quarta-feira, 6 de julho de 2011

Férias!! - MARIAN KEYES Cap.62

Eu podia escolher entre amarrar uma corda no pescoço e dar um chute
na cadeira debaixo de meus pés e me preparar para meu encontro com Chris.
Gostaria de adiar a nossa grande noite até meu cabelo crescer, mas
não tinha certeza se ele esperaria os doze anos necessários.
Embora eu até que não estivesse de dar engulhos, depois de desfazer
aqueles cachos de matrona no chuveiro e sapecar na cara o triplo da carga
habitual de maquiagem.
— Pelo menos, está bonito e saudável — me consolei, depois de alisá-lo
com o pente o máximo possível, para esticá-lo.
Helen soltou uma gargalhada escandalosa.
— Ouve só ela — ria. — Você está tão triste. Vê meu cabelo? —
Mostrou-o, levantando algumas das melenas sedosas que lhe vinham até a
cintura. — Cheio de pontas duplas. E eu tô lá me importando com isso? Nem um
pouco!
Na quarta feira, passei horas me aprontando. Os preparativos
começaram assim que acordei (por volta das duas e meia) e se estenderam por
toda a tarde. Lavei mais uma vez o que restara do meu cabelo, em seguida
passei a gilete numa boa parte do corpo, refletindo sobre a injustiça de ter cabelo
demais nas pernas e de menos na cabeça. Claro que eu não tinha necessidade
de depilar nada, já que Chris não ia me ver nua. Mas, que mal podia fazer?,
indaguei, sentindo um agradável friozinho no estômago.
Depois disso, passei no corpo uma generosa porção da loção corporal
de Issey Miyake, de Helen. Logo me senti culpada, pois devia ter pedido a ela. E,
se ela dissesse que não, não devia chamá-la de vaca, e sim limitar-me a aceitar a
negativa como uma adulta. Da próxima vez que precisasse roubar alguma coisa
sua, teria oportunidade de praticar, pensei, para me acalmar.
Com isso em mente, minha mão hesitou sobre o vidro de perfume de
Helen... para finalmente apanhá-lo, decidida. Ora, o estrago já não estava feito,
mesmo, com a loção corporal? Com perfume a coisa era diferente, o conteúdo do
vidro era maior. As pessoas podem te acusar de ser uma mocréia egoísta por
dizimar sua loção corporal, mas não recusam algumas gotas do seu perfume
mesmo a uma completa desconhecida, sem fazer perguntas.
O próximo item da agenda, claro, era a Indecisão Sobre O Que Vestir. A
preocupação de que minhas roupas transmitissem para Chris a mensagem certa
— provocantes mas casuais, elegantes mas informais — era composta por vários
fatores. Primeiro: todas as minhas roupas de verão estavam em Nova York.
Segundo: o que era considerado a quinta-essência da sofisticação em Nova York
podia provocar uma batida de carros em Dublin, tal o quiriquiqui dos
motoristas. E, é claro, o terceiro fator, o único que eu não conseguia realmente
admitir, era minha extrema insegurança em relação a como me comportar no
mundo exterior.
Mamãe observava meus preparativos com uma expressão preocupada.
O que a inquietava não era tanto o fato de sua filha, que acabara de receber alta
de um centro de reabilitação, estar prestes a pôr o pé num mundo infestado de
drogas, e sim algo infinitamente mais sério.
— Helen vai te matar — avisou, quando viu o vidro vazio de loção
corporal.
— Tudo bem — disse eu, irritada.
— E afinal, com quem é que você vai se encontrar? — Senti a enorme
ansiedade em sua voz, o que a um tempo me magoou e exasperou.
— Com Chris, do hospício — disse eu. — Você sabe quem é, foi
apresentada a ele. Portanto, não precisa se preocupar, não vou estar na
companhia de ninguém que use drogas.
— Chris Hutchinson? — perguntou ela, alarmada.
— Éééééé — suspirei, com paciência histriônica.
— Olha lá, Rachel, cuidado — disse mamãe, a testa enrugada de
preocupação. — Ele atormenta a coitada da mãe.
—É mesmo? — Cheguei mais perto dela, movida por um misto de
interesse e medo. — Que foi que ele fez?
—Ele não parava de se drogar — murmurou ela, evitando meus olhos
— E Philomena e Ted gastavam uma fortuna com um especialista atrás do outro,
mas não adiantava nada. Quando menos esperavam, alguém do emprego dele
telefonava para dizer que ele não dava as caras há uma semana. E ele tem trinta
e tantos anos, Rachel, já está velho demais para obrigar os pais a ficarem
tomando conta dele. E tem mais uma coisa...
— Eu sei — atalhei-a.
— Ele já esteve no Claustro uma vez, quatro anos atrás.
— Eu sei — repeti, com um tom de voz cujo intuito ostensivo era
tranqüilizá-la. Sua agitação crescente já estava começando a passar do ponto. —
Ele me disse.
— Quase fez a coitada da Philomena sofrer um colapso nervoso — disse
mamãe, a voz esganiçada, com um tom levemente choroso. Hora de sair. — E,
depois disso, vieram as duas internações.
Eu me lembrava da mulherona de voz grossa que visitara Chris no
manicômio.
— Ela não parecia atormentada — debochei. — Parecia forte como um
touro.
— Você julga depressa demais... — A voz de mamãe foi morrendo a
distância. — Acha que todo mundo é feliz, menos você.
Lá fui eu de trem para a cidade, com as pernas bambas como as de um
novilho recém-nascido. Tudo era tão estranho e novo, que eu me sentia como se
também tivesse acabado de nascer.
Embora não fosse um encontro romântico, nem eu tivesse permissão
para ter encontros românticos, e tanto Chris quanto eu soubéssemos disso,
ainda assim eu tinha aquela sensação deliciosa de pavor no estômago, um sobee-
desce do tipo Nunca-mais-vou-comer-na-vida.
Tudo parecia novo e lindo. Como se eu visse uma noite de primavera
em Dublin pela primeira vez na vida. A maré estava alta e o mar azul e calmo,
quando passei por ele no trem. O céu parecia vasto e claro, com um tom
desmaiado, pálido. Os parques brilhavam com a grama verde e as tulipas
vermelhas, amarelas e roxas. E eu lá no trem, trêmula de medo e
maravilhamento diante daquilo tudo.
Quase corri a pé até o parque Stephen's Green, tamanha era minha
necessidade de ver Chris. E lá estava ele, à minha espera. Eu sabia que estaria
lá, e mesmo assim fiquei maravilhada ao vê-lo. Ele é lindo, pensei, sem fôlego, e
está ali porque quer se encontrar comigo.
Avistei o brilho azul de seus olhos a uma distância de quase dez
metros. E será que havia algum homem na face da Terra com pernas tão
gostosas? Deviam baixar uma portaria proibindo Chris de usar qualquer coisa
além de Levi's, pensei, ensandecida.
Ele voltou seu olhar azul para mim. Com os olhos baixos, atravessei a
rua ao seu encontro. Em seguida lá estava eu, perto dele, o coração palpitando
de prazer. Ambos sorrimos, constrangidos, com os olhos rasos d'água. Sem
saber direito como nos comportarmos um com o outro no mundo aqui fora.
— Como vai? — perguntou ele, bruscamente, me dando um abraço tão
canhestro, que mais parecia uma gravata. Nós, dependentes em recuperação,
não externávamos nosso afeto espontaneamente quando saíamos do centro de
reabilitação, pensei, com uma sensação de vazio. Podíamos ser muito íntimos lá
dentro, mas a coisa era diferente quando nos encontrávamos entre civis.
— Muito bem — disse eu, a voz trêmula, sentindo o coração quase
explodir de tanta emoção.
— Um dia de cada vez — disse ele, com um sorriso irônico.
— Pois é — disse eu, com outro sorriso largo, trêmulo. — Nós
conseguimos, estivemos no Claustro e sobrevivemos.
A atmosfera geral era a de que sobrevivêramos a algo horrível e isso
havia nos unido. Como os sobreviventes de um avião seqüestrado que se reúnem
uma vez por ano para evocar, com os olhos marejados, lembranças de quando
beberam a própria urina, arrancaram à força os pãezinhos de seus entes
queridos e levaram uma surra de um homem com um pano de prato na cabeça.
— Pois é! — ele exclamou.
— Pois é — concordei.
Esperei que fizesse algum comentário sobre meu cabelo, mas, como
isso não aconteceu, comecei a me preocupar. Estava horrível, não estava?
— Não notou nada de diferente em mim? — perguntei, sem sentir. Não,
não, não!
— Você raspou o bigode? — Ele riu.
— Não — murmurei, constrangida. — Cortei o cabelo.
— É mesmo — disse ele, pensativo.
Me amaldiçoei por ter tocado no assunto, e também aos homens em
geral por sua inconsciência visual. A única coisa que eles notam numa mulher,
pensei, decepcionada, são os peitos grandes.
— Ficou legal — disse ele. — Parece um menininho.
Podia até estar mentindo, mas eu estava mais do que disposta a lhe
conceder o benefício da dúvida.
— O que vamos fazer? — perguntei, recobrando meu bom humor.
— Não sei. O que você quer fazer?
— Tanto faz — disse eu, sorrindo como uma idiota. — O que você quer
fazer?
— O que eu realmente gostaria de fazer é comprar um quarto de Red
Leb, fumar em menos de uma hora, levar você para casa e te dar uma trepada de
abalar os alicerces — disse, pensativo. — Mas — sorriu, para tranqüilizar meu
rosto rígido como o de um cadáver —, nós não temos permissão para fazer isso.
— E não podemos mesmo ir a um bar — disse eu, soltando um pigarro
masculino, para deixar claro que não o levara a sério, nem ia bancar a
menininha grudenta, fazendo beicinho e batendo pé na rua cheia de gente, "Mas
você disse que ia me dar uma trepada de abalar os alicerces. Você PROMETEU!".
Tinha aprendido no Claustro que já cometera o erro de ser carente muitas vezes
no passado. E as mulheres carentes afugentam os homens. Quanto a isso, não
restava a menor dúvida. Portanto, para não afugentá-los, você tem que fingir que
não é carente. Mesmo quando está sendo posta para fora do apartamento deles
de manhã e eles dizem "Até qualquer hora", você não deve se virar e suplicar na
cara deles "QUANDO? HOJE À NOITE? AMANHÃ? QUANDO, QUANDO,
QUANDO?" Você deve apenas dizer "Hummm, até qualquer hora", passar uma
garra impecavelmente bem-feita na barba por fazer dele e evolar-se numa nuvem
de inequívoca auto-suficiência.
Eu queria agir como se fosse forte, mesmo não sendo. Mudar os velhos
padrões de comportamento. Exatamente como me haviam dito para fazer.
Virtuosa foi a Rachel que se virou com um sorriso para Chris.
— Nós podíamos... sei lá... ir ao cinema? — sugeriu ele.
Não era o que eu queria ouvir.
Cinema?
Cinema, porra?
Eu estava reduzida a isso?
Não, ainda não estava derrotada. Podiam tirar meu Valium, minha
cocaína, meus cartões de crédito, mas nunca poderiam tirar minha alma. Ou
meu apetite.
— Podíamos ir comer alguma coisa — disse eu, entusiasmada. Luke e
eu tínhamos passado alguns dos nossos melhores momentos em restaurantes.
— Isso nós ainda temos permissão para fazer, não temos?
— Temos — concordou ele. — Contanto que nenhum dos dois vomite
logo depois ou peça cinco sobremesas ou qualquer outro comportamento
anômalo.
— Aonde nós vamos? — perguntei. Estava encantada. Imaginava um
pequeno bistrô romântico, com sua penumbra de velas. Nossos rostos próximos,
à luz dos castiçais. Conversando até de madrugada, sob o olhar carinhoso do
maitre gorducho, com todas as outras cadeiras do restaurante empilhadas em
cima das mesas, Chris e eu continuando a conversar, entusiasmados, sem nos
darmos conta.
— Vamos dar uma volta por aí e ver onde vai dar — sugeriu ele.
Enquanto vagávamos, eu não conseguia parar de pensar no que tinha
me dito. Que gostaria de me dar uma trepada de abalar os alicerces.
A lábia que aquele diabo tinha.
Hummm...
Não! Você não pode pensar assim.
Tá bem, não vou pensar, a razão me chamou às falas. Está certo que
ele era lindo, mas estávamos nos comportando como amigos. E estava de bom
tamanho: meus países baixos se fechariam à hipótese de fazer sexo sóbrio com
qualquer um que não fosse Luke.
Senti um vento cortante me varar, quando compreendi que nunca mais
iria para a cama com Luke. Por um átimo de segundo, esqueci meu ódio por ele.
Recobrando minha objetividade, forcei minha atenção a voltar ao aquie-
agora e a Chris.
Fomos para Temple Bar, na margem esquerda de Dublin. Onde
testemunhei o completo renascimento da minha cidade natal com meus próprios
olhos. Tinha ficado eletrizante. E linda.
Será que eu poderia viver aqui?, me perguntei. Sem dúvida estava
muito diferente da cidade que eu deixara oito anos atrás.
Diferente o bastante para você viver nela? Senti um calafrio de medo.
Se eu não ficasse em Dublin, para onde iria?
Voltar para Nova York?
Voltar a ficar cara a cara com Brigit, Luke e os outros?
Não me parecia boa idéia.
Virei-me para Chris e sorri.
Me salva.
Estávamos passando por um restaurante que achei simplesmente
perfeito. Tinha tudo, as velas, a toalha de mesa xadrez, o maitre gorducho.
Obeso, para dizer a verdade.
— Que tal aqui? — sugeri, empolgada, esperando que minha fantasia
se tornasse realidade.
— Não sei — disse Chris, abanando as mãos num gesto vago. — É
meio...
Minha vontade era entrar. Mas, em vez disso, limitei-me a sorrir,
dizendo:
— É, é sim, um pouco, não é mesmo? — Para logo em seguida ficar
com ódio de mim mesma.
Devia ter dito o que queria. Acabara de perder uma oportunidade de
mudar um velho padrão de comportamento. Além disso, pensei irritada, já
estava de saco cheio da voz descarnada de Josephine fazendo pronunciamentos
na minha cabeça.
Continuamos caminhando, passando por uma sucessão de bistrôs
românticos, iluminados à luz de velas, e Chris desprezando todos eles com um
vago "Mas não é um pouco...?".
A cada decepção, meu astral caía mais um pouco, e minhas frases
ficavam mais lacônicas e secas. Finalmente chegamos a um barracão amarelo,
de onde saía uma música ensurdecedora. Estavam tocando os Gipsy Kings a um
volume de furar os tímpanos.
—Que tal aqui? — sugeriu Chris. Sem dizer uma palavra, dei de
ombros, cada detalhe do meu comportamento gritando: "Aqui? Ficou maluco,
porra?"
— Vamos lá, então — disse ele, entusiasmado, abrindo a porta para
mim.
Babaca, pensei, furiosa.
Quando entramos, o barulho quase me derrubou no chão. Foi quando
notei que estava ficando velha, e que a Rachel sem drogas via o mundo com
olhos muito diferentes dos da Rachel com um grama de coca dando voltas na
cabeça.
Uma garota de doze anos de idade usando um poncho e um sombrero
nos recebeu com uma cordialidade tão entusiasmada, que raiava o delirante, o
maníaco. Alguém dê um comprimido de lítio para essa menina!
— Mesa para dois — disse Chris, esticando furiosamente o pescoço,
como se procurasse alguém. Enquanto éramos conduzidos pelo chão apinhado
de pernas e coberto de pó de serragem, ouvi alguém gritar "Rachel, Ra-chel".
— Rachel. — A voz se aproximou. Localizei de onde vinha, me virei e dei
com Helen. Usando uma blusa vermelha de babadinhos, uma saia curtíssima e
um sombrero pendurado nas costas. Estava carregando uma bandeja.
— Que é que você tá fazendo aqui? — indagou ela.
— Eu é que pergunto! — rebati.
— Eu trabalho aqui — disse ela, com toda a simplicidade.
— Este é o puteiro? — perguntei.
— Outros o chamam de Club Mexxx — disse ela, olhando de relance
para a delirante, que sorria de Helen para mim e de mim para Chris, como se
fosse explodir.
— Me dá aqui. — Tomou os cardápios da sorridente. — Vou botar eles
na minha seção. Agora, não pensem que vão ganhar um monte de drinques de
graça — gritou por sobre o ombro, ao que sua bunda minúscula abria caminho
por entre os pândegos e seus copos de tequila. — Sentem aqui. — Atirou os
cardápios em cima de uma mesinha bamba de madeira, do tamanho de uma
capa de disco. Em questão de segundos, minhas mãos ficaram todas espetadas
de lascas de madeira.
— Vou ter que levar umas bebidas para aquele grupo de filhos-da-puta
— explicou, com um meneio de cabeça em direção aos dezoito rapazes muito
bêbados na mesa ao lado. — Volto logo.
Chris e eu nos encaramos. Ele, com um sorriso. Eu, sem.
— Você sabia que Helen trabalha aqui? — perguntei, com a voz
trêmula.
— Como? — ele berrou acima da barulheira.
— VOCÊ SABIA QUE HELEN TRABALHA AQUI? — urrei, desabafando
um pouco da minha raiva.
— Não. — Ele arregalou os olhos. — Não fazia a menor idéia.
Senti ódio dele. Não era comigo que queria estar. Estava atrás de
Helen. Nunca ninguém queria estar comigo. Eu era apenas o
trampolim que usavam para chegar a alguma outra pessoa. Helen voltou mais
ou menos uma hora depois.
— Adios, amígdalos — cumprimentou-nos.
— Temos que dizer isso — acrescentou, com um beicinho de desdém.
— Para dar autenticidade.
— Certo — disse, em tom eficiente. — O que vão querer?
O cardápio oferecia a gororoba texano-mexicana de sempre, com feijão
frito aparecendo em toda parte.
— O que você recomenda? — perguntou Chris a ela, com os olhos
brilhantes.
— Recomendo que vocês vão a algum outro lugar, para ser franca —
disse ela. — Eles dão refeições para os funcionários da casa e, juro por Deus,
deviam pagar à gente para comer aquilo. Para quem gosta de viver no limite,
tudo bem. Horas atrás, comi um burrito que me fez ver a morte de perto. Mas, se
vocês não estiverem com instintos suicidas, experimentem ir a algum outro
lugar. Tem uma adega maravilhosa mais adiante na rua, vão para lá!
Eu já estava quase de pé, mas Chris riu e disse:
— Ah, não, já que estamos aqui, vamos ficar.
Sendo assim, pedi feijão frito, servido com feijão frito.
— E feijão frito para acompanhar? — perguntou Helen, com a caneta
na mão.
— Ah, manda ver — disse eu, mal-humorada. — Que mal pode fazer?
— O.k. — disse ela, afastando-se. — Murchas graxas, amígdalos.
— Ah, sim. — Voltou. — O que querem beber? Posso roubar um pouco
de tequila para vocês, porque é tão barata e xexelenta que eles não ligam se a
gente afanar um pouquinho. O único problema é que vocês podem ficar cegos.
Desculpem, mas se me apanharem afanando mais alguma cerveja, vou para o
olho da rua.
— Er, não, Helen, tudo bem — disse eu, com vontade de morrer de
vergonha —, mas vou tomar só uma Coca diet.
Ela me encarou como se estivesse tendo uma visão.
— COCA diet? Só Coca diet? Não, ouve só, a tequila não chega a ser tão
ruim assim, no máximo pode provocar um leve surto de esquizofrenia, mas
depois passa.
— Obrigada, Helen — murmurei —, mas Coca diet está ótimo.
— O.k. — disse ela, confusa. — E você? — perguntou a Chris.
— O mesmo para mim — disse ele, em voz baixa.
— Mas por quê? — indagou ela. — Vocês são TOXICÔMANOS, mas não
são ALCOÓLATRAS.
Todas as cabeças se viraram, até na adega maravilhosa mais adiante
na rua.
— E aí? — Era a pergunta estampada em todos os rostos. — Porque
não tomam um drinque? Que mal um drinque pode fazer? Afinal, vocês não são
ALCOÓLATRAS.
Mas não era uma boa hora para eu subir na cadeira e lhes explicar os
perigos da dependência cruzada.
— Valeu, Helen. — Chris foi o savoir faire em pessoa. — Agradeço a
oferta da tequila, mas não, obrigado.
Ela se afastou. Eu e Chris ficamos em silêncio. Estava me sentindo
muito, muito deprimida. Só podia presumir que ele também estivesse.
Por fim, comecei a sentir vergonha do nosso silêncio. Contrastava de
maneira gritante com os berros escandalosos e bêbados de toda aquela gente ao
nosso redor. A sensação que eu tinha era a de que todas as pessoas no mundo
estavam se divertindo, menos eu e meu amigo, com seu copo de Coca-Cola.
Sentia ódio dele, de mim mesma, de não estar bêbada. Ou cheia de
coca, que seria o ideal.
Sou jovem demais para ser marginalizada desse jeito, pensei,
amargurada.
Tinha passado a vida inteira me sentindo excluída, e agora a sensação
se tornara realidade.
Desesperada, numa tentativa suicida de ser uma pessoa normal, forcei
uma conversa com Chris. Que não enganou a ninguém, principalmente a mim
mesma.
Em todo o recinto reinava a desinibição, a liberdade, a juventude, a
animação, a euforia. Menos na nossa mesa. Na minha retina mental, a imagem
passava de cores brilhantes e diurnas para um tom de sépia, quando eu pensava
em mim e Chris. De música de carnaval e gargalhadas para um silêncio
arrastado. Éramos dois peixes fora d'água, totalmente deslocados, um fotograma
de algum sombrio filme artístico do Leste europeu encaixado no meio de
Pernalonga Vai para Acapulco.
Muito depois, nossa comida chegou, e ambos fingimos estar deliciosa.
Ficávamos empurrando o feijão frito nos pratos e a mesa cambaia
balançava, adernando como um navio em alto-mar. Encostei o cotovelo nela e o
copo de Chris cambaleou, entornando a Coca-Cola. Ato contínuo, Chris levantou
o saleiro e o tranco provocado despachou meu garfo aos trambolhões para o
chão. Levantei o cotovelo para poder vasculhar o chão atrás dele, vendo que
Chris não ia fazer isso, o fiiho-da-mãe preguiçoso, e seu prato deslizou pela
mesa, por pouco não despencando no chão.
Muito mais tarde, depois de Helen nos oferecer sorvete, e recusarmos
— o sabor, é claro, era feijão frito —, o terrível suplício chegou ao fim, e ficamos
livres para ir embora.
Chris deixou uma gorjeta polpudíssima para Helen, e foi todo sorrisos
quando passamos por ela na saída.
Ela estava preparando drinques à base de tequila para o que parecia
ser um grupo de carcereiros em seu dia de folga. Chapou os copos de tequila e
Seven-Up na mesa, exortando-os a beber, sem muito entusiasmo, "Buena
borracharia, buena borracharia", enquanto os carcereiros viravam os copos.
Mal pude olhar para ela. O ciúme roera um buraco no lugar onde antes
ficava meu estômago. Embora ela não tivesse culpa por ter nascido tão linda e
segura de si. Mas eu não conseguia deixar de Pensar que era tudo muito injusto.
E eu? Por que não ganhava nada?

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