Eu estava desesperada para que Brigit engrenasse com Joey, pois
ainda me sentia um pouco envergonhada por estar saindo com um dos Homensde-
Verdade. Se pudesse laçar alguma amiga minha para sair com outro deles,
me sentiria muito mais à vontade.
Não me agradava ser a única.
É claro que eu sabia que era uma pessoa frívola e desprezível, mas
quanto a isso não podia fazer nada.
Brigit e eu tomamos nossas chuveiradas, o que não adiantou grande
coisa, pois cinco minutos depois estávamos outra vez suando como duas vacas
paridas. Pusemos um mínimo de roupas e saímos nadando pela oceânica
umidade do ar afora, rumo à casa de Luke.
Toquei a campainha do porteiro eletrônico, sentindo-me nervosa e
tímida. Ele sempre fazia com que eu me sentisse assim — presa de uma
estranha mescla compulsiva de desejo e relutância, quase beirando a repulsa.
Uma luzinha minúscula brincando de bruxulear entre as paredes do estômago.
Saímos do elevador sem nenhuma pressa — estava quente demais para
andarmos mais rápido. A porta do apartamento estava aberta, e Luke deitado no
chão, vestindo apenas um short jeans, filho único de uma velha calça que tivera
as pernas amputadas. Seu peito e pernas bronzeadas estavam nus, e o
ventilador zumbia sobre ele, soprando-lhe os cabelos nos olhos. Quando fiquei
cara a cara com ele, seus olhos ficaram turvos e ele sorriu para mim. De uma
maneira insinuante, com uma promessa nos olhos que o volume no short se
incumbia de cumprir. Senti uma ânsia violenta de desejo e náusea.
—Como é que vai, fã dos anos setenta? — Brigit cumprimentou Luke.
— Pã dos anos setenta — replicou ele.
— Tantã dos anos setenta — treplicou ela.
— Galã dos anos setenta — ele não deixou a peteca cair.
— Tarzan dos anos setenta — tentou ela.
— Não — Luke foi categórico: — Assim não vale.
Luke e Brigit se davam muito bem. Coisa que às vezes me agradava.
E às vezes não.
De uma coisa para a outra, é um pulo. Mas eles não chegavam a se dar
tão bem assim.
Então fiz o que sempre fazia quando ia ao apartamento de Luke: fingi
escorregar numa poça de testosterona.
Luke riu, para fazer minha vontade. Brigit e eu cambaleamos durante
algum tempo, agitando os braços, gritando coisas do tipo "Cuidado, tem outra
logo ali!".
— Santo Deus — disse Brigit, dando uma geral no apartamento
tipicamente masculino, atravancado de traquitandas. — Esse lugar está cada vez
pior. O ar está tão saturado de hormônios masculinos que meus colhões vão
cair, se eu passar tempo demais aqui. Será que tem um copo de café gelado?
— Putz, não sei — disse Luke, esfregando a barba por fazer num gesto
de perplexidade que achei tão sensual, que desejei que Brigit fosse embora para
que eu e ele pudéssemos praticar um pouco de surfe horizontal. — A gente não é
muito de tomar conta de casa. Posso dar um pulo na esquina e comprar um
para você — ofereceu-se. — Ou que tal uma cerveja? — propôs, ansioso para
agradar. — Cerveja a gente tem aos montes.
— Por que será que isso não me surpreende? — perguntou Brigit, seca.
— O.k., vá lá, uma cerveja.
— Estarei vendo coisas? — Brigit apanhou um colete de couro com o
nome "Whitesnake" escrito nas costas. Sacudiu a cabeça, quase triste, e
perguntou: — Em que ano nós estamos, Luke? Me diz só em que ano nós
estamos.
Estava demorando. Ela fazia isso toda vez que via Luke.
— Em 1972, é claro — disse Luke.
— Não estamos e você sabe disso — tornou ela, curta e grossa:
— Estamos em 1997.
Luke fez uma expressão horrorizada:
— Que asneira é essa que você está dizendo, mulher?
— Me dá o jornal, Rachel — ela ordenou. — Olha aqui, seu
anacronismo patético, está vendo a data impressa aqui...
Como sempre, Luke cambaleou, com a mão na testa. Decidi que já
estava cansada de ser excluída.
— Onde é que estão os rapazes? — indaguei.
— Saíram — respondeu Luke. — Voltam num minuto.
Nesse exato instante, ouvimos um tumulto na porta, composto por
berros, trambolhões, instruções, exortações e reclamações. Em seguida, Gaz,
branco como um susto, entrou no apartamento, meio amparado, meio arrastado
por Joey e Shake.
— Agora falta pouco, cara — ia dizendo Joey a Gaz.
Um por um, tropeçaram num par de botas de motoqueiro jogado no
meio da sala.
Um por um, resmungaram "Pomba."
Eu só me perguntava como conseguiam usar tanto jeans naquele calor.
Na verdade, me perguntava como conseguiam usar tanto cabelo naquele calor.
— Estamos em casa, cara — disse Shake.
— Graças a Deus — murmurou Gaz, pousando as costas da mão na
testa, como uma solteirona vitoriana que tivesse topado na rua com um tarado
de roupão aberto e estivesse prestes a desmaiar. Suas pálpebras tremelicaram,
cerrando-se, e seus joelhos vergaram.
— Ele tá morrendo, tá morrendo — declarou Shake, todo teatral,
quando Gaz caiu duro no chão.
Gaz tinha desmaiado! Que piada.
Luke, Brigit e eu corremos até ele para dar uma olhada e descobrir o
que estava acontecendo.
— Dá um espaço pro cara poder respirar, cara — ordenou Joey. Anda,
cara. — Agachou-se ao lado de Gaz. — Continua respirando, cara, anda, cara,
respira fundo.
Gaz fez o que lhe era ordenado, chiando como um asmático.
— Afrouxem o espartilho dele — sussurrei.
— Que foi que houve? — perguntou Luke.
Eu tinha pensado que fora só o calor que deixara Gaz nesse estado,
mas, quando Joey respondeu, irritado, "Respeita um pouco a privacidade do
cara", vi que, obviamente, algo muito mais interessante tinha acontecido.
Joey sempre ficava um pouco nervoso quando Brigit estava presente.
Agia como se ela fosse louca por ele, ou pior, como se estivesse na sua cola,
tentando laçá-lo para sair com ela. Só porque ela tinha dormido com ele. Mas
dessa vez, especificamente, estava claro que a reticência de Joey não tinha nada
a ver com Brigit.
Meu sangue engrossou de expectativa. O que teria acontecido? Talvez
Gaz tivesse sido atropelado. Os ciclistas de Nova York eram maus feito picapaus.
Dei uma olhada no seu corpo prostrado, procurando ferimentos que
elucidassem o enigma — talvez a marca de uma roda de bicicleta na sua cara —,
quando percebi que havia alguma coisa errada com seu braço esquerdo.
Estava inchado e ensangüentado. Tão ensangüentado que mal se via a
palavra "ASSS" gravada em letras góticas na sua pele.
— Que é que há com o braço dele? — indaguei.
— Nada — disse Joey, na defensiva. De repente, compreendi.
— Ele fez uma tatuagem! — exclamei. — Foi por isso que desmaiou?
Que mulherzinha, pensei, com desprezo.
As pálpebras de Gaz se agitaram e ele abriu os olhos.
— Aquele filho-da-puta era um açougueiro — gemeu. — Ele me
torturou.
Olhei outra vez — "ASSS".
— O que você estava tatuando? — perguntei.
— Simplesmente o nome da melhor banda do universo conhecido.
— Mas ASSS? — perguntou Brigit, confusa. — Uma banda chamada
ASSS?
— Não — disse Joey, revirando os olhos de irritação com o que
interpretou como sendo burrice de Brigit. — O nome da banda é Assassin.
— Mas cadê o resto da palavra? — perguntei, sem compreender. —
Tenho a impressão de que estão faltando um A, um S, um I e um N- E como
vocês vão enfiar um A entre esses dois SS, isso eu não sei.
—O tatuador não sabia escrever direito — disse Joey, bruscamente.
— Gaz não estava se agüentando mais de dor, cara — disse Shake ao
mesmo tempo. — Estava implorando feito um miserável pro tatuador parar... —
A voz de Shake foi morrendo, quando ele notou o cenho ferozmente franzido de
Joey.
— Ele vai voltar prá terminar a tatuagem — sentenciou Joey, resoluto.
— Só veio em casa prá descansar um pouco.
— NÃO VOU! — Gaz deu um piti no chão. — Não me obriga, não me
obriga, doeu prá caralho, cara. Tô te dizendo, agüentei enquanto deu, cara, mas,
cara, a dor, cara... NÃO VOU VOLTAR! — Parecia desvairado de dor.
— Mas, escuta só, cara — disse Joey, em voz baixa, num tom do tipo
não-paga-mico-na-frente-das-garotas. — E o resto do nome? Você vai ficar
parecendo um babaca, se não terminar.
— Eu amputo o braço — propôs Gaz, fora de si. — Aí ninguém vai ficar
sabendo.
— Cala essa boca, cara — ameaçou Joey. — A gente enche seu tanque
direitinho e depois volta lá.
— Não! — guinchou Gaz.
— É, ouve só, cara — Shake tentou acalmá-lo. — Uma garrafa de JD,
você vai ficar nas nuvens, cara, não vai sentir nenhuma dor.
— Não!
— Cara, lembra o dia em que a gente se conheceu? — Joey cravou um
olhar duro em Gaz, que ainda estava estatelado de costas no chão. — Primeiro
de julho de 1985, na Zeppelin Records? Você me disse que arriscaria a vida da
sua própria mulher pelo guitarrista do Assassin. Que é que há contigo? Qual é o
problema contigo, cara, prá não querer suportar um pouquinho de dor em nome
da maior banda do mundo? Depois de tudo que eles fizeram por você? Tô
desapontado contigo, cara, sabia?
Gaz estava com uma expressão arrasada.
— Não posso fazer isso. Desculpa, cara, te deixar na mão desse jeito,
cara, mas não posso fazer isso.
— Puta que o pariu. — Joey pulou de pé, furioso, e deu um pontapé no
sofá. Passou as mãos no cabelo, ficou quieto por um momento e deu outro
pontapé no sofá. Sem mais nem menos, pôs-se a vasculhar uma gaveta.
Eu, Luke, Brigit, Shake e Gaz — principalmente Gaz — ficamos a
observá-lo, ansiosos. Era impossível prever o que Joey faria, exasperado como
estava.
Joey encontrou o que procurava. Um objeto preto e reluzente. Era
pequeno demais para ser uma arma, de modo que só podia ser uma faca.
Fiquei me perguntando se estaria pretendendo imobilizar Gaz e
retomar o trabalho do ponto em que o tatuador o interrompera.
Pela expressão no rosto de todos, eu não era a única a me perguntar
isso.
Joey se aproximou, ameaçador:
— Me dá o braço — ordenou a Gaz.
— Não, escuta, cara, não precisa fazer isso... — protestou Gaz.
— Me dá essa porra de braço. Nenhum amigo meu vai bancar o
palhaço na frente dos outros.
Os pés de Gaz se agitaram no chão em busca de apoio.
— Toma essa faca dele — implorou a Luke.
— Me dá essa faca, cara. — Luke ficou na frente de Joey, que
avançava. Quase me derreti de desejo com a desenvoltura de Luke.
— Que faca? — perguntou Joey.
— Essa. — Luke indicou com a cabeça a mão de Joey.
— Não é uma faca — protestou Joey.
— Bom, então é o quê?
— É um PILOT, um PILOT DE TINTA INDELÉVEL — berrou ele. — Já
que ele não quer terminar a tatuagem, vou desenhar o resto no braço dele.
Um suspiro de alívio percorreu o aposento. Ficamos tão aliviados de
saber que Joey não ia matar Gaz, que passamos um bom tempo treinando
escrever A, I, S e N em letras góticas com ele.
Em seguida, Shake sugeriu que jogássemos uma partida de Scrabble.
E quem olhasse para ele pensaria que fazia mais seu gênero atirar aparelhos de
televisão por janelas de hotel.
— Uma partida só — disse eu, para fazer sua vontade. — Depois,
vamos sair. Hoje é noite de sábado, seu pastel.
— Valeu — agradeceu Shake, alegre. Abrimos latas de cerveja e nos
reunimos ao redor do tabuleiro no chão, Shake, Luke, Joey, Brigit e eu.
Gaz ficou assistindo a Ren e Stimpy na tevê. Antes assim. Não tinha
feito outra coisa da última vez além de provocar discussões, insistindo que
"barúlio", "abano", "facs" e "Gaz" eram palavras.
Em meio ao barulho e ao vozerio, o jogo começou. Eu estava totalmente
concentrada, pois curtia muito jogar Scrabble. Mas, quando por acaso levantei o
rosto, encontrei os olhos de Luke fixos em mim, turvos, carregados. Alguma
coisa em sua expressão me encabulou. Desviei os olhos, mas minha
concentração já tinha ido por água abaixo, e a única palavra que consegui
formar com minhas letras foi "rio", enquanto Brigit conseguiu formar "alegre" e
Shake, "raptor".
Meu olhar foi irresistivelmente atraído para Luke novamente. Dessa vez
ele o sustentou e sorriu. Começou devagar e foi se abrindo num sorriso largo,
radiante, afetuoso. Tão cheio de admiração e carinho, que me senti como se
tivesse meu próprio sol particular.
Shake interceptou o sorriso.
— Que foi? — perguntou, ansioso, olhando de mim para Luke e de
novo para mim. — Não vão me dizer que formaram "quincunce" de novo!
Desenho animado norte-americano, famoso por seu humor
escatológico.
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