quarta-feira, 6 de julho de 2011

Férias!! - MARIAN KEYES Cap.38


Decidi não usar a história do ovo de Páscoa. Temia que não me
pintasse num ângulo muito favorável. Assim, quando começou a sessão de
grupo da manhã seguinte, eu não tinha escrito praticamente nada da história da
minha vida. Josephine ficou zangada.
— Desculpe — pedi, me sentindo como se estivesse de novo na escola e
não tivesse feito o dever de casa.
Grande erro. Grande, enorme, colossal, com uma papada, dois culotes
e três pneus.
Os olhos de Josephine brilharam como os de um tigre à espreita da
presa.
— Porque estava muito barulho no refeitório — exclamei. — Eu me
refiro a esse tipo de dificuldade, não ao outro. Vou escrever hoje à noite.
Mas ela não aceitou:
— Vamos fazer agora. Não precisa escrever nada, basta me contar as
coisas com suas próprias palavras.
Merda.
— Seria melhor se eu refletisse sobre o assunto antes de escrever —
protestei, consciente de que o protesto me empurrava para mais perto da
obrigação de fazê-lo, mas não me contive. Se tivesse um mínimo de juízo, teria
fingido ficar encantada com a sugestão do improviso, porque, aí, sim, quem não
me deixaria fazê-lo seria ela.
— Só se for agora. — Ela sorriu, seu olhar penetrante como uma faca.
— Muito bem — começou. — Sua irmã veio aqui ver você no domingo, não é
verdade?
Assenti, logo tratando de analisar minha linguagem corporal. À
menção de Helen, eu me fechara toda. Os braços se cruzaram e apertaram com
força contra o corpo, as pernas se cruzaram e enroscaram. Isso não daria certo.
Josephine tiraria todos os tipos de conclusões imagináveis de minha postura.
Afastei os braços do estômago e deixei que pendessem frouxos ao longo
do corpo. Descruzei as pernas e as escancarei de um jeito tão relaxado, que Mike
achou que era seu dia de sorte. Constrangida ao perceber que ele tinha dado
uma boa olhada nos fundos da minha calcinha, apressei-me em juntar os
joelhos, apertando-os firmemente.
— Pelo que consta, essa sua irmã causou um certo alvoroço no
domingo — disse Josephine.
— Ela sempre causa — comentei, em tom casual.
Não devia. Dava para sentir o cheiro da excitação de Josephine.
— É mesmo? — ergueu a voz. — E ouvi dizer que é uma moça muito
bonita.
Estremeci. Não conseguia me controlar. Não que me importasse com o
fato de Helen ou qualquer outra de minhas irmãs ser mil vezes mais bonita do
que eu; era a pena das pessoas que me deprimia.
— E qual é a diferença de idade entre vocês?
— Seis anos, ela tem quase vinte e um — respondi, tentando não dar
nenhuma inflexão à minha voz, para não dar margem a deduções.
— Você parece muito indiferente — disse Josephine. — A juventude
dela incomoda você?
Não consegui refrear um sorriso irônico. Não importava o que eu
fizesse, sempre teria alguma interpretação negativa. Josephine observou meu
rosto com ar de curiosidade.
— Estou bancando a durona — brinquei.
— Eu sei — disse ela, mortalmente séria.
— Não! Olha, é brincadeira...
— Você deve ter ficado muito enciumada quando Helen nasceu — me
atalhou.
— Até que não — disse eu, surpresa. Surpresa porque Josephine errara
o alvo. Porque não me reduzira a um farrapo gaguejante e choroso, como eu a
vira fazer com Neil e John Joe.
Fiaaau, fiaaau! Espero que ela saiba lidar com o fracasso.
— Mal me lembro de quando Helen nasceu — disse a ela, com toda a
honestidade.
— Muito bem, então, conte para nós como foi quando Anna nasceu —
sugeriu. — Que idade você tinha?
De repente, já não me senti mais tão segura de mim. Não queria falar
do nascimento de Anna.
— Que idade? — Josephine tornou a perguntar. Fiquei irritada comigo
mesma, porque, por não dar uma resposta imediata", deixara meus sentimentos
transparecem.
— Três anos e meio — disse, como se o fato não tivesse importância.
— E você era a mais nova até Anna nascer?
— Hum-hum.
— E teve ciúmes de Anna quando ela nasceu?
— Não! — Como ela sabia? Eu já tinha esquecido que ela perguntara o
mesmo sobre Helen, que seu método se calcava no acaso, não na onisciência.
— Quer dizer então que você não beliscou Anna? Nem tentou fazê-la
chorar?
Olhei para ela, horrorizada. Como sabia disso? E por que tinha que
contar a todo mundo no aposento?
Todos se empertigaram. Até Mike deu uma trégua à tentativa de fazer
contato visual com minha calcinha.
— Quem sabe você não ficou com ódio de Anna por lhe roubar as
atenções?
— Não fiquei, não.
— Ficou, sim.
Eu suava, morta de calor. Não sabia onde enfiar a cara de vergonha e
raiva. Sentia ódio de ser precipitada outra vez naquele mundo aterrador onde
meus atos tinham tido conseqüências catastróficas. Quase teria preferido o
questionário a isso.
Não queria me lembrar.
Embora a lembrança sempre tivesse existido, semiconsciente.
— Rachel, você tinha três anos, uma idade que os psicólogos infantis
reconhecem ser muito difícil no que diz respeito à aceitação de uma nova criança
na família. O seu ciúme era natural. — Josephine tinha ficado toda delicada
comigo. — O que está sentindo? — perguntou.
Em vez de mandá-la para o inferno, minha boca se abriu e a palavra
"Vergonha" saiu.
— Por que não disse isso à sua mãe?
— Não podia — respondi, surpresa. A expectativa geral era de que eu
ficasse encantada com minhas novas irmãs, não ressentida. — De mais a mais,
mamãe tinha ficado esquisita.
Senti o interesse de todos aumentar mais um pouco.
— Ela ficava na cama, chorando à beça.
— E por quê?
— Porque fui má com Anna — disse eu, devagar. Meu espírito se
confrangeu, quando me obriguei a dizer isso. Eu fizera minha mãe ficar de cama
durante seis meses porque fora má.
— E o que você fez com Anna de tão terrível assim?
Hesitei. Como podia dizer a ela e aos outros presentes que beliscara
uma criancinha tão pequena e indefesa, como rezara para que morresse, como
tivera fantasias em que a jogava na lata de lixo?
— O.k. — disse Josephine, quando ficou claro que eu não ia responder.
— Você tentou matá-la?
— Nããão! — quase ri. — Claro que não.
— Bem, nesse caso, você não pode ter sido tão má assim.
— Mas fui — insisti. — Fiz com que papai fosse embora,
— Para onde?
— Para Manchester.
— Por que ele foi para Manchester?
E ela ainda perguntava?, pensei, cheia de vergonha e dor. Não estava
perfeitamente claro que ele fora embora por minha causa?
— A culpa foi toda minha — disparei. — Se eu não tivesse ficado com
ódio de Anna, mamãe não teria chorado e ficado de cama, e papai não teria se
enchido de todas nós e ido embora. — Ao dizer isso, para cúmulo do meu horror,
rompi em lágrimas.
Chorei só um pouco, antes de pedir desculpas e me endireitar.
— Já ocorreu a você que sua mãe pudesse estar sofrendo de depressão
pós-parto?
— Ah, não, acho que não — disse eu, categórica. — Não era nada desse
gênero, era por minha causa.
— É muita arrogância da sua parte — disse Josephine. - Você era só
uma criança, não podia ser tão importante assim.
— Que audácia! Eu era importante!
— Ora, ora — murmurou ela. — Como então, você se acha importante?
— Não, não acho! — interrompi-a, furiosa. Não tinha sido isso em
absoluto que eu quisera dizer. — Nunca me considerei superior a ninguém.
— Certamente não foi essa a impressão que você deu quando chegou
ao Claustro — disse ela, branda.
— Mas isso foi porque eles são lavradores e alcoólatras — explodi,
antes mesmo de me dar conta de ter dito alguma coisa. Tive vontade de cortar as
cordas vocais com um descascador de batatas.
— Acho que você há de convir comigo — ela sorriu, gentil —, que tem
um sentimento de superioridade bastante exacerbado, como parece ser o caso de
muitas personalidades propensas à dependência, além de uma auto-estima
incrivelmente baixa.
— Que coisa mais burra — resmunguei. — Não faz nenhum sentido.
— Mas é assim que funciona. É um fato notório que as pessoas que se
tornam dependentes têm personalidades muito parecidas.
— Sei. Quer dizer então que você nasce dependente? — rebati, em tom
de escárnio. — Bom, nesse caso, que chance as pessoas têm?
— Essa é uma escola de pensamento. Aqui no Claustro vemos a coisa
de um modo um pouco diferente. Achamos que se trata de uma combinação
entre o tipo de pessoa que você é e a sua experiência de vida. Veja seu caso: você
era menos... robusta, do ponto de vista emocional, digamos assim, do que outras
pessoas. A culpa não é sua, alguns nascem com uma vista ruim, por exemplo,
enquanto outros nascem hipersensíveis. E você ficou traumatizada com a
chegada de uma nova irmã, numa idade em que era extremamente frágil.
— Sei. Então, todo mundo que tem uma irmã mais nova se vicia em
cocaína? — perguntei, exaltada. — Na realidade, tenho duas irmãs. O que você
acha disso? Eu não deveria ser viciada em heroína também, além de cocaína?
Que sorte a minha, por não ter três irmãs mais novas, não é?
— Rachel, você está sendo gaiata. Mas esse é apenas um mecanismo de
defesa...
Ela se interrompeu, quando uivei como um cão-da-pradaria faminto:
— CHEGA! Não agüento mais, tudo isso é pura... pura... BABAQUICE!
— Nós hoje tocamos num poço profundo de dor, Rachel — disse ela,
calmamente, enquanto minha boca quase espumava. — Tente ficar com esses
sentimentos, ao invés de fugir deles, como sempre fez no passado. Temos muito
trabalho pela frente, até você perdoar a Rachel de três anos de idade.
Gemi de desespero. Mas, pelo menos, ela não usara aquela expressão
de lascar, "criança interior".
— Quanto a vocês — concluiu —, não pensem que não são alcoólatras
e toxicômanos, só porque não carregam nas costas o peso de um complexo de
infância.
Durante o almoço inteiro, chorei a não mais poder. Chorei para valer,
mesmo, de desfigurar e avermelhar o rosto. Não as lágrimas falsas de menininha
que tinha forjado para Chris no dia em que soubera que Luke me dedurara. Um
pranto inestancável, convulso. Não conseguia recobrar o fôlego e sentia a cabeça
leve. Não chorava assim desde a adolescência.
Estava avassalada de dor. Uma dor que ia muito além da fossa
provocada por Luke. Uma tristeza profunda, pura e antiga, que me mantinha
indefesa em seu poder.
Os outros internos foram muito bons comigo, oferecendo lenços-depapel
e ombros amigos para meu berreiro, mas eu mal tinha consciência de sua
presença. Não me importava sequer com Chris. Eu estava em outro lugar, onde
todo o sofrimento que sempre existira ia sendo inculcado dentro de mim. E eu
me expandia para acomodá-lo; quanto mais entrava, mais eu o sentia.
— O que foi? — perguntou uma voz carinhosa. Podia ser a de Mike.
Podia ser até a de Chris.
—Não sei—chorei.
Nem ao menos pedi desculpas, como faz a maioria das pessoas quando
extravasa sua emoção em público. Eu sentia dor, sensação de vazio, de
irremediabilidade. Algo se perdera para sempre e, mesmo eu não sabendo o que
era, me feria profundamente.
Uma xícara de chá surgiu à minha frente, e a delicadeza do gesto
deduplicou minha dor. Solucei mais alto e mais forte, sentindo vontade de
vomitar.
— Quer biscoito de CHOCOLATE? — Alguém, que só podia ser
Don, berrou bem no meu ouvido.
— Não.
— Meu Deus, ela está mal — ouvi alguém murmurar.
Felizmente, antes que me desse conta, comecei a rir.
— Quem disse isso? — arquejei, por entre as lágrimas.
Era Barry, o Bebê. Eu ria e chorava, chorava e ria. Alguém alisava meu
cabelo (provavelmente Clarence, que tinha um notável senso de oportunidade) e
outro fazia massagens circulares nas minhas costas, como se eu fosse um bebê
que tivesse tomado choro.
— Já está quase na hora da sessão de grupo — disse alguém. — Está a
fim de vir?
Assenti, porque estava com medo de ficar sozinha.
— Nesse caso... — disse Chaquie, me arrastando consigo para nosso
quarto e tirando da cartola todo tipo de maluquice, do gênero Beauty Flash e
Three Minute Repair, para dar um jeito no meu rosto desfigurado. Foi um tanto
contraproducente, pois o toque delicado de seus dedos em minha pele fazia as
lágrimas correrem novamente, num rio que enxurrava os cremes caros assim
que secavam.
No refeitório, depois da sessão, Chris abriu caminho até mim por entre
a multidão de simpatizantes. Gostei de ver Chaquie e os outros se afastarem
automaticamente à sua passagem. Isso demonstrava que sabiam haver um
vínculo especial entre mim e Chris. Ele deu um daqueles sorrisos que eram
exclusivamente meus e alteou as sobrancelhas, como quem diz "Você está
bem?". Pela preocupação em seus olhos azul-claros, ficou evidente que a
diminuição em seu interesse fora pura imaginação minha.
Ele sentou, sua coxa encostando na minha. Como quem sonda o
terreno, passou nervosamente o braço por meus ombros. Muito diferente dos
abraços rápidos e casuais que costumava me dar. A penugem na minha nuca se
arrepiou toda. Meu coração acelerou. Aquele era o contato mais íntimo que
tínhamos desde o dia em que ele enxugara minhas lágrimas com os polegares.
Estava louca para deitar a cabeça no seu ombro. Mas continuava
rígida, sem conseguir criar coragem. Vai, eu me cutucava. Já começava a suar
ligeiramente de desejo por ele.
Algum tempo depois, quando comecei a sentir um sobe-e-desce no
estômago, consegui encostar a cabeça nele, curtindo o cheiro limpo de sabão em
pó de sua camisa de chambray. Ele não cheira como Luke, pensei, distraída.
Senti uma curta pontada de dor por sua perda, antes de me lembrar que Chris
era tão gostoso quanto Luke. Ficamos ali, calados e imóveis, o braço de Chris me
estreitando com força. Fechei os olhos e, por alguns momentos, me permiti fingir
que estava num mundo perfeito, onde ele era meu namorado.
Isso me fez lembrar de uma outra época, mais inocente, quando o
máximo que um namorado fazia era passar o braço pela garota, e — se ela
estivesse com sorte — beijá-la. O decoro imposto pelo Claustro era romântico,
encantador. Me comovia, mais do que frustrava.
Sentia seu coração batendo mais depressa do que o normal. E o meu
também.
Mike passou por nós, com um sorriso safado. Misty seguia Mike, com o
passo despreocupado. Quando deu comigo e Chris, me olhou com um ódio tão
venenoso que quase me arrancou a epiderme da cara.
Constrangida como se houvesse sido pega em flagrante delito, contorcime
toda e me desvencilhei de Chris. Despojada de seu aroma limpo e másculo e
da sensação de seu ombro e braço fortes por baixo do tecido macio de sua
camisa, senti-me abandonada. Odiei Misty com todas as minhas forças.
— Me diga — começou Chris, aparentemente sem perceber os olhares
de condenação —, por que você estava tão transtornada horas atrás?
— Porque Josephine me fez perguntas sobre minha infância durante a
sessão de grupo. — Dei de ombros. — Não sei por que fiquei tão transtornada.
Tomara que não esteja enlouquecendo.
— Não mesmo — disse Chris. — É perfeitamente normal. Pense nisso.
Durante anos você reprimiu todas as suas emoções com drogas. Agora que os
agentes repressores foram cortados, décadas de mágoa, ódio e todo tipo de
sentimento virão à tona outra vez. Foi só isso que aconteceu — concluiu, em tom
carinhoso.
Revirei os olhos. Não consegui me conter. Chris viu.
—Ah, não, eu tinha me esquecido. — Ele riu. — Você não tem nenhum
problema com drogas.
Levantou-se para ir embora. Por favor, não vai, tive vontade de dizer.
— O engraçado — veio o som de sua voz, ao que ele já se afastava —, é
que você está se comportando exatamente como se tivesse.

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