Com as chocantes revelações de Misty, toda a enorme atenção que me
fora dispensada deu uma freada brusca. Os abusos que ela sofrera na infância
constituíam uma superprodução hollywoodiana que ocupou toda a sessão de
sexta e boa parte da semana seguinte. Todo mundo voltara a atenção para ela,
que tinha crises de ódio e choro, aos gritos e uivos.
Quase com uma sensação de anticlímax, descobri que a vida no
Claustro continuou praticamente como antes da apocalíptica visita de Brigit e
Luke. Tá, confesso, o tempo todo tinha fantasias em que matava os dois. Mas
ainda freqüentava as sessões de grupo, fazia minhas refeições, discutia e
brincava com os outros. Ia à minha reunião dos Narcóticos Anônimos na noite
de terça, à aula de culinária na manhã de sábado e participava dos jogos de
sábado à noite. Mas, principalmente, vigiava Chris. Ficava frustrada com o fato
de ele se mostrar tão escorregadio, porque, embora quase sempre me tratasse
bem, era apenas até um certo ponto. Eu esperava que a essa altura ele já tivesse
me dado uma prensa, mas nunca aconteceu. E o que realmente me incomodava
era que ele tratava Misty bem — às vezes, bem até demais, temia eu.
Apesar de sua esquivez, ele me ouvia pacientemente quando eu gritava
feito uma histérica que Luke e Brigit eram dois filhos-da-mãe mentirosos. Na
verdade, todos os internos me ouviam, embora eu suspeitasse que fizessem isso
apenas para me agradar. Não pude deixar de me lembrar do dia em que Neil
ficara furioso com Emer. De como a tinha xingado de todos os nomes, e todo
mundo dera tapinhas carinhosos em suas costas, concordando com ele,
mansamente.
Foi Chaquie quem me impediu de entrar em parafuso. Ficava acordada
me fazendo companhia, quando eu não conseguia dormir, tal a fúria que sentia.
Felizmente, sua fase de pavio curto parecia ter passado. Tanto melhor, porque
não havia espaço para duas doidas num quarto pequeno como o nosso.
Eu estava com muito mais raiva de Luke do que de Brigit. Mas também
me sentia muito confusa. Quando vivíamos em Nova York, Luke era carinhoso e
meigo comigo. Eu não conseguia aceitar a mudança. O contraste era demais
para mim.
Com um tormento acridoce, ficava me lembrando dele no auge de seu
amor por mim, em novembro passado, quando eu ficara gripada. Não conseguia
parar de tirar a lembrança do baú, desembrulhando-a como se fosse uma
relíquia de família e estreitando-a contra o peito.
Brigit estava passando uma semana em New Jersey, fazendo um curso
para aprender a mandar e desmandar nas pessoas com mais eficiência. Uma
conferência sobre pontapés na bunda ou coisa que o valha. Naturalmente, no
instante em que ela saiu, Luke chegou com uma toalha de rosto e um
suprimento de cuecas para uma semana. De que adianta ter um apartamento
vazio, se a pessoa não multiplicar suas chances de fazer sexo em cada aposento
sem medo de ser interrompida?
Foi maravilhoso. Quase como se fôssemos casados, salvo pelo fato de
que eu ainda estava respirando. Toda noite voávamos para casa, caíamos nos
braços um do outro, preparávamos o jantar, tomávamos longos banhos e
fazíamos amor no chão da cozinha, do banheiro, da sala, do vestíbulo e do
quarto. Saíamos juntos de manhã e tomávamos o mesmo trem para ir trabalhar.
Ele sempre separava o dinheiro da passagem do metrô para mim. Quando descia
antes de mim no centro da cidade, me beijava à vista de todo mundo no trem A,
dizendo: "Até de noite, hoje é minha vez de cozinhar." Felicidade doméstica.
Na quarta-feira, passei o dia inteiro me sentindo meio indisposta. Mas,
como já estava habituada a me sentir um bagaço no trabalho, não prestei muita
atenção a isso. Foi só na caminhada da estação do metrô até em casa que
comecei a me sentir realmente estranha. Quente, embora sentisse frio, com o
corpo dolorido e a cabeça meio aérea.
Subi cambaleando as escadas do apartamento, as pernas quase
paralisadas. No alto do lance, Luke escancarou a porta da frente abriu um largo
sorriso para mim e disse: "A comida já deve estar chegando. Não sabia se
comprava milkshake de chocolate ou de morango para você, então comprei os
dois. Agora, vamos tirar essas roupas molhadas!"
Ele sempre dizia isso, muito embora, é claro, minhas roupas não
estivessem molhadas.
— Ora, ora — me censurou, desabotoando minha capa de chuva Diana
Rigg —, você está molhada até os ossos!
— Não, Luke — protestei, sem forças, me sentindo como se fosse
desmaiar.
— Nem mais uma palavra, mocinha — insistiu ele, puxando o zíper de
minha jaqueta até embaixo com um "zzzzzz", em seguida puxando-a pelos
ombros.
— Luke, eu estou me sentindo um pouco... — tentei de novo.
— Quer apanhar uma pneumonia? — perguntou ele. — É isso que vai
acabar acontecendo com você, Rachel Walsh. — A essa altura, ele já tinha
chegado ao meu sutiã. — Encharcado! — declarou, abrindo-o com destreza.
Normalmente, nesse ponto eu já estaria para lá de acesa e poderia até
começar a tirar algumas roupas dele. Mas não nesse dia.
— Agora, sua saia — disse ele, tateando o botão no cós. — Meu Deus,
está ensopada, deve estar chovendo a cântaros...
Ele deve ter notado que eu não estava reagindo com o entusiasmo
habitual, porque hesitou e, por fim, se deteve.
— Você está bem, gata? — perguntou, subitamente ansioso.
— Luke — disse eu, com muito esforço —, estou me sentindo meio
estranha.
— Estranha como? — ele perguntou, alarmado.
— Acho que talvez esteja doente.
Ele encostou a mão na minha testa e quase desmaiei de prazer, com o
contato de sua mão fresca na minha pele ardente.
— Meu Deus! — declarou ele. — Você está pelando. Ah, gata — disse,
com um ar arrasado —, me perdoe por tirar suas roupas... — Enrolou
desarvorado o sutiã em volta de meus ombros, e fez menção de tornar a vestir
minha capa de chuva.
Vem para perto da lareira — ordenou.
— A gente não tem lareira — objetei, num fio de voz.
— Eu arranjo uma — disse ele. — Tudo que você precisar, eu arranjo.
— Acho que quero ir para a cama — disse eu. Minha voz parecia vir de
muito, muito longe.
Por um momento, seus olhos se iluminaram:
— Maravilha!
Só então compreendeu o que eu queria dizer.
— Ah, sim, claro, gata.
Tirei de qualquer jeito o resto de minhas roupas, jogando-as no chão.
Embora não precisasse estar gripada para fazer isso. Então, subi na cama, entre
os lençóis fresquinhos, fresquinhos. Por um momento, me senti no paraíso. Devo
ter cochilado, porque, quando dei por mim, Luke estava de pé, à minha frente,
com um monte de milkshakes.
— Chocolate ou morango? — ofereceu.
Em silêncio, fiz que não com a cabeça.
— Eu sabia — disse ele, dando um tapa na testa. — Devia ter pedido
de baunilha!
— Não, Luke — murmurei. — Não estou com fome. Não quero nada.
Acho que estou morrendo. — Esbocei um débil sorriso.
— Não diz isso, Rachel — ordenou ele, com uma expressão angustiada.
— Não se deve brincar com essas coisas, atrai.
— Deve-se brincar com tudo, o máximo que atrai é uma mijada —
murmurei. Era o que Helen sempre dizia.
— Você vai ficar bem se eu sair um pouco? — perguntou ele, carinhoso.
Devo ter feito uma expressão horrorizada.
— Só para ir até a drogaria — apressou-se em explicar. — Comprar
umas coisas para você.
Voltou meia hora depois trazendo a drogaria inteira dentro de um saco
de papel enorme, desde um termômetro até revistas, barras de chocolate e
xarope para tosse.
— Não estou com tosse — disse eu, fraca.
— Mas pode ficar — observou ele. — É melhor estar preparada.
Agora, vamos tirar sua temperatura.
—TRINTA E NOVE! — gritou, alarmado. Aflitíssimo, começou a enfiar
as pontas do edredom por baixo de mim, até sob meus pés agasalhando-me num
pequeno casulo.
— A mulher na drogaria disse que era para manter você aquecida, mas
você já está quente — murmurou ele.
Por volta da meia-noite, minha febre era de quase quarenta graus, e
Luke chamou um médico para me ver. Um médico em Manhattan cobrava por
uma visita em casa o equivalente ao preço de um apartamento de três quartos.
Luke devia mesmo me amar muito.
O médico se demorou três minutos, diagnosticou uma gripe — "Gripe,
mesmo, gripe no duro, não só um resfriado forte" —, disse que não havia nada
que pudesse me receitar, limpou a carteira de Luke e foi embora.
Durante os três dias seguintes, fiquei um caco. Delirante, sem saber
onde estava ou que dia era. Dolorida, suando, tremendo, fraca demais para me
recostar sem ajuda e bebericar o Gatorade que Luke empurrava na minha boca.
— Tenta, gata — insistia. — Você precisa de líquidos e glicose.
Luke tirou a quinta e a sexta de licença no trabalho para cuidar de
mim. Sempre que eu voltava a mim, ele estava por perto. Ou sentado numa
cadeira no meu quarto, me observando, ou, às vezes, no quarto ao lado, ao
telefone, com os amigos. "Gripe, mesmo", ouvi-o se gabar, várias vezes. "Gripe no
duro. Não só um resfriado forte. Não, nada que possam receitar para ela."
Na noite de sábado, me senti melhor o bastante para ser embrulhada
no edredom e carregada, carregada, para a sala, onde ele me deitou no sofá.
Tentei assistir à televisão, mas não agüentei mais do que dez minutos. Nunca
tinha me sentido tão valorizada na vida.
E agora, olha só para a gente. Melhores inimigos. Como podia ter dado
tudo tão errado?
Membros sortidos da minha família vieram me visitar no domingo.
Com olhos franzidos, cumprimentei mamãe e papai, quando se aproximaram,
vergados sob o peso dos doces que traziam. Olha só para eles, os filhos-da-mãe,
pensei. Tentando me subornar com chocolate. Quer dizer então que eu sou
burra, não é? Quer dizer então que eu sou alta demais, não é?
Pareceram não se dar conta das vibrações venenosas que eu emitia
para eles. Afinal, nossas conversas eram sempre difíceis, e aquele dia não foi
exceção à regra.
Helen também resolvera me visitar de novo. Eu estava extremamente
desconfiada de seus motivos, e fiquei de olho tanto nela quanto em Chris, para
ver se os dois se entreolhavam mais do que o normal. Embora ele tivesse sido
atencioso comigo desde a noite em que o pegara consolando Misty, sempre me
sentia nervosa e insegura em relação a ele.
A visita surpresa de domingo foi Anna! Fiquei emocionada de vê-la. Não
só porque era uma pessoa legal, é claro, mas porque me daria algumas das
drogas tão desejadas.
Trocamos abraços apertados. Ato contínuo, ela pisou na bainha da
saia e tropeçou. Embora fosse muito parecida com Helen, pequena, de olhos
verdes, com cabelos pretos e compridos, não tinha um pingo da autoconfiança
de Helen. Era a rainha dos tropeções, tombos e esbarrões em objetos. A grande
quantidade de drogas que costumava ingerir tinha algo a ver com o fato de não
ser muito boa das pernas.
Helen estava em grande forma, brindando todos com um caso
estrelado por um grupo de escriturários que não conseguiram trabalhar no dia
seguinte, após uma visita ao Club Mexxx. Para todos os efeitos, em conseqüência
de uma intoxicação alimentar.
— Estão ameaçando entrar na justiça — disse ela, alegre. — E eu
espero que aquele mão-de-vaca do Club Mexxx, que paga um salário de merda
para a gente, vá à falência. É claro que a gente sabe que os caras vomitaram as
tripas por causa da ressaca. Intoxicação alimentar é uma desculpa tão óbvia
para ressaca, que chega a ser constrangedora. É a que Anna sempre usa. E a
que eu também usaria, só que nunca tive um emprego antes.
Finalmente consegui ficar a sós com Anna.
— Tem algum bagulho aí com você? — perguntei, em voz baixa.
— Não — sussurrou ela, corando.
—Bom, nesse caso, que é que você trouxe?
— Nada.
— Nada? — repeti, aturdida. — Mas por quê?
— Eu larguei — disse ela, em voz baixa, evitando meus olhos.
— Largou o quê?
— Você sabe... as drogas.
— Mas por quê? — insisti. — Estamos na Quaresma?
— Não sei, pode até ser, mas não é essa a razão.
— Bom, então qual é? — Eu estava horrorizada.
— Porque não quero acabar como você — disse ela. — Quer dizer, num
lugar desses! — corrigiu-se, aflita. — É isso que eu quero dizer, não quero
acabar aqui!
Fiquei arrasada. Totalmente arrasada. Nem Luke tinha me magoado
tanto. Tentei recompor meu rosto, para que ela não percebesse meu sofrimento,
mas estava arrasada.
— Desculpe — disse ela, com uma expressão infeliz. — Não quero te
magoar, mas, quando você quase morreu, fiquei com um medo horrível...
— Tudo bem — disse eu, curta e grossa.
— Ah, Rachel — ela gemeu baixinho, tentando segurar minha mão,
para impedir que eu me afastasse. — Não fica com raiva de mim, só estou
tentando explicar...
Dessa vez, me desvencilhei dela e, tremendo feito vara verde, fui para o
banheiro, para me acalmar.
Não podia acreditar! Anna, logo Anna, tinha se voltado contra mim. Ela
achava que eu tinha um problema. Anna, a única pessoa com quem eu sempre
podia me comparar e dizer: "Bom, pelo menos não estou tão mal quanto ela."
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