Meu mundo ainda demorou duas semanas inteiras para desmoronar
após a visita de Luke e Brigit.
Nesse período, levei dois trancos de advertência, dois mensageiros
sísmicos enviados com antecedência para me avisar que uma reviravolta estava
a caminho.
Mas em nenhum momento identifiquei a relação entre um e outro. Não
consegui enxergar o gigantesco terremoto que se aproximava.
E que, não obstante, aconteceu.
O que Francie tinha me dito sobre todos os homens jovens nos NA fez
com que eu me interessasse muito mais pela reunião da noite de terça do que
jamais me interessara antes. Caso as coisas não dessem certo entre mim e
Chris, era bom saber onde encontrar um bom carregamento de homens, e
conhecer o protocolo correto.
Lá fomos nós em tropel: Chris, Neil, mais dois outros e, é claro, francie.
Aquela noite ela estava usando um chapéu de palha e um vestido estampado de
flores, comprido, todo abotoado, os botões quase saindo das casas, repuxando o
tecido para os lados, revelando um colo coberto de espinhas e um par de coxas
cheias de celulite.
Embora ela estivesse no Claustro há pouco mais de um dia, eu já a
vira vestindo umas vinte roupas diferentes. No café da manhã, usara um colete
de couro e um par de calças jeans justíssimas, enfiadas para dentro de botas de
salto agulha. Para a sessão de grupo da manhã, um tailleur laranja da década
de oitenta, com umas ombreiras parecendo aquelas dos jogadores de futebol
americano. Para a sessão de grupo da tarde, uma minissaia de vinil e uma
frente-única de napa rosa-choque. Enfim, peças de vestuário variadas, cujas
únicas características em comum eram a vulgaridade, o mau caimento e a
contundente incompatibilidade com a silhueta da usuária.
— Tenho milhões de roupas — gabou-se ela comigo.
Mas de que adianta, se são todas hediondas?, eu estava roxa para
perguntar.
Subimos as escadas rumo à Biblioteca, todos de alto astral, mais alto
do que merecia estar, considerando o lugar para onde estávamos indo.
Apesar do blablablá de Francie, a pessoa enviada pelos NA não foi um
homem. Foi Nola, a linda loura com o sotaque de Cork — a que eu pensara que
fosse uma atriz —, que estivera na minha primeira reunião.
— Oi, Rachel. — Ela me deu um sorriso deslumbrante. — Como vai?
— Vou indo — murmurei, lisonjeada por ela se lembrar de mim. — E
você, como vai? — Queria manter a conversa, porque sentia uma estranha
atração por ela.
— Ótima, obrigada — respondeu, com outro sorriso que me aqueceu o
coração.
— Não liga prá ela — cochichou Francie. — Os encontros no mundo
real estão cheios de caras.
— Me desculpem — pediu Nola, quando todos já tínhamos nos sentado.
— Sei que alguns de vocês já ouviram minha história antes, mas a moça que
deveria vir hoje à noite teve uma recaída e morreu.
O choque me deixou dura feito uma pedra, e olhei em volta,
desesperada, à procura de alguém que me confortasse. Neil olhou para mim,
preocupado. "Você está bem?", perguntou por mímica labial. Para minha
surpresa, parecia não estar mais furioso. Não apenas isso, como eu também não
estava mais com ódio dele. Fiz um sinal afirmativo para ele, agradecida, o
coração desistindo de sair pela boca.
Em seguida, Nola começou a nos falar de sua dependência. Quando eu
a ouvira pela primeira vez, três semanas antes, tivera a convicção de que ela
estava lendo um script. Simplesmente não acreditara nela. Era bonita e bemarrumada
demais para me convencer de que já fizera alguma coisa descolada.
Mas, desta vez, foi diferente. Suas palavras tinham um tom de mansa convicção,
e fiquei fascinada com sua vida. Como nunca se achava boa em coisa alguma,
como adorava a heroína e a maneira como a fazia se sentir, como era sua melhor
amiga, como teria preferido sua companhia à de qualquer ser humano.
Eu estava me identificando totalmente com ela.
— ...até que, por fim, minha vida inteira passou a gravitar em torno da
heroína — explicou. — Como arranjar dinheiro para comprá-la, o ato de comprála
propriamente dito, a obsessão em arranjar logo um tempo para me drogar, o
trabalho para esconder tudo do meu namorado, as mentiras que contava quando
estava travada. Era uma coisa terrível, exaustiva, mas, mesmo assim, preenchia
minha vida de tal modo, que parecia totalmente normal viver nesse estado
obsessivo...
A expressão séria em seu rosto bonito e a sinceridade hipnótica de
suas palavras transmitiam o horror da roda-viva que ela vivera, o inferno de ser
escrava de uma força externa. Do nada, fui assaltada pelo primeiro minichoque,
quando o pensamento pulou dentro da minha consciência: Eu era assim.
Minha cabeça se fechou em negação, e eu voltei a afundar
confortavelmente na cadeira. Mas as palavras me agarraram e sacudiram de
novo: Eu era assim.
Lutando para recobrar a firmeza, afirmei para mim mesma, categórica,
que eu nunca fora em nada como ela.
Mas uma voz ainda mais alta observou que eu fora, sim. E meus
mecanismos de defesa, enfraquecidos por mais de um mês de bombardeio
contínuo e seduzidos pela história de Nola, começaram a se esfacelar.
Sobressaltada, descobri que estava em rota de colisão frontal com o
processo de conscientização de algumas coisas muito desagradáveis. Em um
instante, tornara-se impossível negar a consciência clara como água de que, no
passado, eu vivia pensando na cocaína, no Valium, no speed e nos soníferos; em
arranjar dinheiro para eles, em sair à cata de Wayne e Digby para comprar tudo
que meu dinheiro pudesse pagar, em seguida arranjar tempo para usá-los,
arranjar a Privacidade para consumi-los. Tendo o tempo todo que esconder
minhas compras de Brigit, escondê-las de Luke, tentar fingir que não estava
doidona no emprego, tentar trabalhar enquanto minha cabeça viajava.
Horrorizada, me lembrei do que Luke tinha dito no questionário —
quais eram suas palavras exatas? — "Se é uma droga, Rachel já usou.
Provavelmente ela já usou drogas que ainda nem foram inventadas." Fiquei com
ódio, como sempre que pensava nele e no que fizera comigo. Não queria que uma
só palavra do que dissera fosse verdade.
Senti-me furiosa, indignada, apavorada. Quase em pânico. Assim,
quando Nola disse "Tudo bem com você, Rachel? Você parece um pouco...", foi
com alívio que soltei:
— Eu também era assim, pensava nas drogas o tempo todo. Não sou
feliz — disse, com um tom um pouco histérico. — Não sou nem um pouco feliz.
Não quero ser assim.
Senti que os outros olhavam para mim, e desejei que não estivessem
presentes. Principalmente Chris. Não queria que ele fosse testemunha de minha
fraqueza, mas estava apavorada demais para escondê-la. Suplicante, olhei para
Nola, desesperada para que ela me dissesse que tudo terminaria bem.
Justiça seja feita, ela bem que tentou.
— Olha só para mim agora — sorriu, afetuosa. — Nunca penso em
drogas. Estou livre disso tudo. E olha só para você. Está aqui há — quanto
tempo faz? — quatro semanas. E não usou drogas esse tempo todo.
Não usara, mesmo. Na verdade, a maior parte do tempo eu não tinha
pensado nem um segundo em drogas. Claro, uma parte do tempo, sim. Mas não
o tempo todo, não como fizera até cinco semanas atrás.
Com isso, tive um pequeno vislumbre de liberdade, e a imagem de uma
vida diferente passou como um raio por minha cabeça, antes de eu ser atirada
de volta ao medo e à confusão.
Quando Nola estava de saída, arrancou uma página de seu diário e
anotou alguma coisa nela.
— Meu telefone — disse, entregando-a para mim. — Quando sair, me
dá uma ligada. A qualquer hora que esteja a fim de levar um papo, bate um fio.
Hipnotizada, dei a ela meu telefone também, pois parecia a coisa
educada a fazer. Então me arrastei até o refeitório, onde Eddie espalhara todas
as pastilhas de frutas de um saquinho em cima da mesa.
—Eu sabia — gritou, me dando um susto. — Eu sabia.
— O que você sabia? — alguém perguntou. Fiquei de orelha em pé.
Que Luke não tenha razão.
— Que tem mais das amarelas do que de qualquer outra cor declarou
Eddie. — E poucas pretas. Olha aqui! Duas pretas. Cinco vermelhas. Cinco
verdes. Oito laranja. E oito... nove... dez... doze, nada menos do que doze
amarelas. Isso não está certo. Todo mundo compra elas por causa das pretas e
eles engabelam a gente com essas amarelas merrecas, horrorosas.
— Não desgosto das amarelas — intrometeu-se outra voz.
— Seu filho-da-mãe anormal — disse um terceiro.
Irrompeu uma discussão violenta sobre as pastilhas amarelas, mas eu
não estava nem um pouco interessada. Estava ocupada demais tentando avaliar
a extensão dos danos na minha vida. Me perguntando, se tivesse que largar as
drogas durante algum tempo — atenção para o grande "se"! —, como agüentaria
as pontas. O que faria? Uma coisa era certa: eu nunca mais me divertiria. Não
que estivesse me divertindo muito, mesmo, verdade fosse dita. Mas, até onde eu
podia enxergar, minha vida estaria acabada. Seria o mesmo que estar morta.
Sempre havia a opção de diminuir, pensei, agarrando-me a essa última
esperança. Mas eu já havia tentado diminuir no passado, e não diminuíra. Não
conseguira diminuir, me dei conta, o medo transformando-se em pavor. Depois
que começava, não conseguia mais parar.
Outra discussão estourou perto de mim, porque Stalin sabia todas as
respostas das novas perguntas do Trivial Pursuit, para perplexidade de Vincent.
— Mas como? — Vincent não parava de se queixar. — Mas como?
— Sei lá — Stalin deu de ombros. — Eu leio os jornais.
— Mas... — disse Vincent, desesperado. Dava para notar que estava
louco para dizer: "Mas você é da classe trabalhadora, não tem como saber a
capital do Uzbequistão." Mas ele não se comportava mais assim.
Foi um alívio supremo ir dormir aquela noite, para fugir por algum
tempo de meu cérebro chocado, acelerado. Mas acordei de um pulo de
madrugada, sobressaltada, consciente de outra mudança nos pratos da minha
balança psíquica. Dessa vez era uma lembrança horrível de quando Brigit me
apanhara roubando vinte dólares de sua bolsa. Eu estava roubando, pensei,
deitada na cama. Era uma coisa indigna. Mas, na ocasião, não a achei horrível.
Não senti nada. Ela tinha sido promovida, argumentei comigo mesma, podia
passar sem vinte dólares. Agora, não conseguia compreender como chegara a
pensar uma coisa dessas.
Então, para meu sincero alívio, me senti bem outra vez.
Na manhã de sábado, antes da aula de culinária, quando Chris passou
o braço ao meu redor e murmurou "Como é que você está agora?", consegui
sorrir e responder: "Muito melhor."
É claro, ainda não conseguia dormir, pensando na maneira como me
vingaria de Luke, mas o futuro parecia mais promissor, ainda intacto. Não a
área de desastre destroçada que estava prestes a se tornar.
Mais uma vez, comecei a extrair prazer das coisas que me tinham
alegrado desde que eu viera para o Claustro, quais sejam, as discussões. Na
noite de segunda, houve uma, deliciosa, entre Chaquie e Eddie, cujo pivô era
uma pastilha de frutas. Preta. Eddie berrava com Chaquie:
— Quando disse que você podia pegar uma, não queria dizer que podia
pegar uma das pretas.
Chaquie estava nervosa e agitada:
— Bom, agora não há muito que eu possa fazer a respeito.
Espichou a língua, exibindo os restos da pastilha.
— Quer isso? — indagou, aproximando-se de Eddie com a ponta da
língua estendida. — E aí, quer?
Houve gritos de "Boa garota, Chaquie" e "Mostra a ele o que e uma boa
pastilha!".
— Caramba — disse Barry, o Bebê, em tom de admiração. — Eu quase
gosto da Chaquie, agora.
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