Aquela noite, depois do chá, tivemos uma palestra. Sempre tínhamos
palestras, em geral dadas por alguns dos terapeutas do Dr. Billirigs, mas eu
bancava a surda o tempo todo. Aquela noite foi a primeira vez que prestei
atenção, grata pela oportunidade de me distrair da dor profunda em que haviam
me atolado.
A palestra era sobre dentes, e seria dada por Barry Grant, uma mulher
de Liverpool baixinha, bonitinha e braba, que chamava os outros de "bocó" o
tempo todo.
— Muito bem — ordenou, numa voz de baixo profundo que não
combinava em nada com sua figura. — Silêncio. Silêncio.
Ficamos quietos, por medo de que ela batesse em nós. Ela deu início à
palestra, que achei muito interessante. Durante algum tempo, pelo menos.
Segundo constava, os usuários de drogas e vítimas de desordens
alimentares tinham dentes horríveis. Em parte por causa de suas vidas
desregradas — os viciados em ecstasy rangiam os dentes até reduzi-los a nada; e
os bulímicos, que enxaguavam seus dentes com ácido hidroclorídrico toda vez
que vomitavam, tinham sorte quando lhes restava um único dente na boca;
assim como os alcoólatras, que também deitavam carga ao mar com uma certa
freqüência.
Além do desregramento, disse Barry Grant, nenhum deles ia ao
dentista.
(Fora os internos no outro prato da balança, que iam demais ao
médico, ao dentista e ao hospital, sob todos os tipos de pretextos fantasiosos.)
Eram várias as razões pelas quais os dependentes não freqüentavam o
consultório do dentista, explicou Barry Grant.
Uma era a falta de auto-estima; não se julgavam dignos de tais
cuidados.
Outra era o medo de gastar dinheiro. Os dependentes davam
prioridade aos gastos com drogas, comida ou qualquer que fosse o objeto de sua
dependência.
O medo propriamente dito era a razão principal, disse ela. Todo mundo
tem medo de ir ao dentista, mas os dependentes nunca o enfrentam. Sempre que
sentem medo, bebem uma garrafa de uísque, comem duzentas tortas de queijo
ou apostam o salário de um mês numa barbada.
Um papo fascinante, que me fazia balançar a cabeça e dizer "hum". Se
usasse óculos, eu os tiraria e balançaria pela haste, com ar de entendida. Até
que, sem mais nem menos, me ocorreu que eu não ia ao dentista há mais ou
menos uns quinze anos.
Ou mais, provavelmente.
Uns nove segundos depois, senti uma pontada num dos dentes de trás.
Por volta da hora de dormir, já estava enlouquecida de dor.
A palavra "dor" não chegava nem perto de descrever as fagulhas
elétricas, quentes, metálicas de dor que se irradiavam do meu crânio até a
mandíbula. Era horrível.
Eu pulava toda hora para pegar meu vidro de dihidrocodeína e encher
a caveira com meus analgésicos preciosos e balsâmicos, quando então caía em
mim, confusa, dando-me conta de que não havia nenhum para tomar. Que o
paradeiro de todos aqueles divinos removedores de dor era a gaveta de cima da
minha penteadeira em Nova York. Isso presumindo que a penteadeira ainda era
minha, que Brigit não tinha enfiado outra companheira dentro de casa e atirado
minhas coisas no meio da rua.
Essa hipótese era desagradável demais para ser levada em
consideração. Felizmente, a atrocidade de minha dor de dente era tão fenomenal,
que eu não conseguia pensar em nada por muito tempo.
Tentei enfrentar a dor. Consegui, durante bem uns cinco minutos,
antes de gritar para o refeitório inteiro: "Alguém tem um analgésico?"
Levei um minuto para compreender por que estavam todos rindo às
gargalhadas.
Quase de joelhos, fui procurar Celine, que era a enfermeira de plantão
aquela noite.
— Estou com uma dor de dente horrível — choraminguei, a mão
aninhando a mandíbula. — Posso tomar alguma coisa para a dor? Um pouco de
heroína seria ótimo — acrescentei.
— Não.
Fiquei pasma.
— Eu não estava falando sério sobre a heroína.
— Eu sei. Mesmo assim, você não pode tomar nenhuma droga.
— Não é uma droga, é um remédio para dor, você sabe disso!
— Olhe só como você fala. Eu estava perplexa.
— Mas está doendo.
— Aprenda a suportar.
— Mas... mas isso é uma barbaridade.
— Pode-se dizer que a vida é uma barbaridade, Rachel. Considere esse
imprevisto como uma oportunidade de conviver com a dor.
— Ahhh, meu Deus — soltei —, não estou em sessão agora.
— Não importa. Quando sair daqui, não vai mais estar em sessão, mas
ainda assim vai ter dor na sua vida. E descobrirá que ela não mata.
— Claro que não mata, mas dói.
Ela deu de ombros.
— Viver dói, mas não se usam analgésicos para isso. Ah, não, eu já ia
me esquecendo: você sempre usou, não é mesmo?
A dor era tamanha, que achei que fosse enlouquecer. Não conseguia
dormir com ela e, pela primeira vez na minha vida, chorei de dor. Dor física,
quero dizer.
De madrugada, Chaquie não agüentou mais comigo me revirando de
um lado para o outro e arranhando o travesseiro, desesperada de dor, e me levou
na marra para a sala das enfermeiras.
— Dá um jeito nela — disse, em voz alta. — Ela está sofrendo e não me
deixa dormir. E amanhã Dermot vem aí para ser meu Outro Importante
Envolvido. Já estou tendo bastante dificuldade para pegar no sono.
A contragosto, Celine me deu dois comprimidos de paracetamol, que
não surtiram o menor efeito sobre a dor, e disse:
—É melhor você ir ao dentista amanhã de manhã. Meu medo foi quase
tão grande quanto a dor.
— Não quero ir ao dentista — gaguejei.
— Aposto que não — ela sorriu, com ar de superioridade. — Você
estava na palestra hoje à noite?
— Não — respondi, azeda. — Resolvi matar e ir tomar umas cervejas na
cidade.
Ela arregalou os olhos. Não gostou do que ouvira.
— Claro que estava! Onde mais haveria de estar?
— Por que não encara sua ida ao dentista como a primeira coisa adulta
que faz na vida? — sugeriu ela. — A primeira coisa assustadora que consegue
fazer sem drogas?
— Ah, pelo amor de Deus — murmurei, entre os dentes.
Embora uma das enfermeiras, Margot, fosse me acompanhar, os
internos estavam mortos de inveja de mim.
— Vai tentar FUGIR? — Don quis saber.
— É claro — murmurei, com a mão na bochecha.
— Vão soltar os leopardos atrás de você — relembrou Mike.
— Sim, mas se ela se esconder no rio, eles vão perder seu rastro
— observou Barry.
Davy chegou de fininho e me pediu discretamente para fazer uma
aposta no páreo das duas e meia em Sandown Park. E no das três. E no das três
e meia. E no das quatro.
— Não sei se vou passar por alguma agência de apostas — expliquei a
ele, me sentindo culpada. E, de uma maneira ou de outra, não saberia mesmo
como proceder, pois nunca estivera num lugar desses na minha vida.
— Vai me algemar? — perguntei a Margot, quando entramos no carro.
Ela se limitou a me lançar um olhar de desdém, e me encolhi de
vergonha. Filha-da-puta sem senso de humor.
Para meu horror, assim que o carro passou pelos portões, comecei a
tremer. O mundo real era estranho e assustador, e eu me sentia como se tivesse
passado muito tempo fora. Isso me irritou. Ainda não passara nem duas
semanas no Claustro e já estava institucionalizada.
Fomos para a cidade mais próxima, ao Dr. 0'Dowd, o dentista a quem o
Claustro recorria quando os dentes dos internos começavam a fazer das suas.
Coisa que, segundo Margot, acontecia o tempo todo.
Durante a caminhada do carro até o consultório, senti que a cidade
inteira olhava para mim. Como se eu fosse uma prisioneira de segurança
máxima que tivesse sido liberada durante a parte da manhã para assistir ao
enterro do pai. Eu me sentia diferente, uma estranha. Eles saberiam, só de olhar
para mim, de onde eu viera.
Observei um casal de jovens numa esquina. Aposto que vendem
drogas, pensei, a adrenalina começando a circular pelas veias, enquanto
imaginava o que poderia fazer para que Margot me perdesse de vista.
Nada.
Ela me rebocou para o consultório do dentista, onde, pelo ar de
excitação contida, depreendi que já era esperada. A recepcionista de quatorze
anos de idade não conseguia tirar os olhinhos fascinados de mim. Eu sabia o
que estava pensando. Eu era uma aberração, uma desajustada, alguém à
margem da vida. Amargurada, imaginei que devia ter passado a manhã inteira
acotovelando as enfermeiras e perguntando: "Como será que ela é, a
toxicômana?'"
Sentia-me vítima de um equívoco. Ela estava me julgando por ser uma
interna do Claustro, mas não entendera nada, eu não era um deles.
Com um risinho nada discreto, pediu que eu preenchesse um
formulário.
— E a conta vai ser mandada para o, er, Claustro? — perguntou, com
falsa discrição. Todas as pessoas na sala de espera estremunharam,
subitamente interessadas.
— Exatamente — murmurei. Embora tenha sentido vontade de dizer:
"Pode falar um pouquinho mais alto? Acho que os habitantes de Waterford não a
ouviram muito bem."
Sentia-me velha e cansada, aborrecida com o idealismo da jovem
recepcionista. Provavelmente achava que nunca, jamais, nem em um milhão de
anos, acabaria no Claustro, e que eu fora muito burra por deixar que isso
acontecesse comigo. Mas eu já fora como ela, um dia. Jovem e burra. Me
achando invulnerável às tragédias da vida. Me achando esperta demais para
permitir que algo de ruim acontecesse comigo.
Sentei e me preparei para uma longa espera. Podia ter ido ao dentista
pela última vez há várias encarnações, mas ainda conhecia a rotina.
Sentadas em silêncio, Margot e eu lemos exemplares rasgados da
revista Catholic Messenger, a única coisa que havia ali para se ler. Tentei me
animar lendo a página das "Intenções oferecidas", em que as pessoas rezam por
qualquer mal que as esteja afligindo.
Sempre ajuda saber que existem outras pessoas infelizes.
Cada vez que eu levantava o rosto, encontrava todos os olhos na sala
colados em mim.
É claro, assim que a recepcionista disse "O Dr. 0'Dowd vai recebê-la
agora", a dor passou. Isso sempre acontecia comigo. Eu fazia um estardalhaço
por causa de uma dor, um machucado etc. Mas, no momento em que chegava ao
médico, todos os sintomas desapareciam, levando todo mundo a crer que eu
sofria da Síndrome do Barão de Munchausen.
Entrei cabisbaixa na sala. Só o cheiro já bastou para me deixar fraca
de medo.
Felizmente, o Dr. 0'Dowd era um sujeito gorducho e jovial, que foi todo
sorrisos comigo, ao invés do tipo Doutor Morte que eu estava esperando.
— Suba aqui, boa menina, vamos dar uma olhada.
Subi. Ele olhou.
Enquanto fazia um baticum na minha boca com um negocinho
pontudo de metal e um espelho, deu início a uma conversa cujo intuito era me
deixar à vontade.
— Quer dizer então que você é do Claustro? — perguntou.
— Aaarr — assenti com a cabeça.
— Bebida?
— Gão. — Tentei sinalizar uma negativa alteando e abaixando as
sobrancelhas. — Grogas.
—Ah, drogas, não é? — Fiquei aliviada por ele não parecer
decepcionado. — Sempre me pergunto como uma pessoa sabe que é alcoólatra.
Tentei dizer "Bom, não adianta me perguntar", mas o que saiu foi mais
ou menos "Om, nanhana i ercná".
— É óbvio que, se você acaba indo para o Claustro, é porque sabe que é
alcoólatra, esse dente está nas últimas.
Tentei me sentar, alarmada, mas ele não notou meu choque.
— Não que eu beba todos os dias — disse. — Se tratarmos esse canal,
talvez dê para salvá-lo. E não se deve deixar para amanhã o que se pode fazer
hoje.
Tratar o canal! Ah, não! Eu não sabia o que era um tratamento de
canal, mas, a julgar pelo jeito como as pessoas ficavam quando tinham que fazer
um, devia ser algo temível.
— Não exatamente todo dia — prosseguiu. — Mas quase todas as
noites, ha, ha.
Balancei a cabeça, infelicíssima.
— Mas nunca quando preciso estar com a mão firme para usar a broca
no dia seguinte. Ha, ha.
Olhei para a porta, ansiosa.
— Mas, depois que começo, não consigo parar, entende o que quero
dizer?
Assenti, temerosa. Era melhor concordar com ele. Por favor, não me
machuque.
— E, lá para as tantas da noite, me dou conta de que não consigo ficar
mais bêbado do que já estou. Entende o que quero dizer?
Ele não precisava de nenhuma confirmação da minha parte.
— E a depressão depois. Nem me fale. — Seu tom era veemente.
—Quase sempre tenho vontade de morrer.
Tinha dado uma trégua ao batuque e à arranhação, mas deixara o
espelho e o negocinho pontudo na minha boca aberta. Pousou a mão no meu
rosto, com ar pensativo. Era um homem se preparando para uma longa
conversa.
— Para ser franco, já pensei até em me suicidar depois de uma noite da
pesada — confidenciou. Eu sentia a saliva lentamente escorrer por meu queixo,
mas tinha medo de parecer insensível se a enxugasse. — Você acreditaria que a
odontologia é a profissão com o índice mais alto de suicídios?
Contorcendo as sobrancelhas e arregalando os olhos, tentei transmitirlhe
minha compaixão.
— Mas, também, é uma vida meio solitária, ficar olhando dentro da
boca dos outros, entra dia, sai dia. — A saliva se tornara uma verdadeira
catarata. — Entra dia, sai dia. Bela merda. — Fez uma vozinha lamuriosa: —
"Meu dente está doendo, pode dar um jeito nele, estou com dor de dente, faça
alguma coisa." É só o que escuto, dentes, dentes, dentes!
Opa, um maluco.
— Fui a algumas reuniões dos AA só para dar uma olhada, sabe? —
Olhou para mim com ar suplicante. Olhei com ar suplicante para ele.
Por favor, me deixe ir embora.
— Mas não eram para mim — explicou. — Como já disse, não bebo
todo dia. E nunca de manhã. A não ser que a tremedeira esteja muito feia, é
claro.
— Aaar — disse eu, para encorajá-lo.
Converse com o seqüestrador, estabeleça um relacionamento, tente
fazer com que fique do seu lado.
— Minha mulher ameaçou ir embora, se eu não largar a bebida —
prosseguiu. — Mas sinto que se fizesse isso não sobraria nada para mim, minha
vida estaria acabada. Tanto faria estar vivo ou morto. Entende o que quero
dizer?
De repente, pareceu cair em si.
E arrependeu-se do desabafo, envergonhado por ter dado parte de
fraco na minha frente, logo tratando de restabelecer o equilíbrio.
— Agora vou lhe aplicar uma injeçãozinha, mas você sabe tudo sobre
isso, não sabe? — Soltou uma gargalhada antipática. — Adoro quando vocês
toxicômanos vêm aqui. A maioria das pessoas tem pavor de agulhas! Ha, ha, ha.
"Tome, quer aplicar você mesma? Ha, ha, ha.
"Trouxe seu torniquete? Ha, ha, ha.
"Pelo menos você não vai ter que dividir a agulha com mais ninguém,
ha, ha, ha, ha, ha!"
Eu suava frio, sentindo um medo horrível, porque ele estava enganado,
eu tinha pavor de agulhas. E tremia só de imaginar os horrores que ainda me
esperavam.
Meu corpo se retesou todo quando ele levantou meu lábio e espetou a
ponta afiada da agulha no tecido macio da gengiva. Enquanto o líquido gelado
inundava minha carne, fiquei com os pêlos em pé de repugnância. A dor da
picada da agulha se intensificava, quanto mais tempo ele a mantinha na
gengiva. Pensei que não fosse acabar nunca.
Vou esperar mais cinco segundos, prometi a mim mesma. Se até lá ele
ainda não tiver acabado, vou ter que abotoar esse sujeito.
Quando a dor atingiu o limite do suportável, ele retirou a agulha.
Mas, a essa altura, eu já tinha chegado à conclusão de que era covarde
demais para suportar maiores interferências odontológicas na minha boca, e que
preferia arriscar minha sorte com a dor de dente.
Porém, quando já estava a pique de dar um safanão nele e sair
correndo, uma deliciosa e pinicante sensação de torpor se alastrou pelo lábio e
um lado do rosto, irradiando alívio pela cabeça afora.
Fiquei eufórica. Adorava essa sensação. Relaxei na cadeira, curtindo-a.
Que coisa maravilhosa era a novocaína. Quem me dera que pudesse aplicá-la no
corpo inteiro. E nas minhas emoções.
Mas a euforia não durou. Não pude deixar de me lembrar de todas as
histórias horríveis que haviam me contado sobre dentistas. Como o caso de
Fidelma Higgins, que fora hospitalizada para extrair os quatro sisos sob
anestesia geral. Não apenas não extraíram os quatro meliantes, como, em seu
lugar, removeram seu baço perfeitamente saudável. Ou o caso de Claire, que
uma vez teve que arrancar um dente, mas as raízes do dito-cujo eram tão fortes
que — jurava ela — o dentista plantou a sola do sapato no seu peito, para ter
base para arrancá-lo. E, é claro, a favorita dos que têm fobia de dentista —
aquela cena de Maratona da Morte. Eu nem mesmo tinha visto Maratona da
Morte, mas não importava: já ouvira o bastante sobre a tal cena para me sentir
nauseada com minha vulnerabilidade à dor excruciante na ponta dos dedos e da
broca daquele homem assustador.
— Certo, a esta altura esta boca já deve estar insensível. — O Dr.
0'Dowd interrompeu o filme de terror que passava na minha cabeça. — Podemos
começar.
— O qu-que exatamente é um tratamento de canal? — Achei preferível
saber o que iria acontecer comigo.
— Extraímos o interior do dente. O nervo, o tecido, tudo a que se tem
direito! — disse ele, cheio de alegria. E, com essa, partiu para a broca com o
prazer de um homem que instala prateleiras.
A consciência do que estava prestes a fazer levou meus ombros a
subirem até as têmporas, imprensando-as de pavor. Ia doer que era uma
barbaridade. E abrir um buraco até o meu cérebro, pensei, a náusea dando um
pontapé na boca do estômago.
Pouco tempo depois, os nervos de todos os meus outros dentes
começaram a pintar e bordar. Obriguei-me a esperar até não agüentar mais —
ou seja, mais ou menos quatro segundos —, antes de acenar para que ele
parasse.
— Agora todos os outros dentes estão doendo — consegui murmurar.
— Já? — perguntou ele. — É incrível como vocês toxicômanos
metabolizam os analgésicos depressa.
— Isso acontece com eles, é? — Fiquei surpresa.
— Com vocês.
Ele me aplicou outra injeção. Que doeu mais do que a primeira, o
tecido delicado da gengiva já traumatizado e ferido. Em seguida, pisou fundo no
pedal do motor, como se fosse uma serra elétrica, e partiu para a ação outra vez.
Demorou horas.
Tive que lhe pedir duas vezes para dar uma parada, tão horrível era a
dor. Mas, em ambas as ocasiões, endireitei os ombros, fitei-o nos olhos e disse:
"Já estou bem, vá em frente."
Quando finalmente voltei para a sala de espera trocando as pernas, ao
encontro de Margot, tinha a sensação de que minha boca fora atropelada por um
caminhão, mas a dor de dente passara e eu me sentia vitoriosa.
Tinha vindo, visto, vencido e estava me achando o máximo.
— Por que será que meus dentes resolveram dar sinal de vida agora? —
murmurei, pensativa, durante a volta.
Margot olhou para mim, cautelosa:
— Tenho certeza de que não foi uma coincidência — disse.
— Não? — perguntei, surpresa.
— Pense um pouco — disse ela. — Creio que você fez algum progresso
ontem na sessão de grupo...
—Eu?
— ...mas seu corpo está tentando impedi-la de enfrentar a dor
emocional, substituindo-a por uma dor física. Sendo a dor física, é claro, mais
fácil de suportar.
— Está dizendo que inventei isso? — perguntei, exaltada. — Pois então
volta lá e pergunta àquele dentista, e ele vai te dizer...
— Não estou dizendo que você está fingindo.
— Mas então o qu...?
— Estou dizendo que sua vontade de evitar olhar para si mesma e seu
passado é tão forte, que seu corpo se mancomunou com você, dando-lhe outra
coisa com que se preocupar.
Pelo amor de Deus.
— Estou cheia dessas mil e uma interpretações que vocês dão a tudo —
disse eu, feroz. — Tive uma dor de dente, só isso, não foi nenhum bicho-de-setecabeças.
— Foi você quem levantou a lebre da coincidência entre uma coisa e a
outra — relembrou Margot, branda.
Passamos o resto do trajeto em silêncio.
Na volta ao Claustro, fui saudada como se tivesse passado muitos anos
fora. Quase todo mundo se levantou de um pulo, interrompendo o almoço
(embora Eamonn e Angela não estivessem entre eles), gritando coisas do tipo
"Ela VOLTOU" e "Que bom, Rachel, sentimos sua falta".
Em homenagem à minha boca mutilada, Clarence me dispensou da
lavagem das panelas, meu encargo na equipe. Foi maravilhoso, como na ocasião
em que a escola nos mandou para casa porque os canos estouraram. Mas nem a
isenção da panelada se comparou ao frisson que senti quando Chris passou os
braços por mim.
— Bem-vinda ao lar — murmurou. — Já estávamos dando você por
morta.
Uma bolhinha deliciosa de felicidade fez "pop!" no meu estômago. Ele
devia ter me perdoado por revirar os olhos na véspera, quando me dera aquele
conselho.
Choveram perguntas sobre mim.
— Como é o mundo lá fora? — quis saber Stalin.
— Richard Nixon ainda é presidente? — perguntou Chris.
— Richard Nixon é presidente? — indagou Mike. — Aquele fedelho?
Quando cheguei aqui, ainda era apenas senador.
— Do que é que vocês estão falando? — O rosto de Chaquie estava
contraído de indignação. — Aquele sujeito Nixon já era há muito tempo. Já faz
anos que ele foi... — Interrompeu-se, ao ver que Barry fazia sinais para ela.
— É uma piada — disse ele. — Sabe o que é uma piada? Ha. Ha.
Procura no dicionário, sua pateta.
— Ah — fez Chaquie, aturdida. — Nixon. Onde é que eu estou com a
cabeça? Mas, com Dermot vindo aí hoje à tarde, não estou no meu estado
normal...
Para apreensão de todos, pareceu prestes a chorar.
— Dá uma trégua a essa cabeça, moça — disse Barry, afastando-se,
apressado. — Você não é uma pateta, não.
Todos no aposento prenderam o fôlego durante alguns minutos de
tensão, até que o rosto de Chaquie se desanuviou.
Assim que recebemos o sinal verde, brindei todo mundo com grandes
lorotas sobre minha aventura bucal.
— Tratamento de canal? — sorri, com ar de desdém: — Moleza.
— Mas não DOEU? — Don quis saber.
— Nada de extraordinário — me gabei, decidindo correr um véu sobre
minhas lágrimas de dor na cadeira do dentista.
— E você não ficou com medo? — perguntou John Joe.
— Não podia me dar ao luxo de ficar com medo — tornei, com ar de
bacana. — Tinha que ser feito e ponto final.
O que era quase verdade, me dei conta, surpresa.
— Quanto custou? — Eddie fez a pergunta que considerava mais
importante.
— Ah, sei lá — respondi. — Não muito, tenho certeza.
Eddie riu, sombrio.
— Você deve ter nascido ontem. Como é que pode ser tão ingênua?
Esses dentistas e médicos não dão nem as horas sem cobrar os olhos da cara.
— Eddie, sabe de uma coisa? — resolvi arriscar: — Você é um
pouquinho neurótico em matéria de dinheiro.
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