Em homenagem ao meu encontro com Chris, me convenci a ir a um
salão para depilar as pernas a cera ou cortar o cabelo. Não tinha dinheiro para
as duas coisas, aliás, para nenhuma das duas, de modo que optei por cortar o
cabelo. Não adiantava depilar as pernas. Como tanto Chris quanto eu estávamos
proibidos de travar conhecimento bíblico, os resultados jamais veriam a luz do
dia. Já que eu ia gastar dinheiro, queria que todo mundo ficasse sabendo.
Na manhã de terça, foi num clima de euforia e alta expectativa que
pedi a mamãe para me levar de carro até o salão The Hair Apparent, a fim de
cortar o cabelo com Jasmine. Que é que eu tinha na cabeça? Nunca, jamais, em
toda a minha vida, saí de um salão de cabeleireiro sem ter que fazer uma baita
força para refrear as lágrimas.
Mas sempre me esquecia disso. Era só depois que já estava sentada
diante do espelho, enquanto alguém levantava e soltava mechas do meu cabelo
num gesto desdenhoso, e ouvia as palavras "Deus do Céu, está um horror", que
a lembrança me voltava no ato. E aí, já era tarde demais.
Há tanto tempo que eu não fazia nada tão normal quanto ir ao salão de
cabeleireiro, que os azulejos, espelhos, toalhas e frascos do The Hair Apparent
me inspiraram uma sensação semelhante a maravilhamento. A recíproca não foi
verdadeira — a recepcionista mal se dignou me dirigir um breve olhar, enquanto
eu lhe explicava minha missão.
— Senta na pia — foi sua ordem, para logo em seguida gritar: — -
Gráinne, Gráinne, cliente na pia dois!
Gráinne não inspirava confiança. Tinha cara de ser muito jovem, Eu
não teria lhe dado mais de treze anos, se não tivesse certeza de que havia leis
proibindo esse tipo de coisa. Ela mancou até mim no alto de suas pernas de pau,
seus olhos tentando, sem sucesso, encontrar os meus.
Cambaleando, colocou uma capa em mim e enfiou um monte de
toalhas em torno do meu pescoço. Pelo visto, estava tendo um trabalhão para se
equilibrar em cima de seus saltos plataforma.
Ato contínuo, abriu as torneiras e eu me refestelei no assento. Mas,
pelo visto, o privilégio de relaxar não estava à minha espera.
— Er, onde você vai passar o Natal este ano? — perguntou Gráinne,
encabulada, como aprendera a fazer com as cabeleireiras mais velhas. Estava
claramente decidida a ganhar seu diploma em corte, tintura e conversa fiada.
— Em lugar nenhum — respondi.
— Vai ser maravilhoso — disse ela, massageando meu couro cabeludo.
Tivemos alguns curtos e felizes momentos de silêncio.
— Já esteve lá antes? — perguntou ela.
— Várias vezes.
Mais algum tempo se passou, com Gráinne escaldando meu couro
cabeludo e direcionando o chuveirinho para as minhas orelhas com tanta
freqüência, que quase entrou água no meu cérebro.
— Vai com seus amigos? — indagou ela.
— Não — tornei. — Não tenho amigos.
— Isso é ótimo — disse ela, simpática.
Enquanto Gráinne esfregava, enxagüava e condicionava, senti um
certo orgulho, pelo fato de, provavelmente, ainda parecer uma pessoa comum.
— Quem é que vai pegar você hoje? — perguntou Gráinne.
Achei sua maneira de se expressar bastante infeliz.
— Jasmine.
— Vou buscar... — Deu uma risadinha estranha, mas, contanto que o
alvo não fosse eu, por mim, tudo bem — ... a Jasmine para você.
E lá se foi ela, cambaleando, o corpo todo inclinado para a frente por
causa dos sapatos, aos gritos de "Maura, Maura, sua cliente já tá pronta".
Reconheci Jasmine/Maura assim que a vi, e não apenas por ter sido
ela quem havia cortado meu cabelo quando eu passara o Natal na Irlanda. Sua
cara estava tão lambrecada de base moreno-escura, que, com seu cabelo louroclaro,
ela parecia um negativo. Um rosto meio difícil de se esquecer.
Ao passar por Gráinne, deteve-se para lhe dirigir algumas palavras
irritadas, provavelmente proibindo-a de chamá-la de Maura.
Ela não deve ter me reconhecido, porque, quando fez o número de
levantar e soltar as mechas, disse, em tom indignado, com um forte sotaque de
Dublin:
— Meu Deus! Quem foi que fez seu cabelo da última vez? Tá um troço.
— Cortei aqui mesmo. — Encolhi-me de vergonha, tendo que me
esforçar ao máximo para não falar como ela. Estava com vergonha da minha
dicção classe média, temendo que ela pensasse que eu me considerava superior
a ela. Queria ser o sal da terra, como Gráinne e Maura.
— Quem cortou? — indagou ela.
— Acho que foi você — murmurei.
Agora ela ia acabar com meu cabelo, como castigo. O cabeleireiro é o
profissional mais poderoso do mundo, e não é graças à delicadeza que alcança
esse poderio. Com efeito, ela passou os dedos por meus cabelos, soltando
exclamações de desaprovação e muxoxos infaustos.
— Meu Deus — dizia, indignada —, tá um troço. Que foi que você fez
com ele?
— Não sei.
— Só falta me dizer que usa secador de cabelo.
— Às vezes.
—Tá maluca? Cê não pode passar secador num cabelo quebradiço
desses. E será que alguma vez condiciona ele?
— É claro que condiciono! — Eu conhecia a cartilha do bom trato
capilar, sua mocréia burra.
— Bom, vou ter que acreditar na sua palavra. — Ela me encarou,
estreitando os olhos.
— Quando digo que condiciono — me agitei na cadeira —, não quero
dizer com isso que faça touca, com óleo quente, toalha quente, esse tipo de
coisa. Mas uso um condicionador comum toda vez que lavo o cabelo.
— Sei — disse ela, de lábios apertados. — Bom, precisa urgentemente
começar. Com um cabelo seco como o seu, cê precisa de um condicionador sério.
Calou-se.
Esperei.
Já sabia o que vinha por aí.
— A gente tem uma linha de produtos — disse ela, no ato.
Preparei-me para a indefectível ladainha comercial. Pesquei uma ou
outra expressão, do tipo "Testados em laboratório", "Agentes exclusivos",
"Nutrientes vitais", "Fórmula nutritiva", "Sua única esperança".
— Quanto?—perguntei. Era um preço exorbitante.
— Ótimo — engoli em seco. — Vou fazer.
— Você vai mesmo precisar do xampu, da musse, do condicionador que
dispensa enxágüe, do soro que não deixa encrespar e do...
— Um minuto — disse eu, me preparando para pronunciar as palavras
mais difíceis que já tivera de dizer na vida. Respirei fundo e soltei: — Não posso
pagar uma coisa dessas.
Ela fixou meus olhos no espelho. Eu sabia que não acreditava em mim.
Sabia que estava pensando: "Sua filha-da-puta burra e esnobe".
Esperei que me agarrasse pelo pescoço e berrasse, "E MINHA
COMISSÃO?" Mas ela não fez isso. Tentei me convencer de que não havia
nenhuma razão para me sentir culpada. Mas não adiantou.
— Cê que sabe, se não quer os produtos... — disse Jasmine, de má
vontade. — Eu, pessoalmente, acho que vale a pena. Mas cê que sabe.
— Estou desempregada — expliquei, na esperança de que ela
abrandasse comigo.
Ela atirou a cabeça para trás, desdenhosa, como uma esposa furiosa
que não dá à mínima para o marido que tenta se desculpar com ela.
— Quanto quer que tire de comprimento? — indagou, com frieza.
— Só uma aparadinha, por favor.
— Não — disse ela.
—Não?
—-Pelo visto, não.
— Cê tá cheia de pontas duplas até aqui em cima. Vai ter que cortar
até aqui. — Indicou uma região próxima aos ombros.
Não, Jasmine, tudo menos cabelo curto. Tenha piedade de mim. for
favor.
— Não me importo se está cheio de pontas duplas quase até em cima —
garanti a ela, afável. — Sinceramente, por mim tudo bem, posso viver com isso.
— Mas tá tudo morto e quebrado. E as pontas 'tão duplas praticamente
até a raiz. Olha só! — ordenou. — Olha só! Tá vendo como tá tudo duplo até aqui
em cima?
— Estou vendo — disse eu. — Mas...
— Não, cê não tá olhando. Olhei.
— Mas não me importo — disse, quando achei que já tinha olhado o
bastante. — Prefiro cabelo comprido com pontas duplas a cabelo curto sem
pontas duplas.
— Não dá — disse Jasmine. — Cê não pode sair por aí com cabelo
cheio de pontas duplas. Não tá se usando.
Fomos interrompidas por Gráinne.
— Maura — disse para Jasmine —, mamãe tá no telefone, dizendo que
não pode tomar conta do Elroy hoje à noite, e que é procê ir prá casa.
— Foda-se, hoje eu vou tomar todas, cê vai ter que ficar com ele.
— Mas...
— Quer encontrar seu emprego no mesmo lugar quando chegar aqui
amanhã?
— Ah — fez Gráinne, a resignação estampada no rosto, e afastou-se,
mancando.
Fixei os olhos de Jasmine no espelho,
— Minha irmã — disse ela, a título de explicação.
Sorri, nervosa.
— Então, tamos combinadas — disse ela, impaciente. Talvez desse
tudo certo, pensei. Um novo começo, cortando fora a madeira morta e os cabelos
mortos do passado. Avançando em direção a um futuro honesto e saudável, com
um cabelo honesto e saudável.
Helen levantou o rosto quando entrei em casa.
— Ué, você tá com cabelo de senhora — disse, surpresa. — Por que
pediu cabelo de senhora?
— Não pedi — gritei.
Corri até o espelho para ver se estava tão ruim quanto eu me lembrava.
Eu estava com um anel branco rente à raiz dos cabelos, onde a base saíra com a
água. E olheiras cinzentas. Mas o pior de tudo é que estava com cabelo curto e
cacheado. Jasmine tinha sido bastante liberal com a tesoura, deixando meu
cabelo muito acima dos ombros. E, como se minha desgraça já não fosse
completa, tinha feito uma escova no cabelo, enrolando-o em cachinhos pequenos
e apertados.
— Tô feia de doer — chorei. Lágrimas grossas, sentidas.
— Tá mesmo — concordou Helen.
Gostei que ela concordasse comigo. Se mamãe estivesse presente e
dissesse "Vai crescer", eu provavelmente estaria tendo uma crise histérica.
Pensei nos metros e metros de meu cabelo no chão, os cabelos em que
Luke emaranhava suas mãos, e chorei com mais força ainda.
— Minha vida acabou — eu soluçava convulsamente.
— Você não devia mesmo sair de casa durante algum tempo — disse
Helen.
Ao ouvir isso, quase dei um chilique. Sair! Eu tinha um encontro com
Chris na noite seguinte! Mas como podia ir, agora que estava quase careca?
— Que ódio que eu tô sentindo dela — arquejei. — Filha-da-puta burra,
gorda, com aquela cara toda pintada. Tenho ódio de todas as cabeleireiras.
—Espero que você não tenha dado gorjeta para ela — disse Helen.
— Deixa de ser burra, porra — solucei. — É claro que dei gorjeta para
ela.
Não devia ter dado nada a Jasmine, com exceção, talvez, de um olho
roxo, mas não me contive. Até murmurei "Está lindo", quando ela fez aquela
clássica exibição do produto final, com um espelho à frente e outro atrás.
Consegui me segurar até já estar na rua, antes que as lágrimas
começassem a escorrer livremente por meu rosto. Parei no ponto de ônibus,
chorando e me sentindo nua sem meu cabelo. Tinha certeza de que todo mundo
estava olhando para mim e, pela primeira vez na vida, minha paranóia não era
infundada.
— Quem é aquela com cabelo esquisito? — ouvi alguém dizer. E,
quando me virei, topei com um bando de colegiais me analisando atentamente,
para em seguida caírem na gargalhada. Garotos de quatorze anos no seu apogeu
hormonal, e estavam rindo de mim!
— E era tão lindo — solucei para Helen.
— O quê?
— Meu cabelo — chorei. — Até aquela filha-da-puta botar as mãos
nele.
— Bom, era razoável — disse Helen. — Eu não diria lindo, mas...
— E não me deram nem uma revista Hello para ler — chorei.
— Safados — comentou Helen, solidária.
— E o puta preço que paguei! — gritei. — Meu couro cabeludo não foi a
única coisa que ficou vazia.
— Sabe com quem você tá parecendo? — disse Helen, pensativa.
— Quem? — perguntei, trêmula, na esperança de uma comparação
redentora.
— Com Brenda Fricker.
— AAAAaaarrrrggghhhhh.
— Você sabe, aquela que fez a mãe naquele filme — disse ela.
Corri para o espelho.
— Tem razão — ululei, quase feliz com o fato de as coisas terem
atingido um clímax tão apocalíptico. Isso conferia uma legitimidade irrefutável à
minha condição.
Mamãe e papai voltaram para casa e foram convidados a dar seu
parecer sobre meu cabelo aniquilado.
— Vai crescer — disse mamãe, com ar inconvicto.
— A cada dia que passa, você se parece mais com a sua mãe disse
papai, em tom orgulhoso e afetuoso. Tornei a abrir um berreiro.
— Sabe com quem você está parecendo? — perguntou mamãe.
— Se você disser Brenda Fricker, eu me mato — avisei a ela, meus
olhos brilhando, vermelhos.
— Não, nada disso — disse ela, carinhosa. — Não, como é mesmo o
nome dela? Uma atriz. Como é o nome dela?
— Audrey Hepburn? — perguntei, esperançosa.
— Nããão. — Mamãe agitava as mãos, frustrada. — Ah, como é o nome
dela?
Me perguntei se conhecia Linda Fiorentino.
— Linda Fiorentino? — arrisquei. (Uma vez, um homem numa festa
disse que eu parecia Linda Fiorentino, e fiquei tão comovida que dormi com ele.)
— Quem? Linda quem? Não! — Mamãe dançava uma gigazinha, numa
tentativa de fazer a memória pegar no tranco. — Está na ponta da língua. Ah,
em que filme ela trabalhou?
— A Última Sedução?
— Esse tem pinta de ser indecência grossa. Não, não foi esse. Ah,
lembrei! Ela fez aquele filme com Daniel Day-Lewis...
Comecei a murchar.
— ...você sabe, aquele pobre-diabo que era pintor... Christy Brown!
Meu Pé Esquerdo, é esse, é esse! — Ficou eufórica de alívio.
—Como é o nome da mulher que fazia o papel da mãe dele?
— Brenda Fricker — respondi, apática.
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