportunidade de me
desculpar pessoalmente. A resposta deve ser enviada para o endereço acima. Se
não quiser mais ter nenhum contato comigo, vou compreender totalmente. Um
abraço, Rachel (Walsh).
Achei que estava contrita sem ser ridícula, simpática sem ser
predatória. Fiquei muito orgulhosa dela, até o momento em que a enfiei na caixa
do correio, quando subitamente me dei conta de que era a carta mais mal escrita
de todos os tempos. Foi um custo me obrigar a ir embora, em vez de ficar ali
para interceptá-la quando o carteiro chegasse para esvaziar a caixa.
Torcia desesperadamente para que ele respondesse. Ao mesmo tempo,
tentava me preparar para a possibilidade de que talvez não o fizesse. Havia uma
grande chance de eu não ser a figura importante na sua vida que ele era na
minha. Provavelmente, mal se lembrava de mim,
A menos que se lembrasse bem até demais, e tivesse um ódio mortal de
mim, é claro. Em qual caso, eu também não receberia notícias suas.
Durante quatro dias seguidos fiz ponto no balcão da portaria na hora
da entrega da correspondência, e durante quatro dias seguidos fui mandada
embora de mãos abanando.
Mas, no quinto dia, quando cheguei em casa do trabalho, encontrei
uma carta enfiada por baixo da minha porta. Sem selo. Entregue em mãos,
Luke tinha respondido.
Segurei o envelope com a mão suada, encarando-o. Estava apavorada
de olhar dentro dele. Pelo menos ele se dera ao trabalho de escrever, me
consolei.
A menos que fosse uma página ocupada unicamente por duas
palavras: "Vai" e "pastar".
Subitamente, pus-me a estraçalhá-lo, frenética, como um tigre
estraçalhando antílopes mortos. Eu ataquei o envelope. Ato contínuo, com o
coração martelando no peito, procurei a carta em seu interior.
Era curta e precisa. Brusca, mesmo. Sim, dizia ele, gostaria de se
encontrar comigo. Que tal aquela noite, às oito horas, no Café Nero? Se houvesse
algum inconveniente, que eu deixasse um recado na sua secretária-eletrônica.
Não gostei do seu tom. Me pareceu antipático, não exatamente no
espírito de perdão de quem estende um ramo de oliveira. Suspeitei que a câmera
não iria fechar em fade-out sobre esse encontro, com Luke e eu de mãos dadas,
balançando o corpo e cantando "War is Over", "Ebony and Ivory" ou qualquer
outra baba melosa desse tipo, sobre o fim de um conflito.
Minha decepção foi terrível. Cheguei mesmo a achar que tinha sido um
pouco atrevido da parte dele, até me lembrar que eu me portara de uma maneira
medonha com ele. Se ainda guardava algum ressentimento, tinha todo o direito e
mais algum.
Mas ele dissera que queria se encontrar comigo. Talvez fosse só porque
tivesse se lembrado de mais algumas coisas horríveis que não chegara a me
dizer no Claustro, pensei, o moral tornando a despencar.

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