Nos dias anteriores ao Natal, fiquei muito nervosa toda vez que fui ao
centro de Dublin. Provavelmente, Luke e Brigit estavam na Irlanda, e eu tinha
uma certa esperança de encontrá-los. Procurava o tempo todo seus rostos sob as
luzes feéricas, entre as hordas de consumidores. Uma vez, cheguei mesmo a
achar que tinha visto Luke na Rua Grafton. Um homem alto, com o cabelo
escuro, mais para comprido, caminhando a passos largos na direção contrária.
"Só um minuto", murmurei para mamãe, e desembestei atrás dele. Mas, quando
o alcancei, depois de quase derrubar um grupo de cantores de hinos natalinos,
descobri que não era ele. Seu rosto e sua bunda eram totalmente diferentes, não
chegavam nem aos pés dos de Luke em matéria de beleza. Provavelmente, tinha
sido melhor que não fosse mesmo ele. Eu não fazia idéia do que teria dito, se
fosse.
No dia de Ano-novo, uns vinte membros de minha família, além de
namorados e crianças sorridas, apinhavam-se na sala de estar, assistindo a Os
Caçadores da Arca Perdida e gritando "Mostra a banana" toda vez que Harrison
Ford aparecia em cena. Até mamãe gritava, mas só porque não sabia o que quer
dizer "banana" na gíria. Helen estava bebendo gim com tônica e descrevendo a
sensação para mim.
— Primeiro, a gente sente uma quentura maravilhosa na garganta —
disse, pensativa.
— Pára com isso! — Mamãe tentou bater em Helen. — Não perturba a
Rachel.
— Não, fui eu mesma que pedi a ela para me dizer — protestei.
— Aí, a ardência bate no estômago — estendeu-se Helen. — E a gente
sente ela se irradiando pelo sangue...
—Maraviiiiilha — suspirei.
Mamãe, Anna e Claire estavam limpando uma grande caixa de
biscoitos de chocolate e, a cada um que apanhavam, diziam: "Posso parar à hora
que quiser."
No meio da pândega, a campainha tocou.
— Eu não vou — gritei.
— Nem eu — gritou mamãe.
— Nem eu — gritou Claire.
— Nem eu — gritou Adam.
— Nem eu — disse Anna o mais alto que pôde, o que não chegava a
atingir meio decibel, mas, pelo menos, ela tentou.
— Você vai ter que ir — disse Helen a Shane, o namorado de Anna.
Agora, Shane estava morando extra-oficialmente conosco, porque tinha sido
despejado do seu apartamento. O que significava que também víamos Anna com
muito mais freqüência, pois ela não tinha mais um buraco onde se esconder.
— Aaahhhh — gemeu ele. — Tá chegando na cena em que ele dá um
tiro naquele cara com a faca no bazar.
— Onde é que está Margaret, justo quando se precisa dela? —
perguntou Adam.
— SANTINHA — gritou o aposento em peso.
A campainha tornou a tocar.
— Atende, Shane, se não quiser dormir debaixo da ponte hoje à noite
— advertiu mamãe.
Ele saiu do aposento pisando duro, voltou e murmurou:
— Rachel, tem uma pessoa na porta querendo ver você.
Levantei de um pulo, esperando que fosse alguém como Nola, torcendo
para que ela também gostasse de Harrison Ford. Mas era claro que gostaria.
Nola gostava de todos e de tudo.
Porém, quando cheguei ao vestíbulo, quem encontrei parada diante da
porta, parecendo pálida e nervosa, senão Brigit? Levei um choque tal, que vi
manchas negras passarem diante dos olhos. A custo consegui cumprimentá-la.
— Oi — respondeu ela, tentando sorrir. Para ser franca, foi apavorante.
Ficamos lá, em silêncio, apenas olhando uma para a outra. Pensei na última vez
em que a havia visto, todos aqueles meses atrás, quando estava de saída do
Claustro.
— Achei que talvez fosse bom se a gente se visse — arriscou,
constrangida.
Relembrei os milhões de conversas que havia tido com ela
mentalmente, nas quais a humilhava com comentários venenosos, cheios de
desprezo. "Achou, não foi?", "Mas me diz, Brigit, por que eu haveria querer ver
alguém como você?", "Nem precisa rastejar pela minha porta esperando que eu
te perdoe, sua amiga-da-ONÇA!"
Mas nem de longe pareciam adequados agora.
— Você quer... — Fiz um gesto manso em direção às escadas e meu
quarto.
— O.k. — disse ela, e se pôs a subir, eu atrás, vistoriando suas botas,
seu casaco, seu peso.
Sentamos na cama e abrimos a conversa com o tradicional "Como vai",
seguido pelo inevitável "Você está com uma cara ótima". O fato de ela estar
mesmo com uma cara ótima me deixou muito desconfortável durante algum
tempo. Tinha feito mechas e cortado o cabelo, um corte chique, nova-iorquino.
— Você ainda está...? — perguntou ela.
— Mais de oito meses agora — disse eu, entre tímida e orgulhosa.
— Meu Deus. — Ela pareceu a um tempo impressionada e horrorizada.
— Como vai Nova York? — perguntei, com uma pontada de dor. A
entrelinha principal de minha pergunta era "Como vai Luke?", seguida de perto
por "Como é que foi tudo dar tão errado?".
— Está ótima. — Deu um sorriso curto. — Gelada, sabe?
Abri a boca, decidida a perguntar como ele estava, mas fiquei na
intenção, tão desesperada para saber quanto incapaz de perguntar.
— Como vai seu emprego? — perguntei.
— Vai bem — respondeu ela.
— Que bom — disse eu, efusiva. — Que ótimo.
— Você está... er... trabalhando? — perguntou ela.
— Eu? — soltei. — Não, pelo amor de Deus. No momento, ser uma
toxicômana está sendo uma ocupação em tempo integral!
Nossos olhares se cruzaram, constrangidos, agitados, para logo se
desviarem rapidamente.
— Como está sendo a sua vida em Dublin? — Ela finalmente rompeu o
silêncio.
—Maravilhosa — retruquei, torcendo para que a resposta não tivesse
soado tão defensiva quanto eu me sentia. — Fiz um monte de bons amigos.
— Que bom. — Ela me deu um sorriso encorajador, mas seus olhos
estavam rasos d'água. Nesse momento, senti, com um aperto na garganta, as
lágrimas brotarem nos meus.
— Desde aquele dia... naquele lugar — começou Brigit, sondando o
terreno.
— Está se referindo ao Claustro?
— É. Aquela velha, Jennifer...
— Josephine — corrigi-a.
— É, Josephine. Meu Deus, ela era um horror, não sei como você
agüentava com ela.
— Ela não era tão má assim — me senti obrigada a dizer.
— Achei ela terrível — insistiu Brigit. — Enfim, o fato é que ela me
disse uma coisa... Que era ótimo eu ter alguém com quem me comparar, para
sempre vencer a comparação.
Assenti. Já fazia uma idéia de aonde ela estava querendo chegar.
— E... e... — Ela se interrompeu, uma lágrima pingando nas costas de
sua mão. Engoliu em seco e piscou os olhos. — ...e eu achei que o que ela estava
dizendo era uma babaquice, estava com tanta raiva de você que não conseguia
me sentir culpada por coisa alguma.
— E não era — insisti.
— Mas ela tinha razão — prosseguiu Brigit, como se não tivesse me
ouvido. — Embora eu tenha esculhambado você, o fato de você estar totalmente
descontrolada fazia com que eu me sentisse bem. Quanto pior você ficava,
melhor eu me sentia em relação a mim mesma. E só posso te perdir perdão por
isso. — Com essas palavras, rompeu num choro convulso, violento.
— Deixa de ser burra, Brigit — disse eu, tentando manter a firmeza e
não chorar. — Sou uma dependente, você estava vivendo com uma dependente.
Deve ter sido um inferno para você, e só agora começo a me dar conta do quanto
deve ter sido horrível.
— Eu não devia ter sido tão dura com você — soluçou ela. — Foi
desonesto da minha parte.
— Pára com isso, Brigit — ordenei, dura, e ela levantou o rosto,
surpresa, as lágrimas sustadas pelo choque. — Lamento muito que você se sinta
culpada, mas, se ajuda saber, tudo aquilo que você me disse no dia em que foi
ao Claustro... Ela estremeceu.
— ...foi a melhor coisa que poderia ter feito por mim — prossegui. — E
eu fico grata.
Ela protestou. Eu tornei a insistir. Ela tornou a protestar, e eu a
insistir.
— Você está falando sério? — perguntou.
— Estou, sim, falando muito sério — disse eu, amável. E estava mesmo
falando sério, me dei conta.
Ela me deu um sorriso angustiado, e a tensão se dissipou.
— Quer dizer que você está mesmo bem? — perguntou, constrangida.
— Estou ótima — respondi, com toda a honestidade,
Calamo-nos.
— E você sai por aí dizendo que é uma dependente? — perguntou ela,
um tanto cautelosa.
— Bom, eu não paro os estranhos na rua. Mas, quando é importante,
digo, sim.
— Como naqueles encontros a que você vai, por exemplo.
— Exatamente.
Ela se inclinou para perto de mim com os olhos brilhando e perguntou:
— É que nem aquela parte de Quando um Homem Ama uma Mulher,
em que Meg Ryan se levanta diante de todo mundo e diz que é alcoólatra?
— Igualzinho, Brigit. Só que Andy Garcia não vem correndo para mim
no final e abaixa a mão.
— Antes assim. — Brigit sorriu. — Ele é asqueroso.
— Como um lagarto — concordei.
— Um lagarto bonito, justiça seja feita — salientou ela. — Mas um
lagarto é um lagarto.
Por alguns momentos, foi como se nada de mau jamais tivesse
acontecido. Fomos atiradas de volta no tempo e no espaço, à época em que
éramos a melhor amiga uma da outra, e uma sabia exatamente o que a outra
estava pensando.
— Acho melhor ir andando — disse ela, se levantando, constrangida.—
Tenho que fazer minhas malas.
— Quando você vai voltar?
— Amanhã.
— Obrigada por ter vindo — disse eu.
— Obrigada por ter sido tão boa comigo — respondeu ela.
— Não, eu é que te agradeço.
— Tem alguma possibilidade de você voltar a Nova York?
— Não num futuro próximo.
Desci as escadas para acompanhá-la até a porta.
— Tchau — disse ela, com a voz trêmula.
— Tchau — respondi, o tremor em minha voz idêntico ao dela.
Ela abriu a porta da rua, chegando a pôr uma perna para fora,
dando as costas. Assim que pensei que tinha ido embora, ela girou nos
calcanhares, atirou os braços ao meu redor e nos abraçamos com força. Senti-a
chorando com o rosto enterrado em meus cabelos, e teria dado tudo que já tive
na vida para voltar no tempo. Para que as coisas voltassem a ser como eram
antes.
Ficamos ali durante muito, muito tempo. Por fim, ela me deu um beijo
na testa. Tornamos a nos abraçar. E ela saiu para a noite fria.
Não prometemos ficar em contato. Talvez ficássemos, talvez não. Mas,
agora, as coisas estavam bem.
O que não quer dizer que eu não tenha ficado arrasada.
Chorei durante dois dias inteiros. Não queria saber de Nola, Jeanie,
Gobnet ou quem quer que fosse, porque nenhuma delas era Brigit. Não queria
continuar viva, se não podia ter a vida que tivera com Brigit.
Achei que nunca superaria a dor.
Mas superei. Em questão de dias.
E me enchi de orgulho por ter passado por uma experiência tão
dolorosa sem me drogar. Em seguida, senti um estranho alívio por não estar
mais presa a Brigit. Era bom saber que eu podia sobreviver sem ela, que não
precisava da sua aprovação, do seu aval.
Senti-me forte, capaz de ficar de pé sozinha, sem talas ou muletas.
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