quarta-feira, 6 de julho de 2011

Férias!! - MARIAN KEYES Cap.47


Na sessão de segunda de manhã, Josephine voltou sua atenção para
Mike, humilhando-o até dizer chega.
— Mike, já faz algum tempo que pretendo voltar a você — disse ela, em
tom de desculpas. — Já está na hora de voltarmos a examinar seu passado, não
é mesmo?
Ele se recusou a responder, limitando-se a encarar Josephine como se.
tivesse vontade de mutilá-la.
Que maravilha, pensei, eufórica. Enquanto outra pessoa estivesse na
berlinda, não haveria espaço para mim.
Dirigindo-se aos presentes em geral, Josephine perguntou:
— Vocês têm perguntas para fazer a Mike?
Você faz permanente no cabelo? Em caso afirmativo, com que intuito?
— Está bem — suspirou Josephine. — Eu mesma me encarrego disso.
Você é o mais velho de uma família de doze filhos?
— Sou — anuiu Mike, em voz alta.
— E seu pai morreu quando você tinha quinze anos?
— Morreu — berrou Mike.
— Deve ter sido difícil, não?
— A gente se virou.
— Como?
— Dando duro. — O rosto feio de Mike parecia mais duro e frio do que
nunca.
— Na terra?
— Na terra.
— Gado?
— Lavoura, principalmente.
Eu não tinha a menor idéia do que eles estavam falando.
—Dias longos?
— Acordando de madrugada e ainda trabalhando quando o sol se
punha — disse Mike, quase orgulhoso. — Sete dias por semana, inclusive
feriados.
— Muito louvável — murmurou Josephine. — Até que você perdeu
totalmente o controle do seu vício, passou a desaparecer durante semanas e
deixou de fazer o seu trabalho.
— Mas... — começou Mike.
— Já chamamos sua esposa aqui — ela o atalhou. — Sabemos tudo a
esse respeito. E você sabe que sabemos.
E por aí ela foi. Não largou do pé dele a manhã inteira.
Tentava fazê-lo reconhecer que sua tentativa de organizar a família
inteira numa força-tarefa competentíssima o absorvera tanto, que não tivera
tempo de prantear a morte do pai.
— Não, não, não — insistia ele, irritado. — A gente tinha que manter o
sistema funcionando, senão morreria de fome.
— Mas por que era você quem tinha que fazer isso?
— Porque eu era o mais velho — murmurou, magoado. — A
responsabilidade era toda minha.
— Não era, não — discordou Josephine. — E sua mãe?
— Coitada da minha mãe — gaguejou Mike. — Eu não queria
preocupar ela.
— Por que não?
— Acho que por causa do mundo dela — disse Mike, com voz sumida,
como se Josephine devesse ter vergonha de fazer uma pergunta dessas.
— Pois é — disse ela, em voz baixa. — Você tem uma atitude estranha
em relação às mulheres. A distinção madona/puta é muito acentuada em você.
— Quê...?
— Seja como for, vamos voltar a esse assunto em outra ocasião.
Depois do almoço, a sorte me sorriu, porque Misty apanhou como um
boi ladrão. Uma dupla bênção. Qualquer coisa ruim que acontecesse com ela me
animava imensamente. E, enquanto ela estivesse sendo humilhada, isso
significava que eu não estaria.
Percebi que tinha me safado com relativa facilidade. Tinha certeza de
que eles não iriam se incomodar com o questionário num estágio tão avançado
da minha internação. Tirando aquele dia em que me interrogara sobre minha
infância, Josephine não me dera muito trabalho. E só faltavam cinco dias para
eu poder sair. Cinco dias para me convencer de que eu tinha um problema com
drogas? Para ser honesta, eu não levava muita fé nas chances de Josephine.
Graças a essa convicção, pude curtir adoidado Josephine baixando o
sarrafo em Misty, sem o medo de passar pelo mesmo no futuro.
E o sarrafo foi feio. Josephine desconfiava que a recaída de Misty fora
um golpe de publicidade.
Coisa que Misty negava com a maior veemência.
— Não foi só um chamariz para vender Lágrimas Antes de Dormir, meu
novo livro — insistia. — Não estou aqui só para promover meu novo livro,
Lágrimas Antes de Dormir.
Tinha um ar frágil, delicado e belo.
— Não estou mesmo — insistia, seus olhos grandes e suplicantes, com
uma expressão de Por-favor-não-me-entendam-mal.
Tive vontade de vomitar, mas os outros fizeram silêncio,
envergonhados.
Trouxas, pensei, furiosa por não conseguirem enxergar como estavam
sendo manipulados.
— Vocês não podiam estar mais enganados — protestou ela,
permitindo que um leve tremor lhe surgisse no lábio superior.
Mais vergonha. Mais silêncio. Josephine a observava com os olhos
franzidos.
— Na realidade, estou em busca de material para meu próximo livro —
acrescentou Misty, quase como se a idéia tivesse lhe ocorrido na última hora.
Seguiu-se um silêncio de estupefação e, em seguida, um clamor de
perguntas irrompeu:
— Vou aparecer nele? — perguntou John Joe, empolgado.
— E eu? — perguntou Chaquie, preocupada. — Você não vai usar meu
nome verdadeiro, vai?
— Nem o meu — disse Neil, ansioso.
— Vou ser o herói, não vou? — pavoneou-se Mike. — O que fica com a
mocinha?
— E eu? — interveio Clarence.
— CALEM A BOCA! — gritou Josephine.
Dá-lhe, pensei, orgulhosa. Senta o pau. Fiquei me perguntando se
conseguiria transmitir o que sentia para Chris. Seria bom que ele ficasse
sabendo que putinha frívola ela era. Embora, pensei, inconvicta, não tivesse
certeza se Chris estava interessado no bom caráter de Misty.
— É sua segunda internação neste centro de reabilitação — protestou
Josephine, furiosa. — Quando vai levar seu tratamento a sério? Pelo amor de
Deus, você é uma alcoólatra!
— Claro que sou uma alcoólatra — admitiu Misty, calmamente. — Sou
uma escritora.
— Quem você pensa que é, Ernest Hemingway? — disparou Josephine.
Sorri, eufórica.
Que maravilha.
Em seguida, Josephine desancou Misty por viver flertando.
— Você se comporta de maneira proposital e extremamente provocante
com os homens aqui. Gostaria de saber por quê.
Misty não quis colaborar, e Josephine foi se tornando cada vez mais
desagradável.
Aquela tarde foi uma delícia só, do princípio ao fim. Porém, quando eu
já saía de fininho pela porta para nossa encantadora sessão de chá, Josephine
me segurou pela manga. Em um segundo, passei do bom humor relaxado ao
pavor paralisante.
— Amanhã — disse ela.
Ah, não, minha cabeça gritou. Ah, não! Amanhã é o dia do
questionário. Como pude chegar a achar que o evitaria?
— Amanhã — ela repetiu. — Achei que seria no mínimo justo avisar
você...
Senti-me à beira das lágrimas.
— ...para lhe dar um tempinho para se preparar...
Fantasias suicidas punham suas cabecinhas de fora como pequenos
botões em flor no início da primavera.
— ...seus pais vão vir aqui como seus OIEs.
Demorei um segundo ou dois para assimilar a notícia. Estava tão
fixada em Luke e nas coisas horríveis que podia ter dito sobre mim, que, por um
momento, não soube o que significava a palavra "pais".
Pais? Tenho pais? Mas o que eles têm a ver com Luke?
— Ah, tá certo, então — disse eu a Josephine. Dirigi-me ao refeitório,
assimilando o que me dissera.
O.k., pensei depressa, logo concluindo que a situação não era tão
catastrófica quanto poderia ser, porque eles sabiam muito pouco a meu respeito.
Mas, mesmo assim, eu estava apavorada. Tinha que ligar para mamãe e papai
para descobrir o que pretendiam dizer.
A terapeuta emboscada entre nós era Barry Grant, a baixinha
bonitinha. Quando lhe perguntei se podia dar um telefonema, ela reclamou em
voz alta, "Tudo bem, Rachel, minha filha, mas agora estou tomando meu chá", e
fez um gesto gentil indicando a xícara à sua frente.
Passei o tempo todo me remexendo, até ela finalmente se levantar e me
levar ao escritório. Quando passamos pela recepção, para minha surpresa, dei
com Mike empoleirado na mesa de Cheia de Vida, a recepcionista.
Será Cheia de Vida uma madona ou uma puta?, me perguntei.
— Uma garota linda como você? — Ele dizia a meia voz, os olhos
brilhantes fixos nela. — Garanto que tem que espantar os homens a pau.
Puta, creio eu.
— Ei! — Barry Grant berrou com ele. — De novo, não! Já te pego!
Mike deu um salto olímpico.
— Ah, boa sorte, te vejo outra hora — disse apressado a Cheia de Vida,
chispando para a porta.
— Fique longe das garotas — berrou Barry Grant para ele. — E você,
pare de dar corda para ele — disse ríspida para Cheia de Vida. — Deveria se
comportar como uma profissional. E você, venha cá — berrou para mim. Acho
que não quis que eu me sentisse excluída. — Qual é o número?
Papai atendeu o telefone dizendo "El Rancho Walsho". Dava para ouvir
"The Surrey with a Fringe on Top" ao fundo.
— Oi, pai — disse eu. — Como vai a peça? O clamor da maquiagem, os
pincéis da multidão?
—Muito mais mió de bão — disse ele. — E ocê?
— Nem tão mais mió de boa assim, para ser franca. Que história é essa
de você vir ser meu OIE amanhã?
Ele respirou com tanta força que parecia estar sendo garroteado.
— Vou chamar sua mãe! — gritou. Ato contínuo, o fone bateu na mesa.
Seguiu-se um pingue-pongue de cochichos, enquanto ele a punha a
par da situação, um tentando culpar o outro.
— Cochicho cochicho cochicho — disse mamãe, ansiosa.
— COCHICHOCOCHICHOCOCHICHO — respondeu papai, histérico.
— Ora, cochicho, cochicho.
— Você é a cochicho dela, cochicho cochicho cochicho coisa de mulher!
Captei o espírito da coisa.
— O que vou dizer? — sussurrou mamãe.
— Conta a verdade para ela — sussurrou papai. Ao que ela rebateu seu
sussurro:
— Conta a verdade você! E ele devolveu a cortada:
— Você é a mãe dela, esse tipo de negócio é coisa de mulher! Papai
deve ter ameaçado destituir mamãe da presidência da casa, porque ela
finalmente apanhou o fone e declarou, com a voz trêmula, falsamente animada:
— Vou te dizer uma coisa, musical americano bom é musical
americano morto. Ele tem me massacrado com essa Okla-joça-homa. E escuta
só, você não vai acreditar: sabe o que ele me pediu para preparar? Um prato de
pedra-e-cal! Para comer na hora do chá, como se isso fosse possível. Diz que é
comida de caubói. Onde é que eu vou arranjar um livro de culinária do Velho
Oeste com receitas à base de materiais de construção?
Quando finalmente consegui encaixar uma palavra no monólogo, ela
confirmou, a contragosto, que viria ao Claustro com papai para me
esculhambar.
Achei isso difícil de acreditar. Muito embora estivesse num centro de
reabilitação e esse tipo de coisa realmente acontecesse com as pessoas, não era
para acontecer comigo. Porque eu não era como os outros. E não se tratava de
nenhum tipo de negação ferrenha, típica de dependente. Eu realmente não era
como os outros.
— Bom, já que têm que vir, então venham — suspirei. — Mas é melhor
não me esculhambarem, ou só Deus sabe o que sou capaz de fazer.
Barry Grant alcançou uma caneta assim que eu disse isso.
— É claro que não vamos esculhambar você — disse mamãe, trêmula.
— Mas temos que responder às perguntas que a mulher fizer.
Era exatamente disso que eu tinha medo.
— Vá lá, mas não precisam me esculhambar. — Até mesmo aos meus
próprios ouvidos, eu parecia uma menina de treze anos falando. — Vocês vêm de
manhã ou de tarde?
— De tarde.
Isso era um pouco melhor, porque, se viessem de dia, havia a hipótese
de passarem o dia inteiro.
— E, Rachel, meu amor — mamãe parecia prestes a chorar —, não
vamos esculhambar você. Só vamos tentar ajudá-la.
— Ótimo — disse eu, azeda.
— Tudo bem? — perguntou Barry Grant, com seu olhar de verruma,
quando desliguei o telefone.
Assenti. A situação estava sob controle e eu estava bem.
Mas, enfim, relembrei, mais quatro dias... Que mal podia fazer?

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