Quando escapulimos de lá para a noite quente, Chris subitamente
pareceu me notar outra vez. Passou o braço pelos meus ombros, de um jeito
casual e amigo, e saímos caminhando pelas ruas.
Não pude deixar de me sentir feliz. Talvez ele gostasse de mim, afinal
das contas.
— Como foi que você chegou à cidade? — perguntou ele.
— De trem.
— Eu te levo de carro até em casa — disse ele. Isso provocou em mim
uma certa sensação de reconforto e alegria. Gostei do que dissera e da maneira
como dissera, me senti protegida.
— A menos que você queira dar mais um pulo lá em casa para tomar
um café — sugeriu ele, com um insondável olhar de soslaio.
— Hum... O.k. — gaguejei. — Tudo bem. Onde você estacionou o carro?
— Em Stephen's Green.
Caminhamos até o parque, em harmonia, pela primeira vez aquela
noite. E, quando chegamos lá, descobrimos que seu carro fora roubado.
Diante do que, Chris executou a Dança do Carro Roubado. Cuja
coreografia é a seguinte. Dê quatro passos ao lado da vaga vazia e detenha-se
abruptamente. Dê quatro passos para trás em outra direção, de novo detendo-se
abruptamente. Dois passos na direção inicial, pare, e repita a seqüência. Uma
meia-volta frenética para a esquerda, uma meia-volta frenética para a direita,
seguida por meias-voltas em todas as direções, culminando com uma pirueta de
trezentos e sessenta graus. É aqui que as instruções faciais se tornam muito
importantes. Arregale os olhos, franza a testa, escancare a boca.
Nesse ponto, você já pode dizer: "Mas onde...?! Eu estacionei aqui,
juro, não tem nem talvez, estacionei aqui..."
Pausa. Nova série de passos, dessa vez bem mais agitados. De um lado
para o outro, de um lado para o outro, de um lado para o outro. Mais rápidos,
mais rápidos, mais rápidos. Outra pausa para mais meias-voltas, dessa vez com
os braços abertos: "Será que foi aqui mesmo que estacionei...? Talvez não tenha
sido... Mas tenho certeza que foi, certeza absoluta, porra."
Em seguida, num crescendo: "PUTA QUE PARIU! Que filhos-da-puta.
Que filhos-da-puta... filhos-da-puta, filhos-da-puta miseráveis, filhos-da-puta
DESGRAÇADOS."
"Acabei de comprar." (Em algumas versões.)
"Não está no seguro." (Em outras.)
"Meu pai não sabe que eu saí com ele." (Na de Chris.)
Esgotei meu repertório de clichês reconfortantes para acalmá-lo,
"Calma", "Não fica assim" etc. Ofereci-me para ir à polícia, telefonar para a
companhia de seguros e matar o(s) desconhecido(s) que havia(m) roubado o
carro. Embora o que estivesse realmente com vontade de fazer era tomar um táxi
para casa, dormir e esquecer completamente Chris e seu drama. Mas, por algum
motivo, sentia-me obrigada, por uma questão de honra, a ficar do lado dele e lhe
prestar solidariedade.
— Bom — disse ele, por fim —, já que não há nada que eu possa fazer,
podemos ir para casa. Vou ligar para a polícia de manhã.
Soltei um suspiro de alívio tão forte que quase desenraizei algumas
árvores mais próximas.
— Me desculpe por isso — pediu ele, com um sorriso irônico que eu já
conhecia de longa data. — Ainda quer voltar para o meu apartamento? Meus
pais estão viajando — acrescentou.
Senti um tranco no estômago e disse, em tom casual:
— Ah, claro, eu volto com você, por que não? A noite é uma criança,
ha, ha, ha.
O que você está fazendo?
Me deixa! Ele é só um amigo.
Embora eu também morasse com meus pais, não pude deixar de sentir
uma ponta de desprezo por Chris. Afinal, ele já estava na casa dos trinta anos,
ao passo que eu ainda estava na dos vinte.
Justamente.
Mas ele era homem. Havia qualquer coisa da mais extrema pieguice no
fato de um homem ainda morar com os pais. Como se ainda chamasse a mãe de
"mãezinha". Como se tivesse que pingar na mão dos velhos seu salário toda
sexta-feira à noite e pedir permissão para ir ao bar tomar umas cervejas com os
amigos. Como se a mãe fosse uma fanática religiosa que vivesse com as cortinas
fechadas e mantivesse lampadazinhas vermelhas acesas para o Sagrado Coração
em cada um dos aposentos minúsculos, cheios de paninhos de renda, cheirando
a mofo, abafados numa atmosfera de sussurros.
Felizmente, o lar ancestral dos Hutchinsons estava longe de fazer esse
gênero, ostentando sinais de prosperidade burguesa. Novos cômodos
construídos, outros reformados, jardins-de-inverno, pátios, fornos de
microondas, filmadoras e sequer uma lâmpada vermelha acesa para o Sagrado
Coração à vista.
Chris me levou para a cozinha e, enquanto punha a chaleira de água
para ferver, sentei diante da bancada de café da manhã — é claro que eles
tinham uma bancada para tomar o café da manhã —, balançando as pernas,
para deixar claro que estava relaxada, e não nauseada com aquele misto de
pavor e expectativa.
Sabia que morreria, se acontecesse alguma coisa entre mim e ele. E
que morreria, se não acontecesse.
Ouvi a voz de Josephine me alertando: "Seu instinto é procurar alguém
para compensá-la. Um homem. Provavelmente, qualquer homem." Mas então,
olhei para Chris, para o jeito como sua calça se colava à parte de trás das coxas
musculosas, e pensei: "Josephine que se foda."
Chris não era simplesmente um homem qualquer, sua beleza ia muito
além de mediana. Além disso, tínhamos muito em comum, muitas experiências
partilhadas. Se tivéssemos permissão para namorar, faríamos um par perfeito.
Ele sentou em outro tamborete diante da bancada e chegou bem perto
de mim. Nossos joelhos se encostaram. De repente, ele me deu um susto,
mudando a posição da perna, de modo a encaixá-la entre meus joelhos,
pressionando-a com suavidade para a frente. Fiquei morta de vergonha da
maneira como minha respiração se tornara audível.
Já tínhamos nos sentado muitas vezes daquele jeito no Claustro, : fora
uma coisa perfeitamente segura. Mas não estávamos mais no Claustro, me dei
conta, com um frêmito de inquietação. Era como se Eu tivesse acabado de pular
de um avião e descobrisse que tinha esquecido o pára-quedas.
— Sabe — disse Chris, com um sorriso que fez meus intestinos virarem
coalhada —, tem uma coisa que eu venho querendo fazer há dois meses. E me
beijou.
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