quarta-feira, 6 de julho de 2011

Férias!! - MARIAN KEYES Cap.69

O outono passou voando, a temperatura caiu e o inverno chegou.
Alguma coisa mudou. Descobri que não estava mais com ódio de Luke
e Brigit. Não podia precisar exatamente o momento em que isso acontecera,
porque o amor fraternal e o perdão não acordam a gente de madrugada dando
voltas de Fórmula 1 na cabeça, como o ódio e as idéias de vingança.
A gente não fica lá, deitada, acordadíssima às cinco da manhã,
rangendo os dentes e visualizando uma cena em que vai ao encontro daqueles
que realmente ama e troca um aperto de mão com eles. Dizendo... dizendo...
dizendo... "Me perdoe." Não, espera aí: "De coração, me perdoe." (É, isso lhes
serviria de lição.) A gente não fica deitada, planejando que, tão logo faça isso, vai
abrir um sorriso afetuoso. E perguntar, ao se despedir: "Será que tem alguma
chance de ficarmos amigos?"
A brandura e a fidelidade não aparecem do nada na sua boca,
deixando nela um gosto horrível.
Pela primeira vez, compreendi como fora egoísta. Como devia ter sido
horrível para Luke e Brigit conviver comigo e com o caos que eu criara.
Senti uma tristeza insuportável por eles, por toda a infelicidade e a
preocupação a que tinham sido submetidos. Coitada da Brigit, coitado do Luke.
Eu chorava, chorava, chorava, chorava. E, pela primeira vez na vida, não era por
mim mesma.
Com uma clareza terrível, enxerguei que suplício devia ter sido para
eles embarcar num avião, vir para o Claustro e dizer o que disseram. É claro,
Josephine, Nola e todos os outros tinham ficado carecas de tanto me dizer isso,
mas até agora eu não estava pronta para encarar a verdade.
Nunca teria admitido ser uma toxicômana, se Luke e Brigit não
tivessem me confrontado de maneira tão violenta com a verdade. E estava grata
a eles.
Relembrei a cena horrível de minha ruptura com Luke, e só então
compreendi sua raiva.
A tempestade começara a se formar no fim de semana. No sábado à
noite, tínhamos ido a uma festa e, enquanto Luke conversava sobre música com
o namorado de Anya, saí vagando em direção à cozinha. Procurando alguma
coisa, qualquer coisa. Morta de tédio. No corredor, encontrei David, uma espécie
de amigo de Jessica. Estava a caminho do banheiro com um saco de coca
pequeno mas inconfundível, e me convidou para acompanhá-lo.
Eu andava tentando ficar longe do pó, porque Luke se irritava muito
quando eu cheirava. Mas uma carreira de graça era demais para resistir. E fiquei
lisonjeada por David ter sido tão simpático.
— Tá, valeu — disse eu, partindo rapidamente para o banheiro atrás
dele.
Em seguida, voltei para a companhia de Luke.
— Gata. — Ele passou o braço pela minha cintura. — Por onde você
andou?
— Por aí — funguei. — Conversando com as pessoas.
Achei que tinha me saído muito bem, escondendo dele meu barato com
o rosto à espreita por trás dos cabelos. Mas Luke me obrigou a olhar para ele e,
assim que viu meu rosto, soube. Suas pupilas se contraíram de ódio e algum
outro sentimento. Decepção?
— Você andou cheirando — disparou.
— Não andei — disse eu, arregalando os olhos de sinceridade.
— Não mente para mim, porra — disse ele, e se afastou, furioso.
Fiquei chocada ao vê-lo apanhar sua jaqueta e ir embora da festa. Por
um momento, namorei a idéia de deixá-lo ir. Assim, poderia ficar ligada sem
ninguém colado na minha sombra. Mas as coisas andavam tão tensas entre nós
nos últimos tempos, que fiquei com medo de arriscar. Desci e corri para a rua
atrás dele.
— Desculpe — arquejei, ao alcançá-lo. — Foi só uma carreira, não vou
fazer isso de novo.
— Você vive se desculpando — gritou ele, seu hálito formando nuvens
de vapor no ar gelado de fevereiro. — Mas é sempre da boca para fora.
— Estou pedindo desculpas de coração — protestei. Naquele momento,
eram de coração. Eu sempre me arrependia sinceramente quando ele se zangava
comigo. Era justamente quando achava que estava à beira de perdê-lo, que mais
o desejava.
— Ah, Rachel — gemeu ele, exausto.
— Vem—disse eu.— Vamos para casa, para a cama.
Sabia que ele não conseguia resistir a mim, que uma boa trepada
calaria sua boca. Mas, quando fomos para a cama, ele não encostou um dedo
em mim.
No dia seguinte, voltou a ser a pessoa afetuosa de sempre, e eu soube
que tinha me perdoado. Sempre perdoava. Ainda assim, eu me sentia
extremamente deprimida. Como se tivesse cheirado dois gramas inteiros na noite
anterior, em vez de apenas uma carreira. Depois de tomar alguns comprimidos
de Valium, o bode passou e tive a sensação de estar aconchegada num berço
macio e quentinho.
Passamos a noite de domingo em casa, aconchegados no sofá,
assistindo a um filme no videocassete. Sem mais nem menos, minha cabeça foi
tomada por uma imagem de mim mesma aspirando uma carreira de coca,
comprida, maravilhosa. E me senti terrivelmente cerceada pela presença de
Luke.
Me remexi no sofá, tentando me acalmar. Era noite de domingo, eu
estava me divertindo muito, não tinha nenhuma necessidade de sair e badalar.
Mas não conseguia me livrar do desejo. Eu tinha que ir embora. Já podia sentir
o gosto sublime, acre, torpente da coca, já podia sentir seu barato.
Relutei o quanto pude, mas foi impossível.
— Luke — chamei, com a voz trêmula.
— Fala, gata. — Ele sorriu molemente para mim.
— Acho melhor eu ir para casa — consegui dizer. Ele me olhou duro, e
seu sorriso se desfez.
— Por quê?
— Porque... — Hesitei. Ia dizer que estava me sentindo indisposta, mas,
da última vez que arriscara essa estratégia, ele fizera questão de cuidar de mim,
preparando um saco de água quente para minha dor de estômago imaginária e
me obrigando a comer raiz de gengibre para minha náusea imaginária.
—Porque eu tenho que acordar bem cedo amanhã e não quero
incomodar você quando me levantar — gaguejei.
— A que horas você tem que acordar?
— Às seis.
— Tudo bem — disse ele. — Vai me fazer bem chegar cedo ao escritório.
Ah, não. Por que ele tinha que ser tão bom, porra? Como é que eu ia
conseguir fugir?
— E não é só isso, eu vim para cá sem trazer uma calcinha limpa —
disse, em desespero de causa. A sensação de estar presa se intensificou.
— Mas você pode apanhar uma de manhã, antes de ir trabalhar —
sugeriu ele, tenso.
— Não, porque tenho que acordar muito cedo. — O pânico se apoderou
de mim. Senti que as paredes da sala fechavam o cerco ao meu redor. Levanteime
e comecei a me esgueirar de fininho em direção à porta.
— Não, espera um segundo. — Ele me encarou de um jeito estranho. —
Você está com sorte, deixou uma calcinha aqui e eu pus para lavar junto com as
minhas roupas. A Lavanderia Luke salva o seu dia — disse, com ar sério.
Quase gritei. Senti o suor brotando em minha testa.
— Olha, Luke — não consegui me conter —, não vou passar a noite
aqui e fim de papo.
Percebi a mágoa em seu olhar, embora continuasse duro.
— Desculpe — pedi, desarvorada. — Preciso de um pouco de espaço.
— Só me diz por quê — pediu ele. — Afinal, cinco minutos atrás você
parecia feliz. Foi o vídeo?
— Não.
—Foi alguma coisa que eu fiz? — perguntou, num tom que poderia ser
de sarcasmo. — Ou foi alguma coisa que deixei de fazer?
— Não, Luke — respondi depressa. — Você é ótimo, o negócio é comigo.
Por seu rosto zangado, vincado de dor, vi que estava falando com as
paredes. Mas não me importei. Já estava no Parlour, dançando e fechando
negócio com Wayne.
— Te ligo amanhã — arquejei. — Desculpe.
Corri como um raio para a porta, aliviada demais para sentir ódio de
mim mesma.
Em dez minutos, encontrei Wayne e lhe pedi um grama.
— Põe na conta. — Forcei uma risada ansiosa. — Vou receber dinheiro
daqui a uma semana.
— Não importa — ele deu de ombros. — É como diz o outro: não vem
me pedir para vender fiado, que uma bala na cabeça não tem nada de
engraçado.
— Ha, ha — fiz eu, pensando que grande filho-da-puta ele era.
Por fim, consegui persuadi-lo a me dar um quarto de grama, que era o
estrito necessário para tirar de cima de mim aquela sensação sufocante e me dar
uma injeção de euforia.
Quando voltei do banheiro feminino, ele tinha ido embora.
Para minha angústia, o bar foi ficando vazio, pois todo mundo que eu
conhecia, mesmo de vista, estava indo embora. Mas era apenas uma da manhã.
— Aonde é que vocês estão indo? — perguntava, ansiosa, na esperança
de ser convidada para ir também.
— É noite de domingo — respondiam. — A gente tem que pegar no
batente de manhã.
Pegar no batente de manhã? Quer dizer que não estavam indo a uma
festa, estavam indo para casa dormir?
Em pouco tempo, eu estava totalmente sozinha, ligadona, sem ter
ninguém com quem agitar. Experimentei sorrir para a meia dúzia de gatospingados
que haviam restado, mas nenhum deles foi simpático. A paranóia
começava a se infiltrar, gota a gota. Eu não tinha dinheiro, nem drogas, nem
amigos. Estava sozinha e era malquista, mas relutava ao máximo em ir para
casa.
Por fim, não tive opção. Ninguém quis pagar uma bebida para mim ou
me emprestar dinheiro. Embora eu tivesse pedido. Humilhada, enfiei a viola no
saco e fui embora.
Mas, quando cheguei em casa e tentei dormir, minha cabeça zumbia
como uma serra elétrica e corria como um carro de Fórmula 1. Estava pior agora
do que no Parlour. Assim, tomei três comprimidos para dormir e pensei em
escrever um pouco de poesia, pois me sentia particularmente criativa e dotada
de um talento único.
Como nem assim minha cabeça desligasse, tomei mais dois
comprimidos.
Todo o prazer do barato passara, e eu estava presa a uma cabeça que
não parava de trepidar. Senti um medo pânico. Quando aquela sensação
passaria? E se nunca mais passasse?
O pavor, que não me dava um segundo de trégua, só cessou quando
lembrei que tinha que trabalhar no dia seguinte. Meu coração se apertou de
medo. Eu tinha mesmo que ir, já andava tão enrolada nos últimos tempos que
não podia matar mais um dia. Não podia me atrasar, e tinha que parar de dar
mancada. Para conseguir isso, eu precisava, verdadeira e desesperadamente,
dormir naquele exato instante. Mas não conseguia!
Num gesto frenético, despejei na mão o resto dos comprimidos que
havia no vidro e os enfiei na boca.
Vozes, brilho nos meus olhos, a cama andando aos solavancos, luz
azul, sirenes, mais vozes, a cama tornando a andar, brancura, cheiro estranho e
asséptico. "Sua burra", diz uma voz. Quem é?, entrepergunto. Sons de bipe, pés
correndo por corredores, barulho de metais se chocando, mão bruta no meu
queixo, forçando minha boca a se abrir, algo de plástico na minha boca,
arranhando minha garganta. Súbita ânsia de vômito e engasgo, tentativa de me
sentar, mãos me forçando a deitar de novo, náusea e convulsões, mãos fortes me
mantendo estendida sobre a mesa. Façam com que isso pare.
Em menos de vinte e quatro horas estava de volta ao meu
apartamento. Onde descobri que Margaret e Paul haviam chegado de Chicago, a
fim de me levar para um centro de reabilitação na Irlanda. Eu não podia
entender a razão daquele estardalhaço todo. Tirando a sensação de ter levado
uma surra, de estar engolindo giletes e quase morrendo de desidratação, eu
estava bem. Quase ótima. Tudo não passara de um acidente constrangedor e eu
estava louca para esquecê-lo.
Nesse momento, para minha surpresa, Luke chegou.
Opa. Preparei-me para levar uma bronca por ter dado o pira e
cheirado coca na noite de domingo. Presumi que, com toda a tragédia da
lavagem estomacal, ele devia ter descoberto.
— Oi! — Sorri, ansiosa. — Você não devia estar trabalhando? Entra aí,
vem conhecer a caretona da minha irmã Margaret e o marido horroroso dela.
Ele trocou um educado aperto de mão com Margaret e Paul, mas sua
fisionomia estava furiosa e fechada. Numa tentativa de melhorar seu humor,
narrei a história hilária de meu despertar no Mount Solomon, vomitando as
tripas. Ele me agarrou com força pelo braço, dizendo: "Gostaria de dar uma
palavra com você em particular." Meu braço doeu e fiquei assustada com a
ferocidade de seu olhar.
— Como é que você ainda tem coragem de fazer piada com uma coisa
dessas? — perguntou ele, furioso, assim que bateu a porta de meu quarto atrás
de mim.
— Acorda. — Forcei uma risada. Estava aliviada pelo fato de ele não
pretender me dar um esporro por cheirar coca na noite de domingo.
— Você quase morreu, sua burra — soltou ele. — Pensa na
preocupação em que todos nós ficamos — há séculos, não só em relação ao que
aconteceu —, pensa na coitada da Brigit, e a única coisa que faz é rir!
— Quer desencanar, por favor? — disse eu, em tom desdenhoso.
— Foi um acidente!
— Você ficou louca, Rachel, louca varrida — disse ele, exaltado.
— Precisa de ajuda, e da boa.
— Quando foi que você perdeu o senso de humor? — perguntei.
— Está igual a Brigit.
— Não vou nem responder a isso.
Após uma pausa, acrescentou, mais brando:
— Brigit disse que você vai para um centro de reabilitação. Acho uma
ótima idéia.
— Você pirou? — Soltei uma risada histérica, quase me engasgando. —
Eu, indo para um centro de reabilitação? Que piada! Além disso, não posso ir
embora e te deixar. — Sorri, para reavivar nossa intimidade. — Você é meu
namorado.
Ele me encarou com um olhar longo e duro.
—Não sou mais — disse, por fim.
— Q-quê? — gaguejei, gelada do choque. Ele já tinha se zangado
comigo outras vezes, mas nunca rompera comigo.
— Acabou — disse ele. — Você está no fundo do poço e eu desejo de
todo coração que fique curada.
— Você conheceu alguém? — balbuciei, horrorizada.
— Não seja burra — disparou ele.
— Então por quê? — perguntei, mal podendo acreditar que
estivéssemos tendo essa conversa.
— Porque você não é a pessoa que eu pensei que fosse — disse ele.
— É porque eu cheirei na noite de domingo? — Me forcei a engolir o
sapo e fazer a pergunta fatal.
— Noite de domingo? — soltou ele, com um riso amargurado. — Por
que a noite de domingo, especificamente? Mas o problema são as drogas, sim.
Seu vício é grave e você precisa de ajuda. Já fiz tudo que podia para ajudar —
convencer você a parar, obrigar você a parar —, e estou exausto.
Por um momento, ele realmente pareceu exausto. Abatido, infeliz.
— Você é uma mulher maravilhosa sob vários aspectos, mas não vale o
trabalho que dá. Está descontrolada e eu não sei mais o que fazer com você.
— Ah, não. — Eu não ia me deixar manipular. — Pode romper comigo,
se quiser, mas não tenta me culpar.
— Meu Deus — disse ele, feroz —, é inútil tentar fazer você entender.
Deu as costas para ir embora.
— Você está fazendo uma tempestade em copo d'água, Luke — insisti,
tentando segurar sua mão. Sabia o quanto ele se sentia atraído por mim, sempre
conseguia ganhá-lo desse jeito.
— Me esquece, Rachel. — Ele se desvencilhou de minha mão, zangado.
— Você me dá nojo. Você é um lixo, um lixo completo. — Ato contínuo, saiu a
passos largos para o corredor.
— Como você pode ser tão cruel? — choraminguei, correndo atrás dele.
— Tchau, Rachel — disse ele, batendo a porta da rua.

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