Hora do almoço no Claustro. Meus pais deviam chegar dentro de meia
hora, para serem meus Outros Importantes Envolvidos. Reinava a maior
azáfama no refeitório, mas isso não conseguiu me distrair da ansiedade que fazia
meu estômago dar voltas.
Tínhamos um novo interno. Um homem. Mas da classe dos gorduchos
de suéter marrom. Em outras palavras, desses que mal podem ser considerados
homens. Não que isso importasse, pois, afinal de contas, eu estava prometida
para Chris. Mesmo que Chris ainda não soubesse disso.
O nome do novo suéter marrom era Digger e as primeiras palavras que
me dirigiu foram:
— Você é famosa?
— Não — garanti a ele.
— É, não achei que fosse, mesmo — tornou ele. — Mas achei melhor
me certificar, por via das dúvidas. — Acrescentou, em tom ameaçador: — Vou
dar mais dois dias a esse pessoal e, se até lá não internarem ninguém que
preste, vou pedir um ressarcimento.
Relembrei meu começo no Claustro, quando imaginava que havia uma
ala de artistas e, em vez de tachá-lo de idiota e burro, sorri, afável.
— Ela é famosa — apontei Misty. Mas Diggy não ficou impressionado
com alguém que escrevera um livro. O que esperava era uma celebridade do
mundo dos esportes, de preferência algum jogador de futebol da primeira
divisão.
Don chegara ao final de suas oito semanas. Estávamos preparando um
cartão e um pequeno bota-fora para ele.
Frederick, que iria embora no dia seguinte, presenteou-o com o cartão
e fez um pequeno discurso.
—Você me torrou o saco até dizer chega, com seus fricotes e neuras...
Essa confissão foi recebida por um coro de gargalhadas.
— ...mas, mesmo assim, gostei muito de você. Todo mundo aqui te
deseja toda a felicidade lá fora. E, não se esqueça, fique com os sentimentos.
Mais gargalhadas. Seguidas por pedidos para que Don discursasse.
Ele se levantou, gorducho e baixote, corando e sorrindo, alisando a
camisa-de-meia por cima da barriga redonda. Respirou fundo e soltou de um
jorro:
— Quando vim para cá, achava que vocês eram todos loucos e não
queria ficar no meio de um bando de alcoólatras. Achava que não havia nada de
errado comigo.
Fiquei surpresa com a quantidade de sorrisos coniventes e meneios de
cabeça trocados pelos internos, quando Don disse isso.
— Tive ódio da coitada da minha mãe por me internar aqui. A duras
penas enxerguei como tinha sido egoísta e desperdiçado a minha vida até então.
Enfim, desejo tudo de bom para vocês. Agüentem firme, que tudo melhora. Uma
coisa eu lhes digo: não vou voltar a beber. E sabem por quê? Porque não quero
acabar aqui de novo com vocês, seu bando de babacas!
— Guarda uma cerveja para mim em Flynns — berrou Mike.
Todos riram, inclusive eu.
Seguiu-se uma profusão de abraços e lágrimas.
Alguns até foram para Don.
De repente, chegou a hora da sessão de grupo e, a contragosto,
deixamos Don sozinho no refeitório, esperando sua carona. Ele olhou para nós,
já cheio de saudades. E nos afastamos, cada um para o seu lado.
Não vou deixar que essa sessão me abale, prometi a mim mesma,
desassombrada, avançando pelo corredor. Em menos de quatro dias, vou estar
fora daqui.
Mamãe e papai já estavam sentados no Aposento do Abade, vestidos
como se fossem a um casamento. Não era todo dia que compareciam a um
centro de reabilitação para dissecar a vida de sua filha do meio.
Cumprimentei-os com um aceno de cabeça encabulado, e apresenteios
com voz sumida para Mike, John Joe e os outros.
Mamãe me deu um sorriso trêmulo e choroso. Alarmada, senti meus
olhos ficarem rasos d'água.
Nesse momento, chegou Josephine, a apresentadora do programa.
— Obrigada por terem vindo — disse ela. — Esperamos que possam
nos prestar maiores esclarecimentos sobre Rachel e sua dependência.
Encolhendo-me de vergonha, fugi de volta para a cadeira, numa
tentativa frustrada de desaparecer. Sempre detestei ouvir o que as pessoas
pensavam de mim. Minha vida inteira fora uma tentativa de fazer com que as
pessoas gostassem de mim, e era difícil ouvir a extensão do meu fracasso.
Mamãe abriu a sessão rompendo em lágrimas.
— Não consigo acreditar que Rachel seja uma toxicômana.
E eu, consigo?, pensei, tentando enfrentar minha extrema infelicidade.
Papai assumiu o comando:
— Rachel saiu de casa há oito anos. — Resolvera abandonar seu
discurso do Velho Oeste durante a sessão. — Por isso, não temos como saber
muito sobre drogas e esse tipo de coisas.
Que grande mentira. Por acaso não moravam na mesma casa que
Anna?
— Não tem problema — disse Josephine. — Há muitas outras
informações essenciais que vocês podem nos dar. Principalmente sobre a
infância de Rachel.
Mamãe, papai e eu nos retesamos ao mesmo tempo. Não entendi a
razão disso, já que eles nunca haviam me trancado num guarda-louça, me
espancado ou deixado passar fome. Não tínhamos nada a esconder.
— Gostaria de lhes perguntar sobre uma época de que ela se lembra
como tendo sido particularmente traumática — disse Josephine. — Ficou muito
transtornada ao relembrá-la um dia desses, durante uma sessão.
— Não fizemos nada com ela — disparou mamãe, lançando-me um
olhar furioso.
— Nem eu estou insinuando que fizeram — tranqüilizou-a Josephine.
— Mas o caso é que, em geral, as crianças têm uma visão distorcida do mundo
dos adultos.
Mamãe me fuzilava com os olhos.
— A senhora alguma vez sofreu de depressão pós-parto?
— Depressão pós-parto! — resmungou mamãe. — De jeito nenhum!
Ainda não tinham inventado a depressão pós-parto naquela época.
Senti uma decepção mortal. Valeu a intenção, Josephine.
— Aconteceu alguma coisa com a senhora ou sua família pouco depois
do nascimento de Anna? — insistiu Josephine.
Eu não tinha onde enfiar a cara de vergonha. Já sabia as respostas e
queria que a coisa parasse por aí.
— Bem — disse mamãe, ressabiada —, dois meses depois que Anna
nasceu, meu pai, avô de Rachel, faleceu.
— E a senhora ficou abalada com isso?
Mamãe olhou para Josephine como se ela fosse louca.
— Claro que fiquei abalada com isso. Meu próprio pai! Claro que fiquei
abalada.
— E em que se traduziu esse abalo?
Mamãe me lançou um olhar assassino.
— Eu chorava muito, se bem me lembro. Mas meu pai tinha morrido, o
que se podia esperar que eu fizesse?
— O que estou tentando apurar — disse Josephine — é se a senhora
sofreu algum tipo de colapso nervoso. Rachel se lembra desse período como
sendo muito doloroso e é importante descobrir o que há por trás de tudo isso.
— Colapso nervoso! — O rosto de mamãe estava horrorizado. — Um
colapso nervoso! Eu teria adorado sofrer um colapso nervoso, mas como poderia,
com uma família de crianças pequenas para criar?
— Talvez "colapso nervoso" não seja o termo exato. A senhora, em
algum momento, ficou de cama? Ainda que por pouco tempo?
— Quem me dera — fungou mamãe.
Ouvi vozinhas infantis gritando dentro da minha cabeça: "Ficou, sim! E
a culpa foi toda minha."
— Você não se lembra daquelas duas semanas? — interveio Papai. —
Em que viajei para fazer aquele curso...
—Em Manchester? — perguntou Josephine.
— Foi — disse ele, estarrecido. — Como a senhora sabe?
— Rachel mencionou o fato. Continue.
— Minha esposa estava tendo dificuldade para conciliar o sono, comigo
fora, e o pai tendo morrido há apenas um mês. Então a irmã dela veio passar
uma temporada lá em casa, e ela pôde se recolher ao leito durante alguns dias.
— Está vendo, Rachel? — tornou Josephine, triunfante: — Você não
teve culpa nenhuma.
— Eu me lembro diferente — murmurei, achando difícil aceitar como
verdadeira essa versão dos fatos.
— Sei disso — concordou Josephine. — E acho importante que você
perceba como se lembra do que ocorreu. Você exagerou tudo. A escala do drama,
sua duração e, o mais importante de tudo, seu papel nele. Na sua versão, você
fazia o papel principal.
— Não — disse, com esforço, a voz embargada. — O papel principal,
não. Era mais como, mais como... — eu procurava palavras que expressassem
como me sentia — ... mais como o papel do bandido! A ovelha negra da família.
— De jeito nenhum — bravateou papai. — Ovelha negra! Que foi que
você fez de mau?
— Belisquei Anna — disse, num fio de voz.
— E daí? Anna beliscou Helen quando ela nasceu. Claire fez
exatamente a mesma coisa com Margaret, e Margaret com você.
— Margaret me beliscou? — soltei. Eu pensava que Margaret nunca
tivesse cometido uma má ação em toda a sua vida. — Tem certeza?
— Claro que tenho — disse papai. Voltando-se para mamãe: —
Lembra?
— Para ser franca, não — disse ela, com frieza.
— Lembra, sim senhora — exclamou ele.
— Se você diz... — tornou ela, com um tom que deixava claro que só
estava tentando agradar ao pobre marido iludido.
Josephine olhou para mamãe e depois para mim. Tornou a olhar para
mamãe, e deu um sorrisinho à socapa.
O rosto de mamãe ficou vermelho. Desconfiava que Josephine
estivesse rindo dela, e bem podia estar, pelo pouco que eu conhecia da minha
terapeuta.
— Até onde eu me lembro — papai lançou um olhar de estranheza para
mamãe, e se voltou para mim —, você não era nem melhor nem pior do que
nenhuma das suas irmãs.
Mamãe soltou um resmungo que soou como "Melhor não era, com
certeza".
Senti um forte mal-estar.
— A senhora alimenta algum ressentimento contra Rachel, Sra. Walsh?
— perguntou Josephine.
O atrevimento de Josephine me chocou.
E a mamãe também, a julgar pela expressão horrorizada em seu rosto.
Ela tratou de se recompor.
— Nenhuma mãe gosta de ser obrigada a vir a um centro de
reabilitação porque a filha é toxicômana — disse ela, do alto de seu pedestal.
— E só isso que a senhora tem contra ela?
— Só. — Mamãe estava com uma cara furibunda.
Josephine olhou para ela com ar de interrogação. Mamãe jogou a
cabeça para trás, franzindo a boca num fiofó de gato.
— Bem, Rachel — Josephine sorriu para mim —, espero que agora você
consiga enxergar que não tem nenhum motivo para se culpar.
Será mesmo que mamãe tinha chorado tanto só porque o pai tinha
morrido?, me perguntei, insegura.- Será que papai tinha viajado apenas para
fazer um curso?
Mas por que haveriam de mentir? Não tinham a menor necessidade de
fazer isso.
E, assim, senti meu passado se transformar um pouco, como se uma
parte dele tivesse sido passada a limpo.
Josephine voltou-se para mamãe e papai:
— Gostaria que nos falassem sobre Rachel, de um modo geral.
Os dois se entreolharam, inseguros.
— Qualquer coisa — disse ela, risonha. — Tudo serve para nos ajudar
a conhecê-la melhor. Falem sobre suas qualidades.
—Qualidades? — Papai e mamãe se sobressaltaram.
— Isso mesmo — encorajou-os Josephine. — Por exemplo, ela é
inteligente?
— Ah, não — papai riu. — A inteligente é Claire, que é formada em
língua inglesa, sabe?
— E Margaret também é bastante razoável — mamãe meteu sua colher
torta. — Não chegou a se formar, mas eu diria que, se tivesse feito uma
faculdade, teria se saído bem.
— É verdade. — Papai se voltou para mamãe. — Ela sempre foi tão
esforçada que, mesmo não sendo tão inteligente quanto Claire, provavelmente
teria saído de lá com o canudo debaixo do braço.
Mamãe assentiu:
— Embora tenha se dado muito bem por seu próprio esforço, sem um
canudo. Ela tem um emprego importante, mais do que o de muita gente que tem
um canudo...
Josephine soltou um pigarro alto.
— Rachel. — Sorriu, gentil. — É sobre ela que estamos discutindo.
— Ah, sim. — Eles assentiram.
Josephine esperou em silêncio até papai disparar:
— Mediana. Rachel é mediana. Não é nenhuma idiota, mas também
não chega a ser uma cientista espacial. Ha, ha, ha — acrescentou, sem muito
entusiasmo.
— Nesse caso, quais são as qualidades dela? — insistiu Josephine.
Mamãe e papai se entreolharam, perplexos, deram de ombros e
continuaram em silêncio. Eu percebia os outros internos se remexendo, pouco à
vontade, e me senti morta de vergonha. Por que as merdas dos meus pais não
inventavam alguma coisa e me poupavam desse vexame?
— Ela era popular com os rapazes? — perguntou Josephine.
— Não — desfechou mamãe, peremptória.
— A senhora parece muito convicta.
— Era a altura dela, sabe? — explicou mamãe. — Era alta de mais para
a maioria dos rapazes da sua idade. Eu diria que ela tinha um complexo em
relação a isso. É difícil para as garotas altas arranjar namorado.
Vi Josephine olhando ostensivamente para o cocuruto de mamãe e
depois para o de papai, alguns centímetros mais baixo. Um olhar que passou
completamente despercebido para mamãe.
—Mas acho que, apesar da altura, ela às vezes tem até uma figura
bonita — acrescentou mamãe, sem muito entusiasmo. Não acreditava numa
palavra do que dizia. Nem papai, que interveio:
— Não, as bonitas da família são Helen e Anna. Embora... — começou,
jovial.
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