quarta-feira, 6 de julho de 2011

Férias!! - MARIAN KEYES Cap.56


Os dias se passaram.
As pessoas vinham e iam. Clarence e Frederick foram embora. Assim
como a coitada da Nancy, a dona-de-casa catatônica viciada em tranqüilizantes.
Até o seu último dia, o pessoal não parava de segurar um espelho diante do seu
rosto, para ver se ela ainda estava respirando. E brincávamos que compraríamos
para ela um kit de sobrevivência para o mundo exterior, a saber, um walkman e
uma fita com as palavras "Inspira, expira, inspira, expira" gravadas uma vez
atrás da outra. Por algum motivo, eu desconfiava que Nancy não constaria do
folheto do Claustro como um de seus casos bem-sucedidos.
Mike foi embora, mas não antes de Josephine fazê-lo chorar pela morte
do pai. A expressão em seu rosto era qualquer coisa — ela sorria como aquele
cara no fim do seriado The A Team. Numa outra dimensão, ouvi-a dizer,
vitoriosa: "Adoro quando um plano dá certo." (Bordão que o personagem
Hannibal, interpretado pelo ator George Peppard no seriado norte-americano The
A Team, pronunciava ao fim de cada episódio, com um sorriso irônico e um
charuto entre os dentes).
Nos dez dias seguintes, o cadete espacial Fergus e o balofo Eamonn
também foram embora.
Quase uma semana depois da visita de Luke e Brigit, recebemos dois
novos internos, coisa que, como sempre, gerou um clima de grande excitação.
Um deles era uma gordota chamada Francie que falava alto demais e
sem parar, atropelando as palavras. Não consegui desgrudar os olhos dela.
Tinha cabelos louros até o ombro, com dois dedos de raízes pretas aparecendo,
um espaço entre os dentes da frente tão largo que dava para passar um
caminhão entre eles e uma base vagabunda, mal espalhada, vários tons escura
demais para sua pele. Como se não bastasse, usava uma saia vermelha justa
demais, com a bainha desfeita.
A primeira coisa que me passou pela cabeça foi: "Como essa mulher é
desleixada." Mas, em questão de segundos, ela já conhecia todo mundo, atirava
cigarros para o pessoal, contava piadas que só eles entendiam e estava íntima de
todos. Para minha grande ansiedade, percebi que era dona de uma sensualidade
tão inegável quanto inexplicável. Senti o terrível medo, já meu conhecido, de que
Chris deixasse de me dar atenção.
Sua postura, andar e gestos eram de uma deusa. Ela nem parecia
notar o volume redondo de sua barriga estufada sob a horrenda saia justa. Eu
teria arrancado os cabelos. Morta de ciúmes, olhava para ela e para Chris
olhando para ela.
Quando ela viu Misty, soltou um gritinho e berrou:
— Que é que tá fazendo aqui, 0'Malley, sua esponja?
— Francie, sua grande pinguça — saudou-a Misty, eufórica, sorrindo
pela primeira vez em quase uma semana. — O mesmo que você.
Mais tarde, fiquei sabendo que as duas tinham estado no Claustro na
mesma época, no ano anterior. A turma de 96.
— Você já esteve aqui? — perguntou alguém, chocado.
— Claro, já estive em todos os centros de reabilitação, hospitais
psiquiátricos e presídios da Irlanda — disse ela, soltando uma gargalhada
escandalosa.
— Por quê? — perguntei, sentindo uma estranha atração por ela.
— Porque sou doida. Esquizofrênica, maníaca, iludida, traumatizada,
tudo a que tenho direito. Olha só — disse ela, enrolando suas mangas —, olha
só essas lacerações! Tudo trabalho da mamãe aqui.
Seus braços eram um caos de cortes e cicatrizes.
— Olha aqui uma queimadura de cigarro — apontou, em tom casual. —
E mais outra aqui.
— Que foi que aconteceu com você dessa vez? — perguntou Misty.
— O que não aconteceu! — declarou Francie, revirando os Olhos. — Eu
não tinha nada prá beber, a única coisa que tinha em casa era álcool metílico
pras patas do cachorro, daí peguei e bebi. Quando dei por mim, tinha passado
uma semana — eu tinha perdido uma semana inteira, dá prá acreditar? Nunca
tinha feito isso antes — e, quando voltei a mim, tava sendo currada por um
bando de caras perto de Liverpool! — Interrompeu-se para recobrar o fôlego
antes de retomar o fio da meada: — Dada por morta, hospitalizada, com uma
pílula do dia seguinte no bucho, presa, deportada, mandada de volta prá
Irlanda, no momento em que pisei no país, me mandaram prá cá. E cá estou eu!
O aposento inteiro fizera silêncio, todos os homens presentes com uma
expressão inequívoca de quem desejaria estar entre os caras perto de Liverpool.
— Cê tá aqui por quê? — me indagou ela, animada.
— Drogas — respondi, deslumbrada com ela.
— Huuuum, são o que há — balançou a cabeça, a boca franzida em
sinal de aprovação. — Cê vai às reuniões dos NA? — perguntou. Como fiz uma
cara perplexa por um segundo, ela explicou: — Narcóticos Anônimos. Santo
Deus, vocês, novatos!
— Só as daqui — disse eu, quase em tom de desculpas.
— Ah, não! Não valem nada. Espera só até ir às lá de fora. — Inclinouse
em minha direção e continuou a tagarelar: — Cheias de caras. Cheias! Os NA
têm homem a dar com o pau, nenhum deles com mais de trinta, e todos loucos
prá partir pro abraço. Você vai poder escolher à vontade. Os AA não chegam nem
aos pés dos NA. Um monte de mulheres e velhos.
Até então, as reuniões dos Narcóticos Anônimos tinham me causado
muito pouca espécie. Em geral, me davam sono. Mas fiquei fascinada com o que
Francie me disse.
— A que reuniões você vai, as dos AA ou as dos NA? — perguntei
usando as iniciais dos iniciados.
— Todas elas — riu Francie. — Sou viciada em tudo. Bebida,
calmantes, comida, sexo...
A luz que se irradiou dos olhos de cada homem presente ao ouvir a
última palavra pronunciada por Francie quase provocou um incêndio no
refeitório.
Com todo o auê causado por Francie, o outro interno novo
praticamente passou despercebido. Foi só depois que Francie e Misty se
afastaram para matar as saudades, que prestamos atenção nele. Era um homem
de idade chamado Padraig, tão trêmulo que não conseguia sequer pôr açúcar no
seu chá. Quando vi, horrorizada, o açúcar cair todo da colher antes de alcançar
a xícara, Padraig tentou fazer graça, dizendo "Confete".
Sorri, sem conseguir ocultar a pena que me inspirava.
— Por que você está internada? — ele me perguntou.
— Drogas.
— Sabe — ele se aproximou de mim, e me esforcei para não recuar do
bafo —, eu não devia estar aqui de jeito nenhum. Só me internei para minha
mulher largar do meu pé.
Olhei para ele: trêmulo, malcheiroso, com a barba por fazer, acabado.
Chocada, me perguntei, será que estamos todos enganados quando dizemos que
não há nada de errado conosco? Todos nós?

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