Brigit e eu estávamos deitadas na sua cama, quase sem conseguirmos
nos mexer, devido ao calor de agosto. Irritadas com a luminosidade branca e
ofuscante, típica do verão de Nova York, que se refletia nas calçadas e edifícios
de concreto, emanando cem vezes mais calor e brancura. Aquilo já tinha deixado
de ser brilho para se tornar uma coisa nefasta.
— ...e na noite em que ele põe os olhos em você pela primeira vez, você
nunca esteve tão esquálida, com as costelas aparecendo e as maçãs do rosto
salientes — ia dizendo Brigit.
— Obrigada — disse eu. — Mas como? Cirurgia plástica?
— Nããão — ela torceu a boca, pensativa. — Não daria certo, as
cicatrizes apareceriam naquele vestidinho de chiffon de Dolce e Gabbana que
você está usando quando derrama uma taça de champanhe nele.
— Claro — arquejei. — Dolce e Gabbana, é muita gentileza sua,
obrigada! E champanhe. Legal!
— Vejamos — disse ela, com um olhar distante. Eu olhava para ela,
silenciosa e reverente, enquanto ela tentava espichar minha fantasia.
— O.k., já sei! — anunciou. — Você tem um daqueles vermes que vivem
no intestino e comem toda a sua comida, de modo que não sobra nenhuma para
você, e você perde peso às pampas.
— Inspirado — declarei.
De repente, me ocorreu uma coisa.
— Como é que o verme foi parar no meu intestino?
— Ele estava numa carne que não tinha sido cozida direito..
— Mas eu sou vegetariana.
— Olha, não importa — explodiu ela. — Eu vivo dizendo a você, isso é
faz-de-conta.
—Desculpe.
Fiz um ar humilde durante um momento, como mandava o figurino, e
logo em seguida perguntei:
— E como foi que descolei a grana para comprar o vestido de Dolce e
Gabbana? Arranjei um emprego novo?
— Não — disse ela, seca. — Você roubou. E te apanharam com a mão
na massa. Você foi solta sob fiança e tem uma audiência marcada no tribunal
segunda-feira. E, assim que o homem dos seus sonhos descobre que você
provavelmente é uma delinqüente incorrigível, desaparece do mapa.
Brigit parecia estar cansada de nossa brincadeira.
— Mas, seja como for, você não precisa mais que eu faça isso para você
— disse ela. — Você tem um namorado.
— Não diz isso. — Fiquei morta de vergonha.
— Mas tem, sim — insistiu ela. — Luke é o quê? Um namorado, não há
como negar.
— Pára.
— Que é que há com você? — cobrou ela, exasperada. — Acho ele o
máximo.
— Então por que não sai com ele?
— Rachel — disse ela, em voz alta —, pára com isso. Eu disse que gosto
dele, não que sinto tesão por ele. Você precisa urgentemente dar um jeito nesse
seu ciúme.
— Não sou ciumenta — protestei, veemente. Detestava que me
chamassem de ciumenta.
— Bom, alguma coisa você é — disse ela.
Não respondi, porque ela me fizera começar a pensar em Luke. Embora
eu não conseguisse chegar a uma conclusão sobre o que sentia por ele, bastava
uma simples menção ao seu nome para me deixar levemente hipnotizada. Mal
comparando, era como se meu cérebro vidrasse.
Semi-oficialmente, ele era meu namorado. Desde o jantar no Bom e
Caro, eu vinha passando todos os fins de semana com ele. Mas agora que
recuperara o controle do nosso relacionamento, a ambivalência de antes botou
as unhinhas de fora, e eu já não tinha tanta certeza assim de que ainda o
queria.
Todo domingo eu prometia a mim mesma que no sábado seguinte faria
alguma coisa diferente. Alguma coisa sofisticada em companhia de gente
descolada, que não poderia estar mais na crista da onda nem que houvesse um
maremoto. Não Luke Costello. Mas seis dias depois, invariavelmente, eu me
sentia impotente para resistir quando Luke perguntava: "O que você quer fazer
hoje à noite, gata?"
— Certo, agora é sua vez — disse eu, voltando a mim. Estava doida
para mudar de assunto. — Você acabou de sair de uma gripe violentíssima, não,
minto, de uma intoxicação alimentar, porque comeu sorvete podre e ficou
vomitando durante uma semana.
— Sorvete não apodrece — interveio ela.
— Não? Tenho certeza de que apodrece. Embora comigo não tenha a
menor chance. Enfim, que diferença faz? Você teve uma intoxicação alimentar e
está um esqueleto. Tão magra que as pessoas chegam e dizem: "Acho que você
perdeu peso demais, Brigit, precisa urgentemente engordar um pouco, está
parecendo uma prisioneira de campo de concentração."
— Que maravilha. — Brigit bateu com os calcanhares na cama, de
prazer.
— E, as pessoas estão cochichando alguma coisa a seu respeito e você
ouve elas dizerem: "Ela está acabadíssima." Aí nós vamos a uma festa. Você não
vê Carlos há séculos, mas ele está lá...
— Não — ela me interrompeu. — Carlos, não.
— Por que não? — Fiz um tom de voz surpreso.
— Porque já tirei ele da cabeça.
— Tirou? — Fiquei ainda mais surpresa. — Não sabia que você tinha
conhecido outra pessoa.
— E não conheci.
— Mas então, como pode ter tirado Carlos da cabeça?
— Sei lá, tirei e pronto.
— Você está me assustando, Brigit. — Olhei para ela como se nunca a
tivesse visto antes. — Você sabe o que Claire sempre diz: "A única maneira de
tirar um homem da cabeça é abrindo as pernas para outro." E você não tem
transado com outro cara, eu teria notado.
— Não importa, mesmo assim tirei ele da cabeça. Não está feliz por
mim? Não está feliz por eu não estar mais um bagaço?
—Estou, ora, é claro que estou. Fiquei surpresa, só isso. Mas eu não
estava feliz. Estava inquieta e pouco à vontade. E confusa.
Primeiro sua promoção, e agora isso.
Brigit e eu sempre fôramos parecidíssimas. Salvo por nossas atitudes
em relação à vida profissional — ou, por outra, Brigit tinha uma atitude —,
nossas reações à vida eram quase sempre idênticas. Na verdade, a única outra
coisa que não tínhamos em comum era nosso gosto em matéria de homens,
provavelmente a razão pela qual nossa amizade já durava tanto tempo. Nada
como um conflito de interesses do tipo "Ei, eu vi primeiro!" para acabar com uma
amizade que datava de nossos tempos de escola primária.
Mas agora ela tinha ficado muito esquisita. Eu não conseguia entender
como simplesmente dera uma guinada de cento e oitenta graus daquelas e
deixara de gostar de Carlos. Porque nunca, por meus próprios meios, tirei um
homem da cabeça. Sempre foi fruto de trabalho em equipe. Era preciso que
outro homem aparecesse e envidasse todos os seus esforços em prol da minha
infelicidade para que eu conseguisse esquecer a mágoa causada pelo anterior.
Minha reação à rejeição era sair e procurar uma compensação imediata
— em geral, dormindo com outra pessoa. Ou, pelo menos, me esforçar ao
máximo; nem sempre tinha sucesso.
Sempre invejara as mulheres que diziam coisas do tipo "Depois que
Alex me deixou, eu simplesmente me fechei, não consegui sentir nada por outro
homem durante quase um ano."
Eu teria adorado não sentir nada. Porque os homens ficavam loucos
pela mulher, quando ela não sentia nada por eles.
E agora Brigit parecia estar se transformando numa daquelas
mulheres donas de uma auto-suficiência apavorante.
— Dá um pulo na geladeira. — Ela me empurrou com o pé. — Dá um
pulo na geladeira e traz alguma coisa gelada para mim.
— Não sabia que Helenka mora na nossa geladeira — gracejei, e rimos
sem vontade, um riso chocho.
— Não dá, Brigit — me escusei. — Não tenho energia, eu despencaria.
— Sua filha-da-mãe preguiçosa e imprestável — reclamou ela. — Teria
energia para dar e vender, se Luke-fã-dos-anos-setenta-Costello desse as caras
com o pirulito na mão a fim de um bate-coxa.
Preferia que ela não tivesse dito isso, pois fez com que um choque de
desejo por ele me percorresse, me deixando insatisfeita e inquieta. Ainda
faltavam horas para meu encontro com ele e, de repente, tudo que aconteceria
até lá pareceu tedioso e sem sentido.
— Quer alguma coisa? — perguntou Brigit, arrastando-se para fora da
cama.
— Por que não traz uma cerveja para a gente? — sugeri.
— Acabou — veio a voz dela da cozinha, alguns minutos depois.
Pelo seu tom, percebi que estava extremamente irritada.
De novo não, pensei, desanimada. Ela andava tão mal-humorada nos
últimos tempos. Que diabo estava havendo com ela?
Uma boa trepada, era disso que ela precisava. Era disso que todas as
mulheres precisavam. Eu podia até dar início a uma petição, carregando um
cartaz com os dizeres "Trepe com Brigit Leneham já!" e "Trepe com a Novaiorquina".
E talvez organizasse uma marcha do Cute Hoor ao Tadgh's Boghole,
encabeçada por mim mesma, berrando num megafone: "O QUE NÓS
QUEREMOS?"
E todo mundo teria que berrar em resposta: "UMA TREPADA PARA
BRIGIT LENEHAM."
Ao que eu urraria: "E QUANDO NÓS QUEREMOS?"
E todo mundo responderia: "JÁ!"
— É isso aí — repetiu Brigit, azeda. — Acabou a cerveja. Quem teria
imaginado?
— Já pedi desculpas — ergui a voz para que ela me ouvisse. Alguns
segundos depois, criei coragem e acrescentei: — Quantas vezes mais vou ter que
pedir?
Sentia-me bem mais corajosa agora do que me sentiria se Brigit ainda
estivesse no quarto. Eu era uma negação em matéria de confrontos cara a cara.
Sempre achara mais fácil discutir com alguém que não estivesse no mesmo
aposento que eu. Para dizer a verdade, tive algumas de minhas melhores
discussões com gente que na ocasião se encontrava em outro país.
— Pelo amor de Deus, Rachel — veio a voz dela de longe. — A gente
estava precisando de tudo. Pão, Coca diet, e eu me refiro a Coca-Cola diet, não à
coca que você costuma usar para perder peso...
Enrosquei-me de medo do seu tom de voz agressivo.
— ...bisnaguinhas, café, queijo. E você volta da rua com o quê? Com
pão? Não. Com queijo? Não. Com algum dos itens da lista? Não. Em vez disso,
ela volta...
Eu sabia que a coisa estava preta quando ela começava a se referir a
mim na terceira pessoa.
— ...e o que ela comprou, o que ela trouxe, senão vinte e quatro latas
de cerveja e um saco de Doritos? Até aí tudo bem, quando é o dinheiro dela que
ela gasta. Quando gasta o dinheiro dela, pode comprar quantas cervejas quiser...
Sua voz estava se aproximando, e tornei a me encolher na cama.
— ...e tomar todas elas em questão de horas.
Ela apareceu na porta e desejei estar num campo de concentração
madeireiro na Coréia do Norte, onde obrigam os prisioneiros a trabalhar vinte e
três horas por dia. Seria preferível, à maneira como Brigit estava me fazendo
sentir.
— Desculpe — pedi, por ser tudo que consegui dizer.
Ela me deu um gelo. Quando não consegui mais agüentar a tensão,
arrostei o silêncio, tornando a dizer:
— Desculpe.
Ela olhou para mim. Nossos olhos se fitaram por uma eternidade.
Não consegui interpretar sua expressão, mas desejei ardentemente que
ela me perdoasse. Tentei transmitir mensagens telepáticas para ela.
Perdoe a Rachel, emitia vibrações. Seja amiga dela.
Deve ter funcionado, porque a expressão de Brigit se abrandou.
Aproveitando a oportunidade, tornei a lhe pedir desculpas. Achei que não
poderia fazer nenhum mal, e que poderia até fazer algum bem.
— Eu sei que você está arrependida — ela admitiu, por fim.
Suspirei de alívio.
— Agora, francamente, fala sério — disse ela, a voz bem mais normal.
— Vinte e quatro latas de cerveja! — Começou a rir, e me senti eufórica, como se
tirassem um peso gigantesco das minhas costas.
— Muito bem — disse eu, me arrastando para fora da cama. — Tenho
que me aprontar para Luke.
— Onde você vai se encontrar com ele?
— Vou dar um pulo na Central da Testosterona, e depois vamos sair.
Quer vir?
—Depende. É um encontro a dois?
— Não, vou só tomar uns drinques com ele e quarenta e nove amigos
íntimos seus. Vem, por favor.
— Bom, tá certo, mas não vou dormir com Joey só para fazer a sua
vontade.
— Ah, por favor, Brigit — supliquei. — Tenho certeza de que ele sente o
maior tesão por você. Seria maravilhoso, seria tão romântico. — Calei-me por um
segundo. — Seria tão prático.
— Sua filha-da-mãe egoísta — exclamou ela.
— Não sou, não — protestei. — Só estou dizendo que... bom, você sabe,
nós duas moramos juntas, Luke e Joey moram juntos...
— Não! — ela exclamou. — Nem pensar. Somos adultas, você e eu...
— Fale por si.
— ...e, como adultas, não somos obrigadas a fazer tudo juntas. O que
significa que podemos sair com homens que não sejam amigos um do outro.
— Ótimo — disse eu, mal-humorada.
Ficamos em silêncio por alguns minutos de tensão.
— Tá bem, tá bem — ela suspirou, resignada. — Vou pensar no
assunto.
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